segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Manuscritos complicados


Sobre a dificuldade e complexidade da poesia de Emily Dickinson (1830-1886) falou, com propriedade e conhecimento, Jorge de Sena, na sua introdução a 80 poemas de Emily Dickinson (Edições 70, 1978). Das elipses, das divisões estróficas a descodificar, da desarrumação dos versos escritos em pequenos pedaços de papel (recibos comerciais, envelopes já usados ou não...), da dificuldade em estabelecer uma pontuação sistemática e coerente, das maiúsculas frequentes... Até porque dos mais de 1.700 poemas conhecidos, apenas cerca de 10 foram corrigidos e publicados em vida, por Emily Dickinson.
O TLS anunciou recentemente a saída de um livro (The Gorgeous Nothings) que reproduz 100 poemas de E. D., escritos em pequenos papéis e envelopes, que foram enviados à sua irmã "Miss Vinnie Dickinson", de que damos, abaixo, uma reprodução, bem como uma pequena poesia que o jornal inglês transcreve. Para o pequeno poema, proponho a seguinte versão, em português:

Quem diz
que a Ausência
de uma
Bruxa
anula 
o seu feitiço?

7 comentários:

  1. De facto ainda hoje, humanistas que somos, sentimos assim: Procuramos abertura da consciência, desenvolvimento da capacidade de explorar e brincar e "locus" de controle interior.
    E onde está na Web a gramática da espontaneidade e do "locus" interior? É por isso que fazemos escrita poética e não poesia. Para nós parece mais importante a flexibilidade de pensamento, a abertura a novas experiências, a capacidade de invenção e a liberdade de ser quem somos.

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  2. E quem diz que não somos todos bruxos? Esta nossa capacidade de sermos espontâneos, de expandir a consciência, de nos situar-mos num locus interno, sem gramática.

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    1. Como diz o provérbio popular: "De santos e loucos, todos temos um pouco". Porque não de bruxos? Ou, pelo menos, de detentores de poderes misteriosos que não controlamos inteiramente, ou mal damos conta...

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  3. (Sem ser capaz de jurar, julgo que quem primeiro a descobriu por cá, ainda bem antes do Sena, foi o Cesariny - que (opinião) era muito mais poeta e, talvez por isso, a lia bastante melhor. Deixe-me discordar, desta vez: pode ser a minha antipatia pela personagem, fundamentada no que me pareceram patetices de vária ordem, mas se há coisa que nunca vi nele foi "propriedade e conhecimento". Todo o contrário: leviandade de juízo, superficialidade de estudo, arzinho professoral sem consistência, querer só "botar figura", em suma...)

    Uma pergunta, já agora, porque partilho consigo - e com o Cesariny... - a muita simpatia pela menina de Amherst. Estas traduções que tem aqui publicado são pontuais ou estão agrupadas em algum livro (já editado ou ainda a editar)?

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    1. Caro Anónimo:
      não tenho ideia de qualquer referência de Cesariny a Emily Dickinson, mas é evidente que não sou detentor de toda a verdade e informação.
      Se concedo que Sena não será, porventura, um dos maiores poetas portugueses do séc. XX, no restante, estou em profundo desacordo consigo. Para citar só três exemplos, e em áreas distintas, desde o extraordinário conto "Super Flumina Babylonis" ("Novas Andanças do Demónio", Portugália, 1966) - onde a própria criação poética é abordada, tangencialmente - até a agudeza da síntese crítica que fez ("Líricas Portuguesas", 3ª série, Portugália, 1958) na caracterização de poetas portugueses, passando pela magnífica tradução de "Fiesta" (The Sun also rises), de Hemingway, bastariam, creio, para conceder a Jorge de Sena um lugar marcante, na Cultura Portuguesa.
      Quanto às traduções, que vou fazendo no Blogue, não têm nenhum objectivo futuro, em vista, senão dar a conhecer e partilhar poemas de que gosto.

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  4. Já confirmei: foi mesmo o Cesariny, e a referência é a que tinha em mente (um texto recolhido em «As Mãos na Água, a Cabeça no Mar», originalmente publicado no «Diário Popular» em 1954; mais cedo ainda do que supunha, não deixando, assim, margem para dúvidas).

    Não li os textos que refere de Jorge de Sena. Tirando «Sinais de Fogo», nunca lhe li nada senão alguns textos pontuais que justamente me causaram a tal antipatia, naquele registo de dizer mal de tudo e todos para, pretensamente (ingenuamente), achar que brilham, como hoje Vasco Pulido Valente (passe a comparação: este é muito mais fraquinho, não tem um pingo de ânimo literário, para frustração própria, e nem sequer lhe vai em abono o pão duro do exílio).
    Por exemplo, o ridículo (é o termo) prefácio à tradução que fez dos «Manifestos do Surrealismo», sempre a querer mostrar uma erudiçãozinha balofa, que não interessa a ninguém, e aliás inconsistente, mesmo disparatada, chamando a André Breton, que haveria de ficar incomodadíssimo, um "amador cultural", etc. Vale a pena lê-lo por ser um repositório de uma série de baixas virtudes humanas, escondidas atrás de asneiras de vária ordem. E, nem de propósito, creio que precisamente em «As Mãos na Água...» Cesariny lhe aplicou um valente correctivo, satírico q.b., a este propósito.
    Outro exemplo, quando se resolveu atirar a Paulo Quintela, criticando-lhe (com alguma razão, mas não é esse o ponto) as traduções do alemão, no mesmo texto em que punha trema, assim, em Holdërlin (o que Quintela, naturalmente, aproveitou na resposta). Se ridículo matasse...

    Convenho em que as traduções que fez de Emily Dickinson são razoáveis, porque o inglês, o homem tinha mesmo de dominar. Ao contrário de várias línguas que fingia conhecer. (Mais uma vez, aqui o ridículo). Dar-se-á o mesmo caso na «Fiesta». Ainda assim, prefiro-lhes algumas publicadas depois, já não me lembro da mão de quem. E as suas, igualmente. Daí a pergunta que lhe fiz.

    Desculpe a expansão, que esta já vai longa.

    Boa noite

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    1. Agradeço a sua confirmação sobre Cesariny, que desconhecia.
      Pois, como tudo na vida, também na literatura, todos temos amores e ódios de estimação. E, sobre isso, não há nada a fazer.
      Sei que Sena não gostava da Academia coimbrã, porque (além de muito conservadora - tive ocasião de o constatar...) a "tribo" conimbricense, com Pimpão (Álvaro Júlio,) à frente, lhe criou dificuldades sérias, por interposta pessoas (brasileiras), quando ele foi para o Brasil e se quis doutorar. E ele nunca se esqueceu.
      Sobre o conto "Super Flumina Babylonis", poderá ler o final num poste do Arpose, de 13 de Abril de 2010. O que não dispensará, para uma melhor avaliação, a sua leitura integral.
      Os meus votos de boa noite!

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