segunda-feira, 27 de junho de 2011

Divagações 9 (e em sequência de Guimarães Rosa)


Não será muito comum, ao lermos um texto simples em prosa, na nossa própria língua, não o entendermos. Mas já me aconteceu a mim, excepcionalmente, uma vez: em Mafra, a 19 de Janeiro de 1968. Após cinco dias de reclusão obrigatória e absoluta no Convento (recruta da tropa) e o início gradual do "massacre e lavagem ao cérebro" desses tempos militarizados, quando saí, na sexta-feira, ao fim da tarde, comprei sofregamente o DL ("Diário de Lisboa") e comecei a lê-lo, num Café mafrense. Apercebi-me, então, que não conseguia entender o sentido do que lia. Reconhecia as palavras, mas elas não se me organizavam em realidade, nem traduziam sentidos.
De uma forma já normal, isto mesmo pode acontecer, a outro nível, ao lermos poesia, na nossa própria língua. Conhecemos os vocábulos, mas escapa-nos o sentido do poema. Mais frequentemente, quando lemos poesia numa língua estranha à nossa, é possível ocorrerem equívocos de interpretação. Ou através duma compreensão errada, criarmos outra realidade para que se ordene, em nós, um sentido (outro?) que não estava no poema, ou no verso original, quando foi escrito. Aqui, no entanto, poderá ocorrer o feliz acaso de se ir ao encontro de uma nova realidade virtual, subjectivamente, objectiva.
Tudo isto se aproxima, perigosamente, da simbologia de Babel e das línguas de fogo do Pentecostes. Ou, simplesmente, daquilo que se denomina a ambiguidade da Poesia, para sermos mais claros.

2 comentários:

  1. Esta sua «divagação» fez-me lembrar uma afirmação, de Saramago, que me parece especialmente feliz: «o caos é uma ordem por decifrar». Saramago, todavia, omitiu um aspecto igualmente importante: o facto de cada caos comportar várias ordens possíveis, provavelmente porque é da natureza do caos ser plúrimo.
    Creio que a maneira como interpretamos um texto depende da «formatação» da cabeça, que regra geral é condiciona pelo nosso contexto, por aquilo que nos cerca, pelo que nos é exigido. É como encontrar uma direcção numa cidade cujo mapa nos é familiar. Podemos nunca ter lá estado, mas sabemos como lá chegar. Porém, tudo fica mais complicado quando não se conhece o mapa. É nestas alturas que corremos o risco de nos perder... ou, em alternativa, de chegar à Índia... :-)
    Usando esta mesma imagem, creio que os criadores são, por definição, viajantes que partem à descoberta de cidades desconhecidas e não levam mapa. Ora, como escreveu Paul Theroux, «viajar é desaparecer, uma incursão solitária por uma estreita linha geográfica até ao esquecimento». Viajar e criar parecem-me actividades em tudo semelhantes - ambas são incursões solitárias até ao esquecimento - e por isso falar em compreensão errada ou em equívoco de interpretação parece-me que poderá não fazer muito sentido. Cada «viajante» tem de encontrar o seu caminho. Impossível, para quem quer que seja, segui-lo...

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  2. A frase de Saramago, c.a., parece-me exemplar, muito embora, com o seu aditamento, se torne mais precisa e objectiva. Julgo que na interpretação de um texto, que não seja absolutamente linear, um dos aspectos mais relevante é a experiência que trazemos e que nos leva, por exemplo num romance, a reter, na memória, uma certa "clonagem" de episódios, pensamentos e sensações que já tenham sido nossas; para além da atmosfera que a leitura da obra nos deixou.A poesia pode levar-nos a tomar a "nuvem por Juno", também, pelas mesmas razões.
    A osmose nem sempre é perfeita.
    Não sei se estarei de acordo com Theroux, na frase que c. a. cita. A criação, do meu ponto de vista, é um "outro" estado de estar vivo. Uma suprarrealidade, sem tempo. Algo vai sendo ditado à mão que escreve ou pinta. Não se sabe, realmente o caminho, e não é bom forçá-lo, sob o perigo iminente da destruição. Mas, às vezes, em diálogos "mais altos" também se vai descobrindo a pouco e pouco, e em piloto-automático, aquilo que pensamos.
    Um bom resto de semana!

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