terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Favoritos VI : João Guimarães Rosa



O meu primeiro contacto com a obra de João Guimarães Rosa data, precisamente, do ano da sua morte: 1967. Tinha nascido a 27 de Junho de 1908, em Cordisburgo, Minas Gerais, Brasil, e faleceu três dias depois de tomar posse na Academia, de enfarte, a 19 de Novembro de 1967. Em Outubro, Eugénio de Andrade, sabendo que eu ia cumprir o serviço militar obrigatório a partir de Janeiro de 1968, em Mafra e no auge da Guerra Colonial, tinha-me aconselhado: "Leia o Guimarães Rosa, talvez ajude!..." E eu segui o conselho. Comecei pelo "Miguilim e Manuelzão" da Ed. Livros do Brasil e aí começou também o meu deslumbramento. Seguiram-se "Sagarana", "Tutaméia", "Grande Sertão: Veredas"... Considero-o um dos maiores prosadores da língua portuguesa, e talvez o maior da literatura brasileira. É, não só um efabulador notável, mas um recriador fértil do léxico ficcional, pelo seu vasto conhecimento de línguas e do português arcaico e também pela sua imaginação prodigiosa. A tudo isto há que juntar um humor subtil, uma enorme e afectuosa atenção às coisas terrestres como se vistas da pequena altura de uma criança curiosa e grata. Dele, vou transcrever um pequeno excerto de "Miguilim e Manuelzão" que retrata o momento em que o senhor da grande cidade, ao chegar à sua fazenda, se apercebe que Miguilim, o pequeno filho do seu rendeiro, vê mal e precisa de usar óculos. Aqui vai:

"...Miguilim queria ver se o homem estava mesmo sorrindo para ele, por isso é que o encarava.

- Por que você aperta os olhos assim? Você não é limpo de vista? Vamos até lá. Quem é que está em tua casa'

- É Mãe, e os meninos...

Estava Mãe, estava Tio Terêz, estavam todos. O senhor alto e claro se apeou. O outro, que vinha com ele, era um camarada. O senhor perguntava à Mãe muitas coisas do Miguilim. Depois perguntava a ele mesmo: «- Miguilim, espia daí: quantos dedos da minha mão você está enxergando? E agora? » Miguilim espremia os olhos. Drelina e a Chica riam. Tomèzinho tinha ido se esconder.

- Este nosso rapazinho tem a vista curta. Espera aí, Miguilim...

E o senhor tirava os óculos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito.

- Olha, agora!

Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa; tudo... O senhor tinha retirado dele os óculos, e Miguilim ainda apontava, falava, contava tudo como era, como tinha visto. Mãe esteve assim assustada; mas o senhor dizia que aquilo era do modo mesmo, só que Miguilim também carecia de usar óculos, dali por diante. O senhor bebia café com eles. Era o doutor José Lourenço, do Curvêlo. Tudo podia. Coração de Miguilim batia descompassado, ele careceu de ir lá dentro, contar à Rosa, à Maria Pretinha, a Mãitina. A Chica veio correndo atrás, mexeu: «-Miguilim, você é piticégo...» E ele respondeu: «- Donazinha...»"

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