sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Salão de Recusados VI : Auto-Retratos



Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão de altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos, por taça escura,
de zelos infernais letal veneno;

Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades,

Eis Bocage em quem luz algum talento;
Sairam dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou mais pachorrento.

Bocage (1765-1805)

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Retrato

Cruel como os Assírios,
Lânguido como os Persas,
Entre estrelas e círios
Cristão só nas conversas.

Árabe no sossego,
Africano no ardor;
No corpo , Grego, Grego!
Homem, seja onde for.

Romano na ambição,
Oriental no ardil,
Latino na paixão,
Europeu por subtil:

Homem sou, homem só
(Pascal:"nem anjo nem bruto"):
Cristãmente , do pó
Me levante impoluto.

Vitorino Nemésio (1901-1978)

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O'Neill (Alexandre), moreno português,
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
Se a visagem de tal sujeito é o que vês
(omita-se o olho triste e a testa iluminada...)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase censurada...)
No amor? No amor crê (ou não fosse ele O'Neill!)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito) das maneiras mil
que são a semovente estátua do prazer

___Mas sofre de ternura, bebe de mais e ri-se
___do que neste soneto sobre si mesmo disse.

Alexandre O'Neill (1924-1986)


2 comentários:

  1. Uma boa selecção. É para continuar?
    Não me lembrava do poema de Nemésio.

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  2. Os auto-retratos,não;mas os "Recusados",sim.
    Obrigado.

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