domingo, 17 de janeiro de 2010

Como de Camus passei a Cioran, passando por O'Neill



Neste domingo, de amena temperatura, que mal parece de Janeiro, vou pela rua Garrett, com um objectivo bem definido: comprar na Fnac o último livro, inacabado, de Albert Camus - "Le Premier Homme". O manuscrito estava na mala do escritor , dentro do carro acidentado, onde perdeu a vida, juntamente com o editor Gallimard. A mulher tinha optado por não o publicar, mas a filha, Catherine, decidiu editar a obra inacabada, em 1994. Mesmo assim, grande parte dos críticos literários consideraram o romance uma obra-prima. Nunca o li e estava com grande vontade de o comprar, até porque era um dos poucos ou o único livro de Camus que não lera. Já na Fnac, percorro, atenta e milimetricamente, as prateleiras, e nada. O autor de "A Queda" tinha sido avidamente comprado e, por junto, restavam apenas 2 exemplares de "L'Homme Révolté".

Desanimado, procuro compensação. Acabo por trazer de Alexandre O'Neill "Anos 70 - poemas dispersos" que lera no DL, mas não tinha em livro; e de E. M. Cioran "Ébauches de Vertige" que, só depois me apercebo, contém excertos do volume "Écartelement", livro que eu já tinha. Mas vou lendo. Respigo de Cioran, uma amostra do que poderia ter sido o início de um romance de terror, não fosse o autor um preguiçoso confesso da escrita continuada e persistente e que, praticamente, só nos deixou admiráveis aforismos e pequenas reflexões, e memórias. De Camus, por exemplo, nunca gostou muito.

Mas aqui vai o texto de Cioran, em tradução livre e despreocupada de domingo:

"Paris acorda. Nesta manhã de Novembro, ainda está escuro: avenida do Observatório, um pássaro, um único, ensaia o seu cantar. Paro e escuto. De repente, uns grunhidos nas proximidades. É impossível saber donde vêm. Avisto entretanto dois ¨clochards¨ que dormem debaixo de uma camioneta. Um deles deve ter tido um pesadelo. Afasto-me rapidamente. Na ¨Place Saint-Sulpice¨, num urinol, dou com uma velhinha semi-nua. Dou um grito de horror e precipito-me para dentro de uma igreja, onde um padre corcunda, com olhar maléfico explica, a uma quinzena de deserdados de idades muito diversas, que o fim do mundo está próximo e o castigo será terrivel."

7 comentários:

  1. Uma delícia! Obrigado. Registo mais este nome (E.M.Cioran) que não conhecia.
    Acho até que é capaz de ter ficado a ganhar com a troca. Tenho tendência para embirrar com as obras póstumas. São uma falta de respeito pelos autores. É uma questão de princípio. Não gosto de edições póstumas.
    Melhores cumprimentos.

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  2. Caro "c.a.": Cioran (1911-1995)de quem falei, aqui no "Arpose", nas "Citações V",é um autor que se deve ler com conta, peso e medida...
    É um niilista provocatório, mas ajuda-nos a situar a nossa posição pela obrigação, por vezes,de pensarmos o contrário: o que é saudável.
    Tem duas obras de que gosto particularmente: "de l'inconvénient d'être né" e "la tentation d'existir", ambas da colecção "idées/gallimard". E o 2º foi traduzido na "Relógio de Água-colec.Antropos",com o título "A Tentação de Existir". A tradução, feita por Miguel Serras Pereira e Ana Luisa Faria, é excelente. Bom proveito!
    Sobre edições póstumas não tenho uma posição definida. Acho que há casos e casos. Se não as houvesse, teriamos perdido grande parte da obra do poeta Cavafy,mas, e em boa verdade, dispensaríamos o que se tem publicado,postumamente, de Vergílio Ferreira...

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  3. Obrigado pela orientação. Vou procurar. Gosto de niilistas provocatórios, aliás, gosto muito de provocatórios, niilistas ou não. Nada melhor que uma provocação para nos estimular as células cinzentas... :-)
    E tem razão, em matéria de edições póstumas: há casos e casos.
    Não conheço o poeta Cavafy. Tenho uma relação difícil com a poesia: umas vezes leio e, de imediato, gosto muito (tipo «coup de foudre») outras não consigo sequer entender, quanto mais gostar. Confesso-lhe que me sinto um pouco anormal...

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  4. E vem por aí um "novo" Vergílio, penso que de 1940 e tal...

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  5. Para MR: e, se calhar, a culpa não é dele...

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  6. Claro que não. Deixou a obra nalguma «arca» e se lá estava é porque o autor nunca a quis publicar. E agora fizeram aquela grande «descoberta».
    Vergílio Ferreira tem um romance publicado que renegou. Espero que não seja republicado.
    Acho que o Estado devia normalizar esta caça às arcas e não permitir a reedição de obras renegadas.

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  7. O "voyeurismo" (às vezes, necrófilo)sempre foi uma das maiores tentações do homem.Mas também não é de ignorar a cupidez e interesses materiais...

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