quarta-feira, 13 de abril de 2016

A par e passo 164


Saí de minha casa para espairecer através da marcha e dos olhares variados que ela traz consigo. Quando avançava pela rua onde moro, fui subitamente possuído por um ritmo que se impunha a mim próprio, e que me provocava a impressão de um funcionamento estranho. Como se alguém se servisse da minha máquina de viver. Um outro ritmo veio então acrescentar-se ao primeiro e combinar-se com ele; e aí se estabeleceram não sei que tipo de relações transversais entre estas duas leis (tento explicar-me o melhor que posso). Este combinava o movimento das minhas pernas andantes com não sei que canto que eu ia murmurando ou, antes, que se murmurava por meio de mim. Esta composição tornou-se mais e mais complicada, e ultrapassou em breve na sua complexidade tudo aquilo que eu poderia, racionalmente, produzir segundo as minhas faculdades rítmicas normais e úteis. Então, a sensação de estranheza, de que falei, tornou-se penosa, quase inquietante.
Eu não sou músico; ignoro inteiramente a técnica musical; e eis que eu estava em vias de um desenvolvimento em várias partes, de uma complicação que mesmo um poeta tem dificuldade em imaginar. Dizia-me que deveria ter havido um erro na pessoa escolhida, que esta graça se enganara no ser, porque eu nada poderia fazer desse dom - que, num músico, teria o seu valor próprio, forma e duração, enquanto que estas partes, que se misturavam e delineavam, me ofereciam, inadequadamente, uma produção cuja sequência sábia e organizada me maravilhava, mas desesperava também a minha ignorância.

Paul Valéry, in Variété V (pgs. 139/40).


Nota: na minha leitura, este texto de Valéry tenta tornar consciente e compreensível o fenómeno da criação poética. Nas suas duas formas, de algum modo, inconscientes: do ritmo e também das palavras nascentes.

2 comentários:

  1. Humildemente, este texto fez-me lembrar uma coisa que já me aconteceu, e sei que aconteceu a outras pessoas: sonhar de noite (a dormir) com uma música lindíssima. E ao acordar não só não nos conseguimos lembrar bem da música, como, mesmo que consigamos lembrar-nos, somos incapazes de a desenvolver ou escrevê-la. Boa tarde!

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    1. Muito interessante essa sua experiência, Margarida. Não tenho nenhuma semelhante. Apenas de paisagens bonitas, de textos e fragmentos de poemas que, acordado, também não consigo reproduzir. Quanto ao ritmo e palavras nascentes (que não sei donde vêm) acontece-me com alguma frequência..:-)
      Boa tarde!

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