Memórias do lado materno: o avô
Por vezes, destacamos, entre muitos, aqueles que se fixaram na nossa memória de modo particular. Não será, certamente, menosprezo por todos os que nos acompanharam e enriqueceram na nossa vida. Neste "post" é o avô materno que leva a dianteira, não apenas pelo carinho que a foto com o coelho - do texto anterior - preservou para a posterioridade como os valores que, assumidamente, sempre transmitiu.
Para além da matriz "bi-geográfica", crescemos num universo repartido entre credos diversos, o luterano e o apostólico romano. O avô de Leverkusen era luterano, o avô paterno, da aldeia fronteiriça dos domínios do Arcebispo de Colónia, era, obviamente, católico. Curiosamente, e contrariando o "pessimismo antropológico" dos luteranos, de que ouvia falar a partir da vivência em Portugal, relacionamos com a casa materna, luterana, uma aprendizagem abrangente: afectos, valores, civilidade e, sobretudo, a noção do dever. Na casa do avô luterano havia um calendário com versículos da Bíblia, repetindo-se, frequentemente, uma máxima que se apresenta na imagem seguinte.
Foi, certamente, esse refúgio divino que orientou o espírito na mudança de Elbing para Leverkusen, assim como os tempos difíceis da crise mundial de 1929. A desvalorização galopante da moeda obrigava a avó a ir receber o salário semanal à hora do almoço, junto ao portal principal da fábrica, em vez de esperar até ao final do dia, a fim de conseguir comprar mais alguns mantimentos. Ora, convém recordar o valor do papel de moeda de então.
Sem recordações de grandes lamentos sobre o passado, o que nos ficou da casa do avô materno foram, sem dúvida, lições positivas da vida. Nascemos num hospital de Leverkusen, completamente destruído em 1945 e que recuperara as condições para receber doentes por volta de 1947. As recordações vivas da casa do avô são, obviamente, posteriores. Dentro da planta mental da casa, era, sem dúvida, a cozinha, com um espaço considerável, o centro do mundo. A janela enorme para o quintal, os móveis sólidos feitos pelo tio marceneiro, a presença da avó, calada, a cuidar dos aspectos essenciais à sobrevivência moldaram os ritos. Na memória ficaram os jogos com o avô. As saídas para apresentar a neta aos amigos da cidade: o relojoeiro, o chapeleiro e, sobretudo, o vendedor de peixe fresco, o Senhor Hissen, que satisfazia os desejos longuinquos do avô. Vindo do Báltico para a Renânia, ficara-lhe a memória do peixe, especialmente do "Zander" - (sander lucioperca) - que, por vezes, o amigo arranjava. Foi lá que comemos o primeiro peixe frito filetado. Dos restantes comerciantes ficaram imagens mentais de artigos: um primeiro colar e um chapéu-de-chuva, ofertas do avô que o tempo levou.
Sucede que o avô nunca saía sem o chapéu e a bengala, a condizer com o seu arranjo matinal de camisa e gravata. Ficou, aliás, um dito dele que pronunciava antes de sair de casa: "mein Hut, mein Stock, mein Regenschirm" - (meu chapéu, minha bengala, meu chapéu-de-chuva). Ainda hoje o repetimos para nos certificar dos objectos necessários a levar antes de sair de casa.
A afabilidade com que nos tratava tinha, obviamente, uma rigidez de princípios. A falta de educação, de respeito, de trabalho e estudo, por parte dos netos, eram falhas que o avô não admitia, provocando-lhe a ira que, para nós, era incompreensível. Aliás, dos oito netos abaixo reproduzidos, a que posteriormente se juntaram mais duas, fazia questão de os reunir, no final do ano lectivo, para fazer a sua apreciação - e caso necessário sermão - dos diplomas escolares que as criaturinhas entregavam ao avô por ordem hierárquica de idade.
O avô podia, eventualmente, desculpar uma nota inferior a 2 (numa escala de 1 a 6, da melhor para a pior nota) em disciplinas do saber, não aceitando, de todo, notas inferiores a 2 nas chamadas notas de cabeçalho: comportamento/aplicação no estudo/participação nas aulas.
Com efeito, no nosso universo não cabe, de todo, um "pessimismo antropológico" atribuído aos luteranos. E, repetindo a essência de uma epígrafe que utilizamos num dos últimos trabalhos académicos, foi pelo Báltico que recebemos uma abertura ao mundo, preparando-nos para vivências em países distantes.
Post de HMJ
Parabéns! Pelo texto e pela família que o proporcionou.
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