quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Recuperado de um moleskine (27)


O homem foi despejando a biografia sucinta, por telemóvel, em voz não muito alta, mas o suficiente para o ouvirmos, todos, na sala de espera do consultório. Reformado de uma companhia de seguros, o António V. queria saber se lhe teriam descontada, na fonte, e do subsídio de férias, duplamente, a pensão de alimentos que vinha pagando à filha, de forma iníqua, nos últimos anos (a filha já teria 41 anos...). E o homem reafirmava que não conseguia anular a situação, por causa dos problemas burocráticos que se iam levantando, um atrás do outro. Não cheguei a perceber se, as respostas que recebeu, o deixaram tranquilizado... Depois, ainda fez outro telefonema por causa de umas obras a ajustar numa casa dele, no Funchalinho. Que descreveu detalhada e exaustivamente.
Chamaram-no, entretanto, para a consulta. Levantou-se penosamente e, com a ajuda de duas canadianas, encaminhou-se, muito lentamente, com o corpo quase em ângulo recto, para o consultório. Os 5 metros da distância demoraram cerca de 10 minutos a serem percorridos. Não fiquei indiferente a esta pequena via sacra.
Meia hora depois, fomos nós chamados pelo médico, que era nosso amigo. Não resisti a falar-lhe do António V.. Ele deu uma gargalhada, e disse: "Não liguem, o homem é um fantasista! E tem um filho, sim, mas nenhuma filha..."
Será que os telefonemas que ele fez, existiram mesmo? Ou os diálogos terão sido apenas mais uma ficção compulsiva?

4 comentários:

  1. O dito António sentiu-se de certeza importante naquele momento. Sabia que mesmo não querendo, todos os ouvidos estavam nele.

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    1. Absolutamente.
      Como diz a Paula, eu penso que o António V. o que queria era atenção...

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  2. Pequenos mistérios, que vão ficar para
    pequenas histórias, a contar.
    Boa tarde.

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    1. Ele há casos intrincados de que nunca saberemos a verdade.
      Retribuo!

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