domingo, 15 de maio de 2011

Linhagens 6

Episódios de viva voz

Por vezes, parece-nos que a discrição se devia sobrepor à revelação de episódios contados de viva voz. No entanto, e atendendo ao progressivo emudecimento dessas vozes que nos transmitiam, em primeira pessoa, a sua versão de uma parte da História da Europa, julgamos que o desaparecimentos destes testemunhos autoriza um registo para memória futura. Pretendemos, assim, dar continuidade à rúbrica das Linhagens com a memória de relatos sobre a vivência pessoal da 2ª Guerra Mundial.
Num dos textos anteriores falávamos da destruição da tipografia durante a fase final da 2ª Guerra, aquando dos bombardeamentos de Colónia. Ora, o compositor da tipografia já estava, há muito, longe da sua cidade e do seu ofício. Pouco depois do início da guerra começara uma "viagem" involuntária para países distantes. Como tantos outros, entre os 20 e os 30 anos da sua vida, não conheceu tranquilidade, nem sabia o desfecho do dia seguinte. Houve, no entanto, uma força divina qualquer que o encaminhou para um exercício diário menos "violento", i.e., o de motorista de oficiais do exército alemão na campanha da Rússia. Conduziu, ainda, alguns oficiais revoltosos e condenados a 20 de Julho de 1944, por ventura no carro que abaixo se reproduz (?).


Uma mão divina também o desviou do avanço para Estalinegrado em direcção a uma cidade omnipresente na sua, nossa, memória: Dnjepropetrowsk.



Daí seguiu em direcção ao mar Azov. Não falou em Smolensk, cidade presente nas obras de Heinrich Böll, também ele da Colonia Agrippina. Sem conseguir precisar, há um lugar algures na Rússia, pelas inscrições visíveis, em que a postura "oficial" pareceu amena. A imagem esconde, obviamente, os relatos de toda uma experiência de privações extremas: frio, fome e incerteza do dia seguinte. Mesmo assim, ainda dava para falar da paisagem, do encontro com as populações e, sobretudo, o facto de nunca ter entrado em combates directos.


A fuga, preanunciada pelos oficiais que conduzia, foi a mais rocambolesca que se possa imaginar. Hospitalizado com tifo, num campo de prisioneiros, foi libertado, indocumentado, com um pão para sustento, com pouca probabilidade de sobrevivência. Contudo, a sua costela de camponês salvou-o com as defesas que a terra ensina. Caminhando de noite para não ser preso novamente, alimentava-se do que a natureza fornecia. Passou a fronteira para a Alemanha num lugarejo da antiga Checoslováquia.


A partir daí foi apanhando comboios que transportavam carvão. Entrou em Colónia Agrippina, completamente destruída, em finais de 1945, esfomeado e preto de carvão. Antes de entrar na casa paterna, sem notícias há meses do seu paradeiro, pediu a um conhecido da aldeia para anunciar a sua chegada para breve.
Não temos dúvida de que o nosso compositor - de letras - seria, com o peso da sua experiência, um defensor de uma Europa de paz.

Post de HMJ

6 comentários:

  1. Todos nós somos o repertório de pelo menos três gerações: a nossa, a dos nossos pais e a dos nossos avós, mesmo que não se tenham conhecido... fomos ouvindo, fomos escutando. É um crime morrer sem contar aos outros esses pedaços da memória.

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  2. A secção das memórias terá continuidade. O apoio expresso por JAD ainda inspirou outras recordações. Semanalmente, aqui no Arpose.

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  3. Li os anteriores, que gostei bastante e agradeço....

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  4. Muito interessantes. E eu que pensava que estas «Linhagens» iam ficar só pela tipografia...

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  5. Para MR:
    de facto, à medida que vou pensando nesta secção das Linhagens, vão aparecendo fiapos de recordações. Agradeço o interesse de JAD e MR e, certamente, se prolongará o "folheto" de memórias.

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