domingo, 2 de dezembro de 2018

Parecer


Lembro-me de alguém, aqui há uns bons vinte anos, se ter lamentado por ser muito inseguro, embora nada o fizesse parecer. Como bem me recordo de lhe ter respondido que ele não aparentava insegurança e que, no fundo e para os outros, o importante era não o dar a perceber. Sobretudo, em funções de chefia.
Muitas vezes me perguntei se os traços de um rosto e/ou de carácter não definem e condicionam, irremediavelmente, um destino. Ainda hoje creio que sim. Há expressões faciais que despertam, nos outros, uma reacção epidérmica imediata, que tanto pode ser de simpatia, compaixão e proteccionismo, como de irritação ou desagrado.
O longo e aprofundado conhecimento do outro, no entanto, pode vir a corrigir essa primeira impressão emotiva, para a transformar, com fundamento e razão, numa apreciação objectiva das verdadeiras qualidades e defeitos reais desse outro ser humano, já mais próximo. Até porque uma expressão de candura pode esconder, muitas vezes, uma intensa perversidade; um ar fero e façanhudo pode albergar, em si, uma extrema bondade. Nada é o que é, tão simplesmente.


Os encenadores de teatro, bem como os realizadores de cinema, colam frequentemente, e talvez de forma injusta, um rosto a determinados papéis, que assim funcionam de protótipos, para os espectadores distantes e futuros. Deste modo, em sequência, os actores ficam prisioneiros de um destino e a desempenhar personificando, por toda a vida artística, uma simples faceta do bem ou do mal, a que raramente escapam, por causa do seu papel inicial.
Como não ver sempre nas expressões fugidias e ambíguas de Peter Lorre (1904-1964), o crápula, o cobarde e o mau? Ou como não ver na figura de Adelaide João (1927), a sempiterna infeliz empregada ou criada de servir? Das malhas do destino, por excepção, se livrou Raul Sonado (1929-2009), pela mão atenta de Fonseca e Costa, de se tornar no eterno cómico, quando o realizador lhe atribuiu (e muito bem) o papel grave e dramático do inspector Elias Santana, n'A Balada da Praia dos Cães (1986), apesar da oposição inicial de José Cardoso Pires, autor da obra em que o filme se baseou. E, curiosamente, também ele grande amigo de Solnado.


4 comentários:

  1. Gostei deste seu parecer. Quanto ao ultimo parágrafo, também
    concordo que Fonseca e Costa arriscou em escolher Raul Solnado,
    para um papel tão diferente do habitual, e que ele tão bem interpretou,
    nesse excelente filme "A balada da praia dos cães".
    Saindo do tema gostava apenas de dizer que tenho saudades destes três personagens que já não estão entre nós. Desejo-lhe uma boa semana.

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    1. Muito obrigado, Maria Franco.
      Fonseca e Costa devia ter uma intuição especial para descobrir, por trás daquele humor contagiante de Solnado, o seu sentido dramático, também, em relação à vida. Contrariado, José Cardoso Pires, inicialmente, quando viu o resultado final do filme, pediu desculpa ao amigo, por não ter confiado nele para o papel que lhe coube, e que Solnado tão bem desempenhou.
      Também lamento que já não estejam connosco.
      Boa semana, para si, também.

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  2. Fugindo do barulho das obras no andar de cima, resolvi ir
    à Torre do Tombo tentar saber alguma coisa sobre os meus
    avós, capricho meu nesta altura da vida. De uma grande delicadeza
    o funcionário com quem falei explicou-me a maneira de fazer a pesquisa.
    Mas o grande problema é perceber a escrita de 1800 e tal, pouco nítida
    e que eu já não consigo ver, mesmo aumentando a visualização.Acabei por
    desistir. Mas o propósito desta adenda ao meu comentário anterior foi ter
    ido ao Palácio Galveias onde já não ia há muito tempo. Isto para dizer
    que havia uma exposição de fotografia de Cardoso Pires por Eduardo Gageiro.
    Uma modesta serie de retratos para divulgação dos livros do escritor.
    Deviam admirar-se mutuamente.
    Ficou-me apenas a constatação que Cardoso Pires era um bonito homem.
    Surpreendeu-me as salas estarem bastantes cheias de leitores. Bom sinal.
    Fico por aqui para não alongar mais o comentário.
    Agradeço a sua paciência.

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    1. Também temos obras por aqui...é um desassossego.
      Penso que teve sorte, nos seus contactos na Torre do Tombo. Pessoas amigas e mesmo a HJM encontram, por vezes, dificuldades burocráticas ou de algumas funcionárias, deficientemente preparadas, mas também pequenos tiranetes, a atravessarem, negativamente, os seus trabalhos de pesquisa.
      Foi uma boa surpresa essa exposição em Galveias.
      Não costumo fazer publicidade, nem ele gosta, mas há uma exposição de vídeos (4) e fotografias do meu filho mais velho no MNAC, até Fevereiro.
      Entra-se pelo lado do antigo Governo Civil. Dela dei breve conta aqui. Intitula-se "LUZAZUL". Se lá quiser ir...
      Uma boa noite.

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