terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Lembrar Eugénio



Já o disse várias vezes e teimo em repeti-lo: a prosa de Eugénio de Andrade (1923-2005) é, por vezes, tão bela quanto o é a sua poesia. Ora, pois, ouçámo-lo:

Há poucos brinquedos na minha vida, mas, além do arco, do pião e da bilharda, a minha infância está cheia de sol, cheia de água. E do calor quase materno dos animais. Meu avô comprara-me uma cabra e três ou quatro merinos. E nós já tinhamos um burro e um cão, além das galinhas e do pato. Eu adorava aqueles borreguinhos com olhos de rola e, depois, a imaginação das crianças é muito vasta: o pequeno engenho feito de juncos por um primo meu facilmente se convertia em azenha. Um rego de água era o mais irreal e navegável dos rios, os bichos feitos de bugalhos e gravetos ganhavam vida por encanto. Chapinhar numa poça de água ou transformar uma cabra em cavalo persa, se isto não é felicidade, então a felicidade não existe. Os cavalos, sim, foram uma paixão minha, mas só um pouco mais tarde, dos sete para os oito anos, já em Castelo Branco, quando comecei a ver o Tom Mix no Cinema Vaz Preto. E foi ainda naquela cidade que tive isso a que talvez se possa chamar o primeiro brinquedo - uma trotineta. Ninguém se lembra já de me ter visto passar pelas ruas belo como um anjo proa. Mas com ela fui assim uma espécie de Fernão de Magalhães dando a volta ao mundo: descia do castelo e só parava no jardim do Paço, depois regressava a casa a horas do pão com compota de ginja e o sorriso da mãe - tão merecidos.


Eugénio de Andrade (19/1/1923 - 13/6/2005), in Do Silêncio à Palavra

15 comentários:

  1. Sem dúvida, um texto de uma beleza enorme!
    Uma infância feliz, mesmo com poucos brinquedos! Aqui está a prova que não é a quantidade que conta, é a qualidade. E, Eugénio de Andrade tinha a sensibilidade para saber escolher e encantar-se - o sol, a água, os animais...
    Bom dia!

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    1. É uma pena que a maior parte das pessoas, ou por mimetismo ou preguiça crónica, se limitem a reproduzir meia dúzia ou uma dúzia de poemas sempre os mesmos... Eugénio de Andrade tem tanto para re-descobrir! Até para além da poesia.
      Desejo-lhe uma boa semana, ainda que dentro das contingências.

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  2. Gosto muito da prosa de Eugénio de Andrade e o trecho que escolheu é muito belo.
    Boa semana!

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    1. Obrigado. Vale sempre a pena relê-lo..:-)
      Retribuo, com estima.

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  3. Tive um dia atarefado e só agora pude vir aqui dizer que nunca me esqueço do Eugénio de Andrade neste dia e no 13 de Junho. Sempre tive um carinho especial por ele, a sua poesia sempre me comoveu imenso e ainda mais quando comecei a ler os seu textos. Tive a sorte de o conhecer na Fundação num dia em que ele, embora doente, ficou feliz ao saber que nós tínhamos estado na Póvoa da Atalaia, na casa onde ele nasceu, antes de rumarmos ao Porto. A visita, que deveria ter a duração de 30 min, acabou por durar mais de três horas, com o Eugénio a relembrar a sua infância. Ficámos sem tempo para ir à Feira do Livro, mas que interessava isso? Foi um privilégio e uma alegria imensa: foi em Junho de 2002.
    Estive na inauguração da Biblioteca Eugénio de Andrade no Fundão e também na Casa e Jardim na Póvoa da Atalaia e em outros eventos organizados pela Câmara do Fundão. Quem sabe o APS não esteve também por lá...
    Lembro-me do Prof. Arnaldo Saraiva, do poeta António. Salvado ou do Urbano Tavares Rodrigues, para só citar estes três: eram sempre encontros muito interessantes, especialmente para leigos como eu.
    Desculpe o 'lençol'.

    Uma boa noite.
    🌱


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    1. Também tive a sorte de o conhecer pessoalmente e me cartear com ele.
      Isso explica o facto de ser um dos nomes que mais entradas tem no arquivo do Arpose.
      Algumas figuras da infeliz Fundação, que teve o seu nome, nunca me inspiraram grande confiança...
      Boa noite e bom resto de semana.

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    1. Estamos inteiramente de acordo, Margarida.
      Boa noite.

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  5. Nunca li este livro mas fiquei alerta para quando puder ir a uma livraria decente. (À MoDO DE LER, por exemplo ).
    Um abraço grato.

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    1. O texto pertence à obra "Rosto Precário", da Limiar (1979).
      Saudações amigas.

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    2. Em tempo: uma correcção, o texto só aparece em 1990, sob o mesmo título, mas no segundo volume (pgs. 358/9) da obra completa de E. de Andrade, editado por "O Jornal" - donde o transcrevi.

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    3. Fui à procura do texto e encontrei-o no #14 das obras editadas pela FEA (pgs. 128/9) no capítulo Pessoa, a Lua e os Brinquedos.
      É um livro obrigatório para quem quiser conhecer o Eugénio de Andrade: nestas entrevistas ele fala de tudo com uma sinceridade desarmante.
      Tenho a 6ª edição, de Outubro/95.
      Escusado será dizer que fiquei a relê-lo...
      Boa noite.
      🌿

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    4. Obrigado pelas indicações.
      Bom dia.

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  6. Uma bela recordação! Gostei bastante. Apenas conhecia a poesia
    de E. de Andrade. Boa noite.

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    1. Vale a pena ler os dois livros de prosa do Poeta.
      Um bom dia.

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