quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Divagações 177 (seguidas de uma curtíssima antologia)

 

Não se pode dizer que eu seja um entusiasta de prefácios, a livros. Mas aprecio imenso um bom prefácio e que tenha a qualidade adaptada ao conteúdo, enriquecendo-o. Como é o caso da maior parte dos prólogos de Jorge de Sena. Ou de alguns saborosos prefácios camilianos, como esta introdução de A Brasileira de Prazins, com que me cruzei, há pouco. E aqui vai o seu início:

Entre as diversas moléstias significativas da minha vèlhice, o amor aos livros antigos - a mais dispendiosa - leva-me o dinheiro que me sobra da botica, onde os outros achaques me obrigam a fazer grandes orgias de pílulas e tizanas. E, quando cuido que me curo com as drogas e me ilustro com os arcaísmos, arruíno o estômago e enferrujo o cérebro em uma caturrice académica.
Constou-me aqui há dias que a snr.ª Joaquina de Vilalva tinha um gigo de livros vélhos entre duas pipas na adega, e que as pipas, em vez de malhais de pau, assentavam sobre missais. O meu informador denomina "missais" todos os livros grandes; aos pequenos chama "cartilhas". Mandei perguntar à snr.ª Joaquina se dava licença que eu visse os livros. Não só mos deixou ver, mas até mos deu todos - que escolhesse, que levasse. Examinei-os com alvoroço de bibliómano. Eles, gordurosos, húmidos, empoeirados, pareciam-me sedutores como ao leitor delicadamente sensual se lhe figura a face da mulher querida, oleosa de cold-cream, pulverisada de bismuto. (...)


8 comentários:

  1. Tenho esse livrinho, numa edição de 1974. Mas não identifica o autor do prefácio, pois não? Ou eu não vi bem (fui espreitar, agora). Este bocadinho realmente é muito bom!

    Continuação de boa semana:))

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    1. O meu exemplar, Isabel, da "Colecção Lusitánia" (3ª ed. da obra), também não refere o autor da introdução. Mas é com certeza de Camilo.
      Obrigado. Retribuo, com estima.

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  2. É um prefácio de uma qualidade singular !

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    1. É verdade. E Camilo continua ser, pelo menos para mim, uma fonte de prazer na leitura de muitas das suas obras.

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  3. Um dos primeiros Camilo que li. E acho que nesta edição (ou numa semelhante).
    Um autor que se lê sempre com um prazer renovado.
    Bom dia!

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    1. Felizmente que Camilo teve que ser mais prolífico do que Eça, para nosso prazer.
      Boa tarde.

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  4. Quem sabe escrever deve deixar a mão trabalhar. Camilo passou a maior parte da vida a escrever… e para além dos textos literários escrevia aos amigos (e aos menos amigos) longas cartas que são também um prazer encontrar e ler.
    Gosto deste prefácio porque me identifico nele. Foi por essa paixão de Camilo - amante de livros, como eu - que Ricardo Pinto de Matos o escolheu para prefaciar o seu útil Manual Bibliographico Portuguez.

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    1. Mas depois da mão trabalhar, é sempre avisado o espírito sobrevoar as possíveis incorrecções e corrigi-las, for o caso.
      Também tenho o precioso livro de Pinto de Matos, que me custou, nos anos 80 (?), Esc. 7.800$00, na rua do Alecrim.

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