sexta-feira, 20 de maio de 2011

Notas de Leitura II : Almeida Mattos - "A Ilusão do Breve"


Mais do que o artifício de um diálogo inexistente, é a memória, o labor da sintaxe e a geometria de um lúcido sabor barroco aquilo que concretamente designa esta recolha de poemas de António de Almeida Mattos: uma espécie de ofício do depois, quando passado o latejar do sangue a ternura se promove a êxtase do entretanto:
"Há uma urgência de ti que me procura
ao mais pequeno ensejo inusitada.
E em todo o lugar é sempre altura
de acender a luz à madrugada."
Falamos de uma escrita de ressonâncias antigas, presa à exactidão do desejo e ao apetite dos sentidos, mas sempre sabiamente expurgada do feio e do banal; uma poesia atenta à densidade das sílabas, quase táctil e rente à voz, como se a mão escrevesse o próprio sentir dizendo.
Micropaisagem de afectos, A Ilusão do Breve encerra os recursos próprios da ternura, o húmido da pele e o irregular frémito da vida, como se do rigor das palavras, contidas na linearidade interrompida dos versos, surgisse, em vez de música, uma citação de silêncio a tornar mais límpido o vibrato de uma requintada poesia de amor tardio:
"De tudo quanto nada acontecido
fica na luz difusa quase luar
-seria nos teus olhos que nascia-
do que não sendo fosse bom ter sido
breve que seja o tempo a conjugar.
Como se ao velho sonho de menino
alguém trouxera a lua pra brincar."

Dir-se-ia que a poesia escuta - ou é como se escutasse - a intimidade que se acolhe sob a nitidez das sílabas e daí nascesse uma linguagem, ciciada, onomatopaica quase, murmúrio em forma de carícia, que cresce por dentro do dizer, como se do respirar dos versos se fruísse "pêlo a pêlo" a cartografia precária do instante e que, depois de consumado o acto, o silêncio se transformasse, não em tristeza mas em memória de saberes complexos da periferia do corpo e em ritmos com sabor a frutos de outono.
Espelho em que o amador a si mesmo se revê, A Ilusão do Breve torna o leitor cúmplice do seu próprio dizer e faz do instante uma porção de eternidade, que exorciza a certeza da finitude e rasga, a toda a largura da escrita, uma janela de luz de onde se pode sorrir para o nada, cavalgando de carícia em carícia "o liso sobressalto do desejo".
post de H. N.

P. S. : grato reconhecimento a H. N., por mais esta "leitura" atenta.


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