Mais do que o artifício de um diálogo inexistente, é a memória, o labor da sintaxe e a geometria de um lúcido sabor barroco aquilo que concretamente designa esta recolha de poemas de António de Almeida Mattos: uma espécie de ofício do depois, quando passado o latejar do sangue a ternura se promove a êxtase do entretanto:
"Há uma urgência de ti que me procura
ao mais pequeno ensejo inusitada.
E em todo o lugar é sempre altura
de acender a luz à madrugada."
Falamos de uma escrita de ressonâncias antigas, presa à exactidão do desejo e ao apetite dos sentidos, mas sempre sabiamente expurgada do feio e do banal; uma poesia atenta à densidade das sílabas, quase táctil e rente à voz, como se a mão escrevesse o próprio sentir dizendo.
Micropaisagem de afectos, A Ilusão do Breve encerra os recursos próprios da ternura, o húmido da pele e o irregular frémito da vida, como se do rigor das palavras, contidas na linearidade interrompida dos versos, surgisse, em vez de música, uma citação de silêncio a tornar mais límpido o vibrato de uma requintada poesia de amor tardio:
"De tudo quanto nada acontecido
fica na luz difusa quase luar
-seria nos teus olhos que nascia-
do que não sendo fosse bom ter sido
breve que seja o tempo a conjugar.
Como se ao velho sonho de menino
alguém trouxera a lua pra brincar."
Dir-se-ia que a poesia escuta - ou é como se escutasse - a intimidade que se acolhe sob a nitidez das sílabas e daí nascesse uma linguagem, ciciada, onomatopaica quase, murmúrio em forma de carícia, que cresce por dentro do dizer, como se do respirar dos versos se fruísse "pêlo a pêlo" a cartografia precária do instante e que, depois de consumado o acto, o silêncio se transformasse, não em tristeza mas em memória de saberes complexos da periferia do corpo e em ritmos com sabor a frutos de outono.
Espelho em que o amador a si mesmo se revê, A Ilusão do Breve torna o leitor cúmplice do seu próprio dizer e faz do instante uma porção de eternidade, que exorciza a certeza da finitude e rasga, a toda a largura da escrita, uma janela de luz de onde se pode sorrir para o nada, cavalgando de carícia em carícia "o liso sobressalto do desejo".
post de H. N.
P. S. : grato reconhecimento a H. N., por mais esta "leitura" atenta.
Gostei desta leitura de um livro de que tenho alguns poemas seleccionados para colocar no Prosimetron.
ResponderEliminarLindos os primeiros quatro versos transcritos.
ResponderEliminarFico contente, MR.
ResponderEliminarAinda bem, Miss Tolstoi.
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