Memórias do lado materno 1: De Elbing para Leverkusen
Os leitores atentos já localizaram os antigos domínios teutónicos da Prússia de Leste como uma matriz das nossas linhagens. A outra, como as heranças genéticas costumam ser "bi-geográficas", será objecto de memórias posteriores.
A família do lado materno tem, de facto, origem na Prússia de Leste, designadamente, na cidade de Elbing, com uma residência que se me fixou na memória: a "Montanha Mágica", sem me lembrar do número da porta. Haverá mais semelhança possível com um romance de Thomas Mann?
A postura digna da família do lado direito na foto não esconde as dificuldades ocultas. Com cinco filhos, nascidos entre 1913 e 1921, a vida não seria fácil para um sapateiro de ofício, embora se tratasse de uma casa "bem governada" como daremos conta depois. Os primeiros três filhos nasceram pouco antes ou durante a 1ª Guerra em que o patriarca participou como soldado, o mesmo que viria a assistir à 2ª Guerra Mundial e ao acolhimento da sua filha mais velha após a fuga em 1945 relatada no "post" anterior. Em data próxima de 1920 terá havido, por um desenvolvimento no pós-guerra da Fábrica hoje conhecida como a Bayer, uma tentativa de recrutamento de novos operários em zonas tão longínquas como a Prússia de Leste. O patriarca, recém-chegado da 1ª Guerra, não resistiu ao apelo e, certamente, às condições oferecidas. Contrato de trabalho e uma casa para a família alargada, em Leverkusen, no actual estado do Norte da Renânia Vestefália.
Uma monografia, do nosso acervo, dá conta da evolução da cidade de Leverkusen, sempre à sombra do progresso da fábrica das "Aspirinas" e não só. Sem pretender branquear o fim último do capitalismo, sucede que o desenvolvimento da empresa não excluía a vertente comunitária, social e cultural. De facto, a fábrica da Bayer cresceu, em Leverkusen, não apenas com a expansão das suas instalações fabris, mas também com a edificação de um núcleo urbano muito próprio, incluindo não apenas residências para os seus empregados como também uma casa de cultura, um grande armazém tipo Grandela e uma organização de espaço urbano que consideramos agradável e equilibrado.
Sem poder precisar onde a família se instalou à chegada de Elbing, existem fotografias das casas construídas pela Bayer - as chamadas Colónia I, II e III - que, conforme o estatuto dos empregados: operários, técnicos e doutores, tinham uma localização, construção e área de habitação diferentes. A nossa memória da casa dos avós maternos difere um pouco da imagem reproduzida, no que ao edificado diz respeito, mais apropriado aos técnicos superiores da fábrica, embora a foto corresponda, na perfeição, ao belíssimo quintal nas traseiras.
Para os mais afortunados e, certamente, menos dados a uma casa construída ao gosto individual havia, inclusivamente, uma casa modelo, recheada de mobília vendida pela própria fábrica da Bayer, através dos seus armazéns, como a foto demonstra.
Da casa do avô materno, na colónia mais modesta, salvou-se o contrato de arrendamento que abaixo se reproduz em parte.
Recortamos, por graça, a parte que se refere aos animais que o inquilino poderia ter, i.e., pequenos animais, excepto porcos! Como as casas só tinham dois andares, o inquilino do rés-do-chão tinha direito ao quintal, com os trabalhos inerentes da sua manutenção. Foi assim que o deslocado de leste reencontrou o seu espaço - urbano/rural - dedicando-se à criação de uns coelhos especiais.
Lembramo-nos, a propósito, de um início de um romance de Camilo que reza assim: "Os meus amigos de certo não sabem o que é caçar coelhos na neve?" No caso presente seria: "não sabem o que é criar coelhos com orelhas tão papudas"!
Ora, o referido contrato de arrendamento também previa que, dadas as insuficiências de habitação, em 1929, o inquilino teria que aceitar um sub-aluguer imposto pela Bayer. Que se saiba, o avô apenas acolheu, em 1945 e de bom grado, a sua filha mais velha que, com os seus três netos mais velhos, sobrevivera à fuga de civis relatada anteriormente.
Não pretendemos iludir a outra face do império empresarial. O patriarca e os seus cinco filhos tornaram-se empregados da Bayer e, com o seu esforço e a sua dedicação, conseguiram reconstruir a sua vida no pós-guerra. Para as almas mais sensíveis, que abandonaram a fábrica em 1945, ficou, no entanto, a experiência dolorosa de conviver, durante a 2ª Guerra, com a presença de cidadãos dos territórios ocupados pelas tropas do 3º Reich, obrigando-os a trabalhos forçados, na fábrica da Bayer, e suprimindo, assim, a falta de mão-de-obra masculina deslocada para as várias frentes de batalha.
Os bombardeamentos aliados, no final de 2ª Guerra e centrados nas instalações fabris, obrigaram a uma evacuação da população civil de Leverkusen. De um desses ataques aéreos mortíferos ficou apenas um fiapo de uma conversa ocasional em que se falava da rua principal de Leverkusen, junto à entrada principal da fábrica das pastilhas, dando conta da destruição e da assistência aos mortos e feridos.
De tudo o que foi dito guarda-se, ainda, a correspondência de uma habitante de Leverkusen, endereçada ao seu soldado distante algures na Rússia.
Post de HMJ