sábado, 18 de junho de 2011

No primeiro ano da morte de Saramago


A unha do meu dedo anelar esquerdo partiu-se-me, inexplicavelmente, na vertical, hoje. Mas nem tudo vem de cima, nem dos céus. Saramago era uma alcunha que a família do Escritor tinha. Ao registar o filho, o pai defrontou-se com um escriturário já bêbado, que acrescentou a José de Sousa, o apelido da alcunha: Saramago. Assim ficou. Por vezes, aquilo que nasce horizontal, na horizontal volta a ficar, para sempre. Sejam corpos ou cinzas. José Saramago morreu, exactamente, há um ano. Lembrêmo-lo:
"...Nos altos céus, os anjos estão debruçados dos parapeitos das janelas ou daquela varanda corrida, com balaústres de prata, que dá uma volta inteira mesmo por cima do horizonte, em dias claros vê-se bem, e apontam, e chamam-se uns aos outros, estouvaditos, está-lhes na idade, e um deles, mais graduado, vai a correr chamar dois ou três santos antigamente ligados a coisas de agricultura e pecuária, para que venham ver o que vai pelo latifúndio, um desassossego, magotes de gente escura pelas estradas, onde as há, ou pelos quase invisíveis carris do mato, a atalhar caminho, ou em linha, pela estrema das searas, como um carreiro de formigas pretas. Há muito tempo que os anjos não se divertiam tanto, os santos fazem suaves prelecções sobre plantas e animais, já a memória lhes falha um pouco, mas ainda vão dizendo como cresce o trigo e se coze o pão, e que do porco tudo se aproveita, e que se queres conhecer o teu corpo abre o teu porco, porque iguais são. A afirmação é ousada e herética, põe em causa os escrúpulos do criador, que, não sabendo que mais inventar, tendo de fazer o homem repetiu o porco, mas se tanta gente o diz, verdade será. ..."
in Levantado do Chão, (pg. 145), 1982 (3º edição).
Quem disse que José Saramago não era um homem religioso?

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