Memórias do lado paterno: em terras do Senhor Arcebispo
Apenas separada pelo Reno, Leverkusen do lado direito e situado nos antigos domínios do Grão-Ducado de Berg, a aldeia de Merkenich, do lado esquerdo do rio e a norte da cidade de Colónia, constava já do mapa de Mercator, no início do século XVI.
Reza a história que os arcebispos não desdenhavam o poder e a propriedade dos terrenos. Recordo que o pai dizia de certas pessoas da aldeia, não sendo obviamente o nosso caso (!), que apenas tinham conseguido construir a casa "em terras da igreja". Tal desventura significava que "compravam" o solo por um período renovável de 99 anos, findos os quais, tinham que re-adquirir a terra. Pertencendo a uma família com "pergaminhos" e residência, desde o século XVIII, na aldeia, o terreno era nosso. A casa do avô paterno ficava na rua principal que, em tempos remotos, teria sido a antiga "via romana" e que ligava a Agrippina Colonia à setentrional Novaesium, actual cidade de Neuss.
No entanto, a minha vida na aldeia passou-se na casa dos bisavôs, cujo quintal confrontava com os terrenos e o edifício da Escola.
Herdei da bisavó o segundo nome, assim como a persistência de carácter, segundo constava dos anais familiares. O bisavô era, nos tempos livres, o "Kirchenschweitzer" da aldeia, uma espécie de acólito que, com manto vermelho, superintendia os serviços religiosos. Ora, uma herança católica tão pesada, nem sempre contribuiu para uma vida pacífica.
A "culpa" - ou "pecado original" - teria sido do pai que, durante a guerra, conheceu, através de "um camarada da tropa" e futuro cunhado, aquela que viria a ser a minha mãe. Para as aldeãs em idade casadoira, à espera dos soldados sobreviventes - porque da turma do pai com cerca de trinta rapazes regressaram apenas metade - a escolha paterna, fora da aldeia, tinha dois defeitos: era uma mulher bonita e protestante. Assim, da vivência na aldeia constam as "pequenas vinganças da contra-reforma" que, embora subtis, eram frequentes. O padre da aldeia, contrariando o previsto legalmente, obrigou a mãe a tornar-se apostólica romana antes de casar, para além de ter de atestar que iria educar os seus descendentes na fé dominante nas terras do arcebispo de Colónia. Quando, aos 15 anos e em idade prevista pela lei, declarei num notário que não pretendia manter-me nas fileiras da fé católica, os pais receberam a visita do Senhor Padre, meu professor de Religião durante anos na escola da aldeia. Sem atacar, directamente, a mãe, tinha encontrado um argumento de peso. A filha tinha arranjado uma amiga pouco recomendável, outra protestante (!), filha de "gente" que invadira a aldeia no pós-guerra com a instalação de indústrias várias, nomeadamente a fábrica de automóveis da Ford.
Ainda hoje, passeando pela velha aldeia durante as férias, sou conhecida, não pelo nome, mas como filha de fulano, i.e., do João, ignorando, subtilmente, fulana, protestante e forasteira. E assim, por herança, tornei-me forasteira para o resto da vida.
Post de HMJ
A foto dos bisavós, muito sorridentes, é um espanto.
ResponderEliminarEspantosa essa obrigação de "conversão". Ainda não era a época da propaganda do diálogo entre as religiões.
Para MR:
ResponderEliminarSorridentes, em dia de festa, sem esconder as "mãos de trabalho", como diz APS.
A "conversão" coincidiu com o "domínio" de Pio XII, para mim, de má memória.