A estela e o medalhão existentes na Praça Jacob Rodrigues
Pereira, em Peniche, pressupõem-no nascido nas Berlengas, mas o primeiro
reeducador de crianças surdas e mudas em França, que sempre se afirmou português,
nasceu de facto em Espanha, na aldeia de Berlanga, em 1715 e morreu em Paris em
1780, sem que conste ter estado alguma vez em Portugal.
Jacob Rodrigues Pereira – Homem de bem, judeu português do
séc. XVIII, primeiro reeducador de crianças surdas e mudas em França, estudo biográfico de Emílio Eduardo Guerra Salgueiro,
editado em 2010, pela Fundação Calouste Gulbenkian, proporciona ao leitor,
através da profusa documentação que o integra, não apenas o conhecimento das
várias facetas da vida e da actividade daquele judeu português, mas também uma
visão aprofundada acerca da condição dos judeus em Portugal, e em Espanha, no
século XVIII, sobre o “modus operandi” dos inquisidores e sobre o comportamento
das vítimas: as suas fraquezas, os seus actos de delação, o sofrimento, a
iniquidade das acusações, a perversidade das penas.
Para tal, a obra de Emílio Salgueiro remonta, de facto, a 13
de Abril de 1699, quando “um grupo de quarenta e oito portugueses, na
maioria de Trás-os-Montes, embarca em Lisboa no barco genovês N. Srª de la
Coronada (...) com destino ao porto de Livorno, em Itália”, naquilo a que
poderíamos chamar uma fuga para a dignidade.
Conquanto o biografado, já nascido em Espanha, não tenha
vivido o período mais negro da vida dos seus pais, e que se seguiu à prisão
destes, pela Inquisição, em Cádis, as informações e os documentos, patentes nesta obra, e que nos dão conta quer das
‘memórias’ apresentadas à Academia Real das Ciências de Paris, quer dos
registos notariais com que procurou comprovar e atestar o método de reeducação
que desenvolveu, quer a forma como preparou a apresentação do seu aluno Azy
d’Étavigny na corte de Luís XV, bem como os seus projectos de construção de uma
máquina aritmética, de um engenho que suprisse a acção do vento nas grandes
embarcações, em situações de calmaria, de um dicionário das 13 principais
línguas da Europa e, também, da sua intensa actividade diplomática, na qualidade de “agente das nações portuguesas”,
isto é , de representante das comunidades de judeus portugueses em França, e
que culminou com a aquisição de um terreno destinado a cemitério dos judeus
portugueses em Paris, traduzem, para além de óbvia tenacidade de Jacob
Rodrigues Pereira, a sua condição de homem do Iluminismo: o seu pragmatismo, o
seu racionalismo, a forma como construía as soluções a partir da análise
objectiva e rigorosa dos problemas e como procurava, em todas as situações,
controlar os factores de incerteza, prevenir
a desconfiança e a herança do preconceito.
Assim, as linhas que vão emergindo da obra de Emílio
Salgueiro correspondem, dir-se-ia, ao retrato comovido de um português em que
se materializou o espírito das Luzes e a marca do bem comum, bem como uma ideia
de biografia em que História e circunstância mutuamente se elucidam.
Nesta perspectiva, são particularmente significativas, para
além das comunicações do próprio Jacob à Academia Real das Ciências, o
relatório elaborado pela comissão de sábios encarregada pela Academia de
examinar e de avaliar os resultados obtidos com o método que desenvolveu, os textos publicados, entre outros, no Mercure
de France, no Journal de Savants e no Journal de Verdun, a
carta enviada pelo irmão de Jacob, à mãe, então a residir em Bordéus,
descrevendo, em pormenor, a audiência concedida por Luís XV e o sucesso de
Jacob ao apresentar perante o rei de França e a corte os resultados do seu
método, na pessoa do seu aluno Azy d’Étavigny, a referência de Buffon, na sua História
Natural, ao método de ensino de surdos-mudos
desenvolvido pelo português e o
reconhecimento régio, consumado em 1750, com a atribuição de uma pensão de 800
libras.
A par de uma minuciosa investigação historiográfica e
seguindo, entre outros, os trabalhos de E. Séguin e de E. La Rochelle, sobre a
vida e a actividade de Jacob Rodrigues Pereira, a obra de Emílio Salgueiro
dá-nos a ver, por entre rivalidades, controvérsia e contestação, apogeu e declínio, o retrato intelectual de alguém
que se afirmou pelo mérito, de alguém para quem o conhecimento procede da
razão, da observação e da experiência e está na raiz da autonomia do ser
humano, de alguém que se pode filiar numa vertente de pensamento livre e de
racionalismo, que a tradição judaica também comporta, e que terá em Espinosa,
porventura, o seu mais relevante exemplo.
“Séguin afirma que o Jacob conseguia ensinar a falar aos
surdos e mudos por ter descoberto a lei da identidade das percepções
sensoriais, o que designaríamos hoje, talvez, como a descoberta das
sinestesias na construção dos mapas tanto do mundo exterior, como do
mundo interior. E prossegue Séguin, dizendo que Jacob não acreditava que a
palavra estivesse inteiramente contida na articulação, procurando, por isso,
cultivar nos seus alunos a voz humana e natural, ao ponto de lhes transmitir o
seu próprio sotaque estrangeiro (...). Ensinava a articulação pela vista, pelo
tacto, pela memória dos movimentos dactilológicos, a voz humana pela percepção
táctil das vibrações sonoras, a entoação pelo gesto e o sotaque pela medida”.
Como se vê aquilo que Jacob Rodrigues Pereira pretendia era
que os seus alunos descobrissem por si próprios, através da observação e pela
experiência da interacção com os outros (pela expressão, pelo movimento dos lábios,
pelo gesto) uma certa inteligibilidade
do mundo, um sentido das palavras que está para além do seu referente. E é, por
assim dizer, essa dimensão ‘oculta’, inexplicável e, porventura, inata, da
aptidão humana para a palavra, que o método de Jacob Rodrigues Pereira torna
evidente e que o depoimento de Saboureux de Fontenay, aluno de Jacob, numa
carta datada de 1764, sublinha: “Do mesmo modo como uma criança aprende o
francês, M. Pereire dedicara-se em primeiro lugar a dar-me a inteligência das
palavras de uso diário e as frases mais vulgares (...). Achando que eu já
estava suficientemente a par dos diálogos de uso diário, evitou gesticular à
minha frente, ao mesmo tempo que me falava pelos dedos com o alfabeto à espanhola,
que tinha aumentado e aperfeiçoado: a finalidade era acostumar-me melhor à
linguagem e fazer-me perder o hábito de falar através de sinais à minha
maneira; exercitar-me melhor a perceber as frases familiares, aprontar-me a
executar todo o tipo de coisas, de acordo com o sentido que tomasse no meu
espírito a linguagem que tivessem usado para exprimir o que pretendiam de mim;
responder sozinho às perguntas fáceis e às difíceis, pensar por mim próprio”.
Partindo de uma detalhada observação da realidade, que o
leva a distinguir diferentes graus de surdez nos seus alunos, Jacob Rodrigues
Pereira aperfeiçoa o seu método adaptando-o às características de cada aluno
ou, melhor dizendo, às possibilidades de aprendizagem de cada um. E, nessa
medida, poderemos, talvez, dizer que o sucesso do seu método depende mais da
capacidade do mestre do que, porventura, das potencialidades do aluno, pois
como sugerem as palavras de Emílio Salgueiro, referindo Renée Neher-Berheim, o
‘segredo’ do método de ensino de Jacob parece residir “(n)o modo e (n)a
intensidade com que se ligava aos seus alunos a quem tratava como pessoas
completas, a excelente relação afectiva que com eles conseguia criar,
propiciadora de um aprendizado entusiasmado das técnicas de desmutização e de
um crescimento moral e cívico”.
Consciente de que algo mais do que o meramente mecânico e o
meramente instrumental intervêm no acesso à
palavra, algo que só a convocação da inteligência, da memória e dos restantes
sentidos seria capaz de completar, o método de Jacob Rodrigues Pereira
procura, apoiando-se numa certa pragmática da comunicação, incitar os alunos a tirarem partido de
todas as vertentes expressivas da natureza humana, de forma a suprirem a
carência do ouvido; dir-se-ia querer estimular em cada aluno a capacidade de
mobilizar, pela vontade, a plasticidade da própria inteligência e fazê-lo
descobrir desse modo ignoradas capacidades, susceptíveis de o resgatar de uma
suposta fatalidade divina.
Falamos de uma perspectiva de aperfeiçoamento humano à
maneira do Iluminismo, de uma atitude que não pretendia salvar a alma dos surdos-mudos (até então, diga-se, escondidos como
fruto de um pecado, como expiação de uma culpa sem motivo) mas tão só
devolver-lhes, como nos casos de Aaron de Beaumarin, de Saboureux de Fontenay,
de Azy d’ Étavigny e de Marie Maurois, um outro sentido da vida, para além dos
sinais à maneira de cada um, permitir-lhes conquistar, pelo acesso à palavra
falada, a autonomia, a dignidade social e uma outra inserção no mundo, que só
pela fala e pelo entendimento da palavra própria e alheia, porventura, se
alcança.
E talvez por tudo isto se explique a circunstância de Jacob
Rodrigues Pereira se ter também empenhado, a par da sua acção como
representante dos judeus portugueses em França e da actividade de reeducação de
crianças surdas-mudas, no desenvolvimento de outros projectos científicos, pois
essas actividades, por assim dizer, de contraponto, traduzem claramente, por um
lado, o pendor científico da sua personalidade intelectual e, por outro, a
ideia de pertença ao ambiente moral e
intelectual de um tempo em que o saber deixa de ser apenas invocado, para
passar a ser também escrutinado e
demonstrado na sua dimensão de eficácia social:
um contexto histórico em que os ideais de progresso e de liberdade humana
começam a despertar e a fazer o seu caminho.
O facto de ter conseguido demonstrar que, apesar das
limitações próprias e óbvias era possível transformar um surdo-mudo num surdo
falante, e que é, por certo, a sua mais importante e fecunda herança, a vida e
a acção de Jacob Rodrigues Pereira, revelam-se-nos, nesta obra de Emílio
Salgueiro, através de um nítido paralelismo entre a condição dos judeus e a
condição dos surdos-mudos na Europa na segunda metade do século XVIII, e o propósito
de um homem de bem de os querer resgatar, a judeus e surdos-mudos, dos
atavismos da injustiça, da tutela do preconceito, do sofrimento sem motivo e da
tenaz da indignidade.
Post de H. N.
Nota: O ARPOSE agradece, cordialmente, a H. N. mais esta atenta leitura.
Essa confusão entre Berlanga e Berlengas... até deu monumento em Peniche. :)
ResponderEliminarQuando a pilha que espera ser lida baixar um pouco, talvez me aventure nesta biografia.
É a tal confusão de "germano" com o género humano..:-)
ResponderEliminarE esta análise de H. N. é tão esclarecedora que abre o apetite...
Nem mais!... :)
ResponderEliminar