sexta-feira, 30 de setembro de 2011

História do arco da velha


O linguísta teve uma noite péssima. Sonhou que viajava interminavelmente, e de eléctrico, tendo que entrar e sair sempre que o guarda-freios mudava a agulha nos carris. E a chusma de passageiros, apeados também pela circunstância, nunca o deixavam reentrar primeiro. Ora, os bancos tinham todos a forma de letras pequenas do alfabeto, num design berrante e post-moderno. Sempre que regressava ao eléctrico os lugares mais cómodos já estavam todos ocupados. Nunca conseguia sentar-se no banco em forma de b, nem no d, muito menos no h ou no t, embora este último fosse muito baixo para o velho catedrático de Linguística. Ademais, os restantes passageiros e companheiros de viagem obrigavam-no a sentar-se, quase sempre, em cima do w - situação que lhe provocava grande incomodidade e enjoo. Apesar de ficar com enorme sonolência e acabasse a dormitar por causa do balanço do movimento no carro eléctrico. E, no sonho do sonho, ocorriam, obsessivamente, frases feitas tais como: "porrada de criar bicho", "porrada de cego"...
Acabou por acordar, com o corpo dorido e cheio de nódoas negras. Muito indisposto, lá se vestiu e apanhou um táxi para a Faculdade, para dar a aula de Introdução aos Estudos Linguísticos. Infelizmente, o banco de trás do carro, onde se sentou, tinha as molas num 8, de gastas, e o relevo mais se assemelhava a um m irregular, incómodo e oscilante. Quando se apeou do táxi, no terreiro da Universidade, ainda se sentia pior. Prometeu a si mesmo, nunca mais ler à noite, as Iluminações, Uma cerveja no Inferno, de Rimbaud, na tradução  de Cesariny. E encomendou-se a deus, antes de entrar no anfiteatro, para dar a aula de Linguística. Acontece que, logo no 2º degrau, tropeçou e caíu, desamparado, batendo com a cabeça nas esquinas dos L 's maiúsculos e sucessivos das escadas. Esteve em coma quatro dias. E ao quinto dia, morreu. Não deixou viúva, nem orfãos. Mas uma ampla bibliografia.

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