terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Os vencidos de deus

Houve uma parte de uma geração de intelectuais portugueses em cuja obra a fractura, ruptura ou, na prática, uma auto-marginalização do mundo religioso (catolicismo) é visível, mais ou menos, como ambiente de fundo, nos seus trabalhos e nos seus dias. Umas vezes, numa perspectiva trágica (Nuno   Bragança, Ruy Cinatti), outras vezes, por uma ironia irreverente (Alexandre O'Neill) ou apenas tímida (Alçada Baptista). E, depois, os que convalesceram bem dessa "mancha de pulmão" indelével (Bénard da Costa e Pedro Tamen) e que, da margem, se reintegraram, razoavelmente ( e digo-o sem ironia, nem pejorativamente), no sistema laico. Haveria mais nomes mas, dos que referi, apenas o último é ainda vivo e sobrevivente dessa fé perdida que não encontrou guarida em nenhuma outra hospedaria, como, por exemplo, Nuno Bragança que se transferiu para a luta armada activa (contra o antigo Regime).
O percurso de Ruy Cinatti é, talvez, um dos mais dramáticos, dolorosos e trágicos. Que passa pelos rituais animistas timorenses, em que chega a ser iniciado, até vir desembocar nas trevas e desagregação gradual, em finais dos anos 70 do século passado. É dele, o poema que se segue, integrado no "Livro do Nómada meu Amigo", de 1958.
Meditação
Tudo imaterial na praia rasa
Cheia de sol, ao fim da tarde.
Proa ao vento quebrada,
A vaga, entre rochedos, se ilumina.
É tudo imaterial, tudo neblina
Ténue que aos poucos arde,
Ao fim da tarde se desfaz, flutua,
E voo de ave desliza
Ao longe linha pura.
Tudo imaterial na praia rasa.
Aqui ninguém me vê: amo a ternura.

8 comentários:

  1. Desconhecia que Cinatti tinha ido tão longe na busca de espiritualidade, mas é realmente uma geração de notáveis desencantados.

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  2. É um caso extremo, LB, mas tem um precursor muito singular (quanto a mim): Cristovam Pavia.

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  3. Muito grata pelo enquadramento. Fazia-me falta. O poema é uma maravilha...

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  4. Também tive gosto em reler e escolher Cinatti. Ainda bem que lhe agradou.

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  5. Gosto muito da poesia de Cinatti. E a sua escolha magnífica.

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  6. Também gostei desta escolha.
    E a ocupação de Timor Leste pela Indonésia amargurou-lhe a vida.

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  7. Este comentário foi removido pelo autor.

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  8. E teve o azar na vida - ele, que tanto amava Timor - de não assistir à Independência.

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