sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Torga e o Douro


A Torga, quase posso perdoar-lhe tudo, mesmo alguns poemas excessivamente prosaicos e sensaborões, pelo belíssimo Bucólica ("A vida é feita de nadas:/ De grandes serras paradas...") que nos deixou. E por uma parte da rija prosa que escreveu. Até me posso esquecer do mal que ele diz do Minho, por excessivamente verde (assim o justifica), no início deste livro - Portugal.
Porque também me reconcilio com o Douro que ele descreve, apaixonado. Porque também não me esqueci, e me lembro do rio, lá em baixo, visto do alto alcantilado da Sé de Miranda. São coisas que não saem da memória. Mas ouçamos Miguel Torga, no seu verbo fluente, cinzelado, onde se sente pulsar um coração:
"...É sair do Chiado, porque é nele que as mentiras nacionais começam, e ver: onde há água com tanto barro e desespero? Onde há saibro mais desgraçado e mais triste? De ponta a ponta do ano, não há benção que cubra esta dor. No verão, um calor de forja seca o rio e caldeia o xisto; no inverno, as próprias cepas choram de frio. (...) Não é descer de Sabrosa para o Pinhão, estacar em S. Cristovão e abrir a boca de espanto. Não é ir ao miradoiro de S. Brás, olhar o Éden ao fundo, e dizer ah! Não é espreitar de S. Salvador do Mundo o Cachão da Valeira e sentir calafrios. É entender toda a significação da tragédia, desde a desgraça de Prometeu até ao clamor do coro. É deixar os estofos do comboio, trepar pela escadaria do Olimpo acima, e descer carregado dum vindimeiro a escorrer mosto. É vestir a croça e tesourar numa manhã de inverno, a chuva a cair ou o gelo a fazer pinguelos nas mãos; é dar a meia-noite num lagar, os músculos já sem acção, e o capataz a mandar, a mandar; é cavar de sol a sol, o suor a abrir crateras na poeira; é comer uma malga de caldo e uma sardinha, e saibrar o dia inteiro.
Não há maior ofensa à dignidade humana do que ir de Cadillac a uma vindima do Rio Torto, fotografá-la e descrevê-la depois num chá das cinco ou num jornal da tarde. O Doiro dos barcos rabelos de calendário e dos socalcos fotogénicos, o Doiro dos cartazes comerciais e dos lordes em climatério, é uma mentira. O verdadeiro Doiro, rio e região, é a ferida do lado de Portugal." (pgs. 40/41)

2 comentários:

  1. Ando agora a ler este livro - é a minha leitura de cabeceira - na mesma edição do seu... e também com a capa assim manchada.
    Por falar nisso, são horas de leitura. Até amanhã :)

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  2. É um livrinho muito interessante.
    Boa noite!

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