domingo, 30 de julho de 2017

Bibliofilia 155


Das revistas literárias, sabe-se que têm, normalmente, vida breve.
O entusiasmo inicial dos colaboradores e/ou dos editores não resiste muito tempo à escassez das disponibilidades financeiras e à relativa fidelidade dos subscritores e eventuais leitores. Por sua vez, as colecções completas destas publicações são, quase sempre, difíceis de encontrar, hoje em dia, nos alfarrabistas. Desta Sísifo, que se editou em Coimbra (Livraria Atlântida), sairam apenas 3 números, sendo que o do meio era duplo, e tinha uma tiragem de 700 exemplares. Com boas colaborações (Ramos Rosa, Eduardo Lourenço, Eugénio de Andrade, Júlio Resende...), cada número avulso custava Esc. 7$50. Publicou-se nos anos de 1951-1952.


A colecção completa, que pertencera a Laureano de Barros ( (1921-2008), matemático bibliófilo e anti-fascista, foi vendida, aqui há uns anos atrás, num leilão organizado por Manuel Ferreira, no Porto, por 70 euros. Em 2016, a Frenesi, que não é peca nos preços, tinha à venda outra colecção completa por 150 euros. E Miguel de Carvalho, livreiro-alfarrabista da Figueira da Foz, na sua última lista (Julho 2017, ref. 13886) apresentava, também um conjunto completo, à venda por 70 euros. Incompleta, com falta do fascículo nº 4, adquiri recentemente, em Lisboa, os números 1 e 2-3 (com o número 515, da tiragem), por 10 euros, motivado sobretudo por neles constar uma primeira versão de um poema de Eugénio de Andrade (1923-2005), que veio a sofrer alterações, até à sua expressão final e ne varietur. Originalmente, assim era:



O poema incluído, mais tarde, no livro As Palavras Interditas, que veio sendo aperfeiçoado pelo Poeta, na sua versão definitiva* (1990, Jornal/Limiar) ficou deste modo:

Post Scriptum

Agora regresso à tua claridade.
Reconheço o teu corpo, arquitectura
de terra ardente e lua inviolada,
flutuando sem limite na espessura
da noite cheirando a madrugada.

Acordaste na aurora, a boca rumorosa
de um desejo profundo de açucenas;
rosa aberta na brisa ou nas areias,
alta e branca, branca apenas,
e mar ao fundo, o mar das minhas veias.

Estás de pé na orla dos meus versos
ainda quente dos beijos que te dei;
tão jovem, e mais que jovem, sem mágoa
- como no tempo em que tinha medo
que tropeçasses numa gota de água.

Por cotejo, as diferenças são substanciais, como pode ver-se, mas julgo que o poema terá chegado à perfeição humana possível, ou de que Eugénio de Andrade seria capaz. Vale a pena lembrar, a propósito, uns versos lapidares de J.R. Jiménez, em pobre tradução minha: "... não lhe toques mais/ que assim é a rosa."

* A versão final do poema manteve apenas 7, dos 15, versos exactamente iguais aos da versão inicial.

4 comentários:

  1. As revistas literárias começam a ser estudadas. Estão aí soterradas colaborações importantíssimas que passam desapercebidas, mesmo a estudiosos de certos autores.
    Bom dia!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. É verdade. E, depois, são quase sempre universos pequenos e restritos onde se podem encontrar surpresas bem interessantes.
      Um bom Domingo!

      Eliminar