sábado, 23 de abril de 2011

O uso ligeiro das palavras e dos números





É conhecido o fosso que separa, habitual e culturalmente, os homens da Ciência dos homens da escrita ou das Letras. O assunto foi abordado, e bem, por C. P. Snow (1905-1980) no livro "The Two Cultures", em 1959. Snow sabia do que falava porque era, ao mesmo tempo, físico e romancista. A frequente ignorância, dos cientistas, pelas Humanidades e dos literatos, pelos números, acentuou-se muito, nos últimos tempos. E contribui para a leviandade de alguns raciocínios que, por obrigação, são feitos com palavras.



Li hoje, no jornal "Expresso", de 22/4/11, uma entrevista a um jovem professor (Ricardo Reis) de economia, na Universidade de Columbia, onde a "leveza" com que usa as palavras ao abordar alguns temas, quase me pareceu roçar a demagogia. A uma pergunta do jornalista: "...a produtividade é baixa porque os salários são altos, é verdade?"; o jovem professor responde: " A resposta tem duas versões. A primeira diz-nos: a crise que hoje vivemos deve-se à subida dos salários na última década, incluindo a subida em 2009 - uma decisão eleitoral do primeiro-ministro, José Socrates. Um erro terrível: os nossos custos por trabalhador são hoje 30% mais caros do que na Alemanha. ..." Será que o nóvel economista desconhece que o salário mínimo de Portugal é o mais baixo, ou dos mais baixos, da UE.? E que os salários altos portugueses são, na UE, dos mais elevados? Nem uma palavra sobre a organização do trabalho, em cada um dos países, nem uma frase sobre as agências de rating e a sua co-responsabilidade na crise... Com raciocínios destes, com esta leviandade no uso das palavras, o que é dito, na entrevista do "Expresso", parece-me apenas um abuso demagógico e irresponsável.

2 comentários:

  1. Também li, e as minhas perplexidades foram as mesmas. Nem uma palavra sobre o imenso fosso que separa os salários médios dos dos CEO's. Aliás, quando o Governador do Banco de Portugal tem o salário mais alto da Europa Ocidental face aos seus congéneres isto já diz tudo, também no sector público, sobre a esquizofrenia portuguesa.Ainda há dias, o presidente da CIMPOR, insuspeito de "deriva esquerdista", dizia com graça que precisava de 4 anos para ganhar o que o Zeinal Bava leva para casa no final de um.
    O salário mínimo nacional é metade do grego e do espanhol, só para falar dos tristes PIGS, pelo que se o reduzirem bem pode ocorrer emigração massiva... Ou no fundo o que se pretende é uma Europa de "senhores" a Norte e "servos da gleba" a Sul?

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  2. Em tudo isto, meu caro LB, há os cavaleiros ( normalmente "apátridas" internacionalistas, bem situados na vida) e os "peões de brega" que embarcam no canto das "sereias". Há os que têm, por si, uma "agenda" (que, continuo a pensar, visa a destruição do euro mas, antes, quer minar a solidariedade europeia - que já estão a conseguir, face ao egoísmo de sobrevivência de cada país), e os cegos que, uns atrás dos outros, vão caindo no abismo. E, depois, há ainda estes jovens "senhoritos", como este Ricardo Reis, que nunca experimentaram as agruras da vida (ou as esqueceram), que passam ao largo do real, e mandam umas bocas para o ar. O mais grave é o jornalismo acrítico dar-lhes cobertura, ouvindo-os, enlevado, sem sequer lhes dar contraditório. "Sic transit..."

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