quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Pelo aniversário de Eugénio de Andrade


Coração Habitado

Aqui estão as mãos.
São os mais belos sinais da terra.
Os anjos nascem aqui:
frescos, matinais, quase de orvalho,
de coração alegre e povoado.

Ponho neles a minha boca,
respiro o sangue, o seu rumor branco,
aqueço-as por dentro, abandonadas
nas minhas, as pequenas mãos do mundo.

Alguns pensam que são as mãos de Deus;
- eu sei que são as mãos de um homem,
trémulas barcaças onde a água,
a tristeza e as quatro estações
penetram, indiferentemente.

Não lhe toquem: são amor e bondade.
Mais ainda: cheiram a madressilva!
São o primeiro homem, a primeira mulher
E amanhece.


Eugénio de Andrade, in Até Amanhã.


Nota: Eugénio de Andrade nasceu em Póvoa de Atalaia (Fundão), a 19 de Janeiro de 1923.

2 comentários:

  1. Gostei deste poema e não pude deixar de me lembrar de outro poema, de outro poeta do mês de Maio:

    AS MÂOS

    Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
    Com mãos tudo se faz e se desfaz.
    Com mãos se faz o poema – e são de terra.
    Com mãos se faz a guerra – e são a paz.

    Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
    Não são de pedras estas casas mas
    de mãos. E estão no fruto e na palavra
    as mãos que são o canto e são as armas.

    E cravam-se no Tempo como farpas
    as mãos que vês nas coisas transformadas.
    Folhas que vão no vento: verdes harpas.

    De mãos é cada flor cada cidade.
    Ninguém pode vencer estas espadas:
    nas tuas mãos começa a liberdade.

    Manuel Alegre

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  2. Foi um bonito contraponto. Obrigado,MR.

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