domingo, 5 de dezembro de 2010

Raul Brandão, Guimarães e S. Nicolau



"...Uma nuvem desce da serra: arrastam-se os rolos pelas encostas pedregosas; depois as baforadas espessas juntam-se e abafam de todo a villa. E noite, cerração compacta, nevoa e granito, formam um todo homogeneo: unem-se para construirem um immenso e esfarrapado burgo de pedra e sonho. Pastas sobre pastas de nuvens algidas, que a noite transforma em crepes, amontôam-se na escuridão. O granito revê água. E sob a chuva ininterrupta, sobre as cordas incessantes, a villa, envôlta na treva glacial, parece toda lavada em lagrimas...
(...)
A vida da provincia é assim - suffoca: pesa sobre uma alma como um pedregulho: abafa e esmaga. Para se resistir é necessario viver-se peito a peito com um sonho disforme. A banalidade desgasta, a uniformidade secca. Os outros mandam mais em nós mesmos, do que nós proprios mandamos. Afeiçôam-nos. As arestas alheias desbastam-nos. As palavras são quasi as mesmas, os sêres identicos. E depois ha a necessidade de fingir. Todos espreitam com rancor á espera d'um acontecimento. A provincia ama o escandalo.
(...)
A turba avança, a praça transborda: ha milhares de boccas que gritam, e os tambores tomam-se de furia n'uma ensurdecedora descarga. Aquelle mar humano oscilla, amontôa-se, cresce, clama e dispersa-se. Quando os archotes se apagam, fica só a noite e o ruido; aviva-se o lume e voltam a entrever-se as faces, as boccarras abertas, os risos estupidos, rasgados d'orelha a orelha.
- S. Nicolau! S. Nicolau! ..."
Raul Brandão, in A Farça (1903), pgs.5, 14-15 e 50.

Os excertos, acima, de Raul Brandão, que faleceu há, precisamente, 80 anos, têm, com certeza, como cenário a cidade de Guimarães, embora lhe dê o nome de "villa". Aliás, aquando da escrita de A Farça (Outubro 1902-Maio 1903), Guimarães estava a fazer 50 anos da sua elevação a cidade, por D. Maria II, em 1853.
Raul Brandão foi para Guimarães, para o Regimento de Infantaria 20 (na altura sedeado no Paço dos Duques de Bragança), em 1896. Em 1897 casou com a vimaranense Maria Angelina e, pouco depois, vai habitar a Casa do Alto, em Nespereira, muito próximo de Guimarães. Reforma-se da vida militar, em 1912, e a partir daí é que reinicia, mais intensamente, a sua obra literária, até vir a morrer, a 5 de Dezembro de 1930.
Este granito e chuva, o cinzento e o negro, esta serra (que é, de certeza, a Penha), o ambiente fechado e de coscuvilhice da "villa" e até as Festas Nicolinas traçam um esboço bem nítido da cidade que o acolheu, e onde deverá ter assistido, muitas vezes, às celebrações que os estudantes vimaranenses faziam pelo S. Nicolau, com os seus bombos, tambores e caixas troando no ar molhado de Dezembro.

4 comentários:

  1. Devido à investigação sobre Columbano tomei contacto com a obra de Raul Brandão de que fique a gostar imenso.

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  2. Ainda há dias me lembrei que desta efeméride.
    Gosto principalmente das Memórias e das Ilhas encantadas.

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  3. É um autor que mereceria ser mais lido, pela originalidade da sua obra. As "Memórias" são, realmente, muito interessantes, mas o "Humus", em ficção, parecem-me uma obra-prima, muito embora a sua leitura seja, quase, um murro no estômago do leitor.

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  4. Eu sei que aquilo de que gosto do Brandão não é o melhor da sua obra.
    Muitos escritores referem a influência que a obra de Brandão teve na deles.

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