“Ele não lhe dissera
tudo aquilo que lhe tinha passado pela cabeça naqueles dias. E ela talvez tivesse
guardado para si própria algumas pequenas coisas. Não tinha importância.
Tinham-se reencontrado. Ele faria perguntas, ela responderia. Porque é que te
sentiste velha?, perguntou-lhe ele”.
Mais do que a história de uma crise conjugal e identitária,
ultrapassada in fine, como refere Éliane
Lecarme – Tabone, no prefácio, aquilo que neste final de Malentendu à Moscou se
evidencia é a consciência da efemeridade da vida e do estreitamento do tempo,
que transformam o nó da intolerância e do desprendimento, quiçá o proprium do envelhecimento, num outro
degrau do afecto: a imprescindibilidade do outro, quando o horizonte da vida se
rarefaz e o futuro se desenha em jardim do esquecimento.
Ler Malentendu à Moscou
é, pois, como desatar os sucessivos nós das primícias do envelhecimento: a
íntima degradação do corpo, o medo de ficar só, a proximidade do vórtice da
vida.
A viagem à União Soviética, em 1966, de Nicole e de André,
dois professores franceses, sexagenários e recém-reformados em visita a Macha,
filha de André, casada com um arqueólogo russo, e residente em Moscovo
constitui, para ambos, sem que inequivocamente o assumam, uma forma de
prolongamento do início dessa nova etapa das suas vidas: a da velhice, agora
atestada socialmente pela condição de reformados.
Dando a ver, ao longo das suas vinte quatro sequências
narrativas, a perspectiva de cada um dos protagonistas, que são como que as
camadas dos múltiplos afectos e das múltiplas decepções que envolvem o núcleo
duro do existir em comum, a novela de Simone de Beauvoir introduz-nos, à
maneira de uma sequência de fotogramas da vida a acontecer, numa espécie de
ensaio de filosofia da inquietude.
Escrita em 1966, aos 58 anos – portanto, quase sexagenária
como a personagem de Nicole – com o propósito de ser incluída na colectânea La Femme Rompue, a novela acabou por ser
substituída por outro texto (L’Âge de discrétion), que utiliza várias
sequências de Malentendu à Moscou,
embora expurgadas do seu enquadramento geográfico e político. No entanto, esta
novela, que surgiu em 2013 numa edição autónoma, foi publicada pela primeira
vez, já depois de morte de Simone de Beauvoir, na revista Roman 20-50, em 1992.
Com evidentes ressonâncias autobiográficas e um fio de subtil
ironia, que remetem para as viagens da própria Simone de Beauvoir e de
Jean-Paul Sartre a Moscovo e em que, como também refere Éliane Lecarme-Tabone,
a personagem de Macha acolhe traços de Léna Zonina, a amiga russa de Sartre, Malentendu à Moscou evoca um tempo de
intenso debate político e ideológico, em que os ecos do conflito sino-soviético
se misturam com a desilusão de um comunismo que definitivamente se burocratiza
em anacronismos e filas de espera e em que o calor da vodka gelada e o cinzento
aveludado do caviar – que a generosidade das divisas estrangeiras podia pagar –
não chegam para tapar a brecha da dúvida por onde se insinua o vazio da
desilusão: “Sim o seu mal-estar tinha um
nome, um nome de que ele não gostava mas que era obrigado a empregar: decepção.
Ele detestava, de um modo geral, os viajantes que ao regressarem da China, de
Cuba, da URSS ou mesmo dos EUA, diziam: ”Fiquei decepcionado”. Eles tinham
errado ao construírem a priori ideias
que depois os factos desmentiam: o erro era deles e não da realidade. Mas
afinal era qualquer coisa de análogo que ele próprio experimentava. Talvez
tivesse sido diferente se tivesse visitado as terras virgens da Sibéria, as
cidades onde trabalhavam os sábios. Mas em Moscovo e em Leninegrado não tinha
encontrado aquilo de que estava à espera. Mas ele esperava exactamente o quê? Era
vago. Em todo o caso não o tinha encontrado. [Quando se é] jovem e se tem, pela frente, uma ilusória
eternidade salta-se facilmente de um lado para o outro da estrada; mais tarde
já não temos forças para ultrapassar o que se diz serem os falsos custos da história
e achamo-los terrivelmente elevados. Ele tinha contado com a história para
justificar a sua vida; agora já não contava com ela.”
É talvez o momento em que o saber da convicção cai no poço da
realidade, o momento em que sub-repticiamente o vértice da vida se vai
transformando em turbilhão e a ideia de futuro regride até à insignificância do
próprio corpo e à sua irremediável condição biológica, o momento em que se
rompe com o conforto da inocência e se percebe como é mais necessário o afecto
que nos segura do que a convicção que dolorosamente nos escapa.
Em rigor, dir-se-ia que André e Nicole não foram enganados
pela vida mas sim surpreendidos pela errada percepção da sua ilusória solidez,
pela inconsistência e plasticidade dos seres e das coisas; ao contrário de
Macha, a filha que André se esquecera de ver crescer (e que, agora, aos olhos
de Nicole, era o verdadeiro motivo do conflito, porque lhe disputava o amor e
as atenções de André), tanto ele como Nicole chegaram, paradoxalmente, imaturos
ao termo da maturidade, exactamente por não terem percebido que a maturidade é
tão só o lastro de inocência e de negação que se vai transformando em generosa
ambiguidade no decurso dos inevitáveis conflitos de viver, porque, na verdade,
aquilo que, de facto, queremos da vida é, afinal, sempre outra coisa: ”antes já existiam sinais. No espelho, nas
fotografias, a sua imagem perdera frescura mas ela ainda se reconhecia nela.
Quando falava com os seus amigos, eles eram os homens e ela sentia-se uma mulher.
Mas depois, aquele rapaz desconhecido – tão belo – chegou com André;
apertou-lhe a mão com uma amabilidade distraída e qualquer coisa ruiu. Para
ela, ele era um macho jovem e atraente; para ele ela era tão assexuada quanto
uma velha de oitenta anos. Nicole nunca mais se esqueceu desse olhar; ela tinha
deixado de coincidir com o seu corpo; era um despojo estranho, uma máscara
dolorosa. Talvez essa metamorfose tivesse durado mais tempo, mas na sua memória
resumia-se nesta imagem: dois olhos de veludo que se desviavam com indiferença.”
Reflexão sobre uma crise de identidade de dois protagonistas
no limiar do envelhecimento que, por assim dizer, transpõe o perímetro da
filosofia para um espaço mais amplo e mais ambíguo onde o testemunho e o
pensamento, bem mais do que a imaginação, se ajustam à ideia de ficção, Malentendu à Moscou traz para a escrita
a narrativa da decadência do corpo, da voragem das certezas, da fragilidade da
relação com o outro, do cansaço da realidade e da angústia dos afectos; daquilo
que fica da espuma dos dias e que constitui, afinal, para o concreto dos seres,
a raiz do sofrimento.
Daí que os aspectos mais interessantes desta novela,
porventura menor, de Simone de Beauvoir, agora retirada da usura do tempo,
sejam, por um lado, a forma como as marcas de uma época histórica e
ideologicamente determinada ainda hoje se revelam não como meros fragmentos
desgarrados de uma paisagem devoluta mas como esteios críticos da autenticidade
de um tempo de compromisso e de desilusão e, por outro, a serenidade e o
distanciamento irónico de um texto que, alicerçado na verdade possível de uma
autoficção, é capaz de mostrar como no vulgar desdobramento dos dias se faz e
se desfaz essa interminável adolescência do ser, permanentemente repartido
entre o medo da verdade e a vontade irreprimível de lhe dizer não.
Post de HN
Nota pessoal: o Arpose acolhe, com grato reconhecimento, mais uma Nota de Leitura (como sempre, atenta) de H. N..
APS