terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Notas de Leitura VII: "Malentendu à Moscou" - Simone de Beauvoir



“Ele não lhe dissera tudo aquilo que lhe tinha passado pela cabeça naqueles dias. E ela talvez tivesse guardado para si própria algumas pequenas coisas. Não tinha importância. Tinham-se reencontrado. Ele faria perguntas, ela responderia. Porque é que te sentiste velha?,  perguntou-lhe ele”.
Mais do que a história de uma crise conjugal e identitária, ultrapassada in fine, como refere Éliane Lecarme – Tabone, no prefácio, aquilo que neste final de Malentendu à Moscou se evidencia é a consciência da efemeridade da vida e do estreitamento do tempo, que transformam o nó da intolerância e do desprendimento, quiçá o proprium do envelhecimento, num outro degrau do afecto: a imprescindibilidade do outro, quando o horizonte da vida se rarefaz e o futuro se desenha em jardim do esquecimento.
Ler Malentendu à Moscou é, pois, como desatar os sucessivos nós das primícias do envelhecimento: a íntima degradação do corpo, o medo de ficar só, a proximidade do vórtice da vida.
A viagem à União Soviética, em 1966, de Nicole e de André, dois professores franceses, sexagenários e recém-reformados em visita a Macha, filha de André, casada com um arqueólogo russo, e residente em Moscovo constitui, para ambos, sem que inequivocamente o assumam, uma forma de prolongamento do início dessa nova etapa das suas vidas: a da velhice, agora atestada socialmente pela condição de reformados.
Dando a ver, ao longo das suas vinte quatro sequências narrativas, a perspectiva de cada um dos protagonistas, que são como que as camadas dos múltiplos afectos e das múltiplas decepções que envolvem o núcleo duro do existir em comum, a novela de Simone de Beauvoir introduz-nos, à maneira de uma sequência de fotogramas da vida a acontecer, numa espécie de ensaio de filosofia da inquietude.
Escrita em 1966, aos 58 anos – portanto, quase sexagenária como a personagem de Nicole – com o propósito de ser incluída na colectânea La Femme Rompue, a novela acabou por ser substituída por outro texto (L’Âge de discrétion), que utiliza várias sequências de Malentendu à Moscou, embora expurgadas do seu enquadramento geográfico e político. No entanto, esta novela, que surgiu em 2013 numa edição autónoma, foi publicada pela primeira vez, já depois de morte de Simone de Beauvoir, na revista Roman 20-50, em 1992.


Com evidentes ressonâncias autobiográficas e um fio de subtil ironia, que remetem para as viagens da própria Simone de Beauvoir e de Jean-Paul Sartre a Moscovo e em que, como também refere Éliane Lecarme-Tabone, a personagem de Macha acolhe traços de Léna Zonina, a amiga russa de Sartre, Malentendu à Moscou evoca um tempo de intenso debate político e ideológico, em que os ecos do conflito sino-soviético se misturam com a desilusão de um comunismo que definitivamente se burocratiza em anacronismos e filas de espera e em que o calor da vodka gelada e o cinzento aveludado do caviar – que a generosidade das divisas estrangeiras podia pagar – não chegam para tapar a brecha da dúvida por onde se insinua o vazio da desilusão: “Sim o seu mal-estar tinha um nome, um nome de que ele não gostava mas que era obrigado a empregar: decepção. Ele detestava, de um modo geral, os viajantes que ao regressarem da China, de Cuba, da URSS ou mesmo dos EUA, diziam: ”Fiquei decepcionado”. Eles tinham errado ao construírem a priori ideias que depois os factos desmentiam: o erro era deles e não da realidade. Mas afinal era qualquer coisa de análogo que ele próprio experimentava. Talvez tivesse sido diferente se tivesse visitado as terras virgens da Sibéria, as cidades onde trabalhavam os sábios. Mas em Moscovo e em Leninegrado não tinha encontrado aquilo de que estava à espera. Mas ele esperava exactamente o quê? Era vago. Em todo o caso não o tinha encontrado. [Quando se é]  jovem e se tem, pela frente, uma ilusória eternidade salta-se facilmente de um lado para o outro da estrada; mais tarde já não temos forças para ultrapassar o que se diz serem os falsos custos da história e achamo-los terrivelmente elevados. Ele tinha contado com a história para justificar a sua vida; agora já não contava com ela.


É talvez o momento em que o saber da convicção cai no poço da realidade, o momento em que sub-repticiamente o vértice da vida se vai transformando em turbilhão e a ideia de futuro regride até à insignificância do próprio corpo e à sua irremediável condição biológica, o momento em que se rompe com o conforto da inocência e se percebe como é mais necessário o afecto que nos segura do que a convicção que dolorosamente nos escapa.
Em rigor, dir-se-ia que André e Nicole não foram enganados pela vida mas sim surpreendidos pela errada percepção da sua ilusória solidez, pela inconsistência e plasticidade dos seres e das coisas; ao contrário de Macha, a filha que André se esquecera de ver crescer (e que, agora, aos olhos de Nicole, era o verdadeiro motivo do conflito, porque lhe disputava o amor e as atenções de André), tanto ele como Nicole chegaram, paradoxalmente, imaturos ao termo da maturidade, exactamente por não terem percebido que a maturidade é tão só o lastro de inocência e de negação que se vai transformando em generosa ambiguidade no decurso dos inevitáveis conflitos de viver, porque, na verdade, aquilo que, de facto, queremos da vida é, afinal, sempre outra coisa: ”antes já existiam sinais. No espelho, nas fotografias, a sua imagem perdera frescura mas ela ainda se reconhecia nela. Quando falava com os seus amigos, eles eram os homens e ela sentia-se uma mulher. Mas depois, aquele rapaz desconhecido – tão belo – chegou com André; apertou-lhe a mão com uma amabilidade distraída e qualquer coisa ruiu. Para ela, ele era um macho jovem e atraente; para ele ela era tão assexuada quanto uma velha de oitenta anos. Nicole nunca mais se esqueceu desse olhar; ela tinha deixado de coincidir com o seu corpo; era um despojo estranho, uma máscara dolorosa. Talvez essa metamorfose tivesse durado mais tempo, mas na sua memória resumia-se nesta imagem: dois olhos de veludo que se desviavam com indiferença.
Reflexão sobre uma crise de identidade de dois protagonistas no limiar do envelhecimento que, por assim dizer, transpõe o perímetro da filosofia para um espaço mais amplo e mais ambíguo onde o testemunho e o pensamento, bem mais do que a imaginação, se ajustam à ideia de ficção, Malentendu à Moscou traz para a escrita a narrativa da decadência do corpo, da voragem das certezas, da fragilidade da relação com o outro, do cansaço da realidade e da angústia dos afectos; daquilo que fica da espuma dos dias e que constitui, afinal, para o concreto dos seres, a raiz do sofrimento.
Daí que os aspectos mais interessantes desta novela, porventura menor, de Simone de Beauvoir, agora retirada da usura do tempo, sejam, por um lado, a forma como as marcas de uma época histórica e ideologicamente determinada ainda hoje se revelam não como meros fragmentos desgarrados de uma paisagem devoluta mas como esteios críticos da autenticidade de um tempo de compromisso e de desilusão e, por outro, a serenidade e o distanciamento irónico de um texto que, alicerçado na verdade possível de uma autoficção, é capaz de mostrar como no vulgar desdobramento dos dias se faz e se desfaz essa interminável adolescência do ser, permanentemente repartido entre o medo da verdade e a vontade irreprimível de lhe dizer não.

Post de HN

Nota pessoal: o Arpose acolhe, com grato reconhecimento,  mais uma Nota de Leitura (como sempre, atenta) de H. N..
APS



           

8 comentários:

  1. Esta novela de Simone de Beauvoir foi agora editada pela primeira vez? Desconhecia.
    O post aguçou-me o apetite. Obrigada, H.N.

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    1. Em nome de H. N. - com quem acertei este re-comentário, porque não li o livro -, posso referir que a obra terá sido publicada, pela 1ª vez, em 1992. E, quando H. N., faz estas notas, podemos ter a certeza que apreciou o livro..:-)

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    2. Afinal já é antigo.
      Vê-se que H.N. apreciou o livro.

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    3. Talvez pouco divulgado, aquando da primeira edição...

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  2. Interessante. Não deve haver em português...
    Boa tarde!

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    1. Para já, não. Mas decerto virá a ser traduzido.
      Boa noite!

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  3. Estou a ler a trad. portuguesa e estou a gostar.
    Um belo post.

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