“As pessoas estariam
estendidas na praia ou então saboreando um aperitivo, preparando-se para
almoçar e ouviriam falar de Montaigne [1533-1592] na rádio”. Esta
a proposta de Phillipe Val que Antoine Compagnon aceitou: quarenta palestras
radiofónicas, transmitidas semanalmente na estação France Inter, no Verão de 2012, que estão na origem de Un été avec Montaigne, um livro de 170
páginas, com um grafismo de capa provocatoriamente estival e que, segundo
refere o Nouvel Observateur, em Abril de
2014, já vendera 150 000 exemplares.
Questionado sobre o êxito, porventura, inesperado do livro,
Antoine Compagnon sublinhou, nestes termos, a hipótese de uma afinidade entre a
sensibilidade histórica contemporânea e a da segunda metade do século XVI: “Tal como nós Montaigne está preso a uma contradição,
ele já não acredita na infalibilidade das tradições, mas duvida da
possibilidade de melhorar a condição humana. Se a modernidade se define pela
crença no progresso, Montaigne o pré-moderno e nós os pós-modernos temos em
comum o facto de não partilharmos dessa crença”.
A resposta de Compagnon traduz, afinal, o conhecimento de
quem tendo dialogado com o pensamento de Montaigne nele reconhece essoutra
dimensão do ócio, o momento em que Michel Eyquem se apropriou da sua liberdade e
nos tornou testemunhas disso, o momento em que ao “recitar” o seu próprio retrato nos dá a ver os contornos da
condição humana, promovendo a remédio para a angústia e para a preguiça a
tarefa de conhecer-se.
Grosso de corpo, embora fino de espírito, indolente mas ávido
de acção e de liberdade, arguto, embora um tanto permeável à sedução do inverosímil.
Todavia, no todo, um carácter bem temperado do sentido da medida e do sol da
amizade: um homem que sofreu estoicamente as dores dos seus cálculos renais, que
desprezava a mentira e os tiranos, que não suportava a ideia da tortura, mas
que soube integrar, com notável talento retórico, a inevitabilidade da morte
nas disposições imprescritíveis da natureza.
Este o perfil do Senhor de Montaigne, filósofo acidental, que
o livro de Antoine Compagnon vai deduzindo da leitura dos Essais e, sobretudo, resgatando ao oceano das interpretações
eruditas que lhe foram descarnando o pensamento: “Uma imagem diz da sua relação com o mundo: a da equitação, do cavalo
sobre o qual o cavaleiro mantém o seu equilíbrio, o seu assento precário.
Assento esta a palavra dita. O mundo move-se, eu movo-me: sou eu que tenho de
encontrar o meu assento no mundo”.
Dir-se-ia, então, que o pensamento de Montaigne se estrutura
não em torno da ideia do que somos mas em torno de ideia do que vamos sendo no
assento precário da vida, uma espécie de sublime aditamento àquilo em que nos
vamos tornando, já que a nossa visão do mundo se vai alterando, se vai
aditando, em função do tempo, do lugar e da acuidade do olhar, que é
simultaneamente subtileza e detalhe, largura e perspectiva, pois a imagem do
homem, a imagem do ser, enquanto “ponto-fixo”
é apenas um arquétipo de que sucessivas e esforçadas investidas se aproximam
mas não alcançam.
Por isso, os Essais
de Montaigne fundamentam um outro olhar sobre a realidade ou, se quisermos,
sobre a dependência do homem de carne e osso da sua própria circunstância, que
se traduz ora pelo absurdo, ora pelo derrisório, ora pela enorme fragilidade
das suas tranquilas e inquestionadas certezas.
Das três respostas que os índios do Brasil, apresentados em
Rouen, em 1562, à curiosidade do rei Carlos IX, então com doze anos de idade,
deram, perante a Corte, quando questionados sobre o que de mais admirável
teriam visto no Velho Mundo do século XVI, diz-nos Montaigne ter retido apenas
duas, lamentando ter-se esquecido da terceira.
A primeira das respostas daqueles ilustres “selvagens”
sublinhava a estranheza de tantos grandes homens, barbados e armados, que
rodeavam o rei menino, se sujeitarem a obedecer a uma criança em vez de
escolherem, de entre eles, um para os comandar.
A segunda das observações relatadas por Montaigne relacionava-se com o facto, para eles escandaloso, de uns homens viverem cheios
de fartura e rodeados de conforto, enquanto outros, seus semelhantes,
mendigarem à sua porta cheios de fome e de pobreza e de, apesar disso, esses
injustiçados, não lhes apertarem o pescoço nem lhes incendiarem as casas.
Quanto à terceira das respostas daquelas perspicazes
criaturas, a tal que Montaigne lamenta ter esquecido, Antoine Compagnon que,
por assim dizer, também ensaia na margem dos Essais, coloca a hipótese dessa suposta resposta se relacionar com
um aspecto sobre o qual Montaigne nunca arriscou pronunciar-se: a transubstanciação,
ou seja, sobre a mudança da substância do pão e do vinho no corpo e no sangue
de Cristo, no momento da consagração e a sua presença real na eucaristia;
diferendo maior entre católicos e protestantes, pretexto e motivo das guerras
de religião, no meio das quais o tempo e a circunstância o fizeram viver.
Deste modo, através de uma estratégia que as Lettres Persanes, de Montesquieu,
tornarão familiar, mais de um século depois, Michel de Montaigne sublinha o
valor da liberdade, perante o absurdo da servidão voluntária, ancorada na
irracionalidade do direito divino, o escândalo da pobreza e da desigualdade
entre os homens e, considerando a hipótese de Antoine Compagnon sobre a resposta
que Montaigne diz ter esquecido – embora subtil e perspicazmente tenha
considerado que “somos cristãos do mesmo
modo que somos do Périgord ou alemães” e que “apenas a fé incendeia vivamente as certezas dos grandes mistérios da
nossa religião” – a crítica ao carácter fratricida dos fundamentalismos da
fé.
Eis-nos, portanto, perante as linhas-mestras do pensamento de
Montaigne, perante as raízes do seu cepticismo, que a razão acrescenta e o
talento desdobra em múltiplas perspectivas, pois o pensamento de Michel Eyquem
não aspira a constituir-se como uma visão unitária do mundo e dos homens mas,
pelo contrário, a sublinhar na diversidade dos detalhes o seu carácter
indeterminável, contraditório e fragmentário, que só através da viagem e do
olhar (desde o assento instável da sua sela, num exercício continuado do prazer
de cavalgar), da leitura e da meditação, se compreendem e de facto se humanizam.
Avulta, pois, neste retrato renovado e, porventura, renovador
de Montaigne, que Antoine Compagnon nos oferece, a sua admirável fábrica de
pensar, o seu processo sui generis
que, partindo da glosa crítica do pensamento alheio o incorpora, se robustece
no detalhe e vai construindo, como quem viaja, em torno de si, de dentro para
fora, uma análise metódica mas assistemática da sua própria natureza; um
pensamento quase nómada que se toma a si próprio como matriz e como roteiro
daquilo que de indeciso e de contraditório existe na natureza humana. Um pensamento
livre, um rasgo de serenidade, como se, despido o aparato da teologia, a
verdade sorrisse e alcançasse a simplicidade de um saber profundo: “É uma absoluta perfeição, e como que
divina, o saber fruir lealmente do seu ser […]. As mais belas vidas são em meu
entender, aquelas que se conformam com ordem ao modelo comum e humano; mas sem
milagre, mas sem extravagância”.
Assim, o fio de
cepticismo que atravessa os Essais é,
na perspectiva de Antoine Compagnon, a chave que faz de Michel Eyquem um quase
contemporâneo: tal como nós também Montaigne viveu um tempo de interregno das certezas
e de remissão da verdade e a sua lição estará, porventura, no modo como soube
transformar em argumento o ornamento da dúvida, como soube trocar as voltas ao
domicílio da angústia e reencontrar os limites do humano, arredando o talvez
grande medo da morte com uma singular afirmação dos fundamentos da vida: “Quero […] que a morte me encontre a plantar
as minhas couves”. Um epicurista quase tranquilo – diríamos – que pedagogicamente
nos mostra como o ócio de bem fruir a dádiva da vida se pode transformar no
verdadeiro negócio de viver.
Post de HN.
O Arpose congratula-se e acolhe, com cordial júbilo, mais uma reflexão de leitura de H.N. Que muito agradece.