Uma boa parte dos últimos poemas escritos por Eugénio de Andrade (1923-2005) aproximam-se da prosa - ele mesmo o refere: Chega ao fim o verão, resta-me agora/ a poesia a caminho da prosa.
Os versos compõem entretanto pequenos instantâneos que se agrupam com hábil mestria, criando conjuntos visuais a que o movimento dá força e imagem e que, parecendo prosa, não deixa de ser poesia.
Cria-se assim uma atmosfera encantatória percutindo a memória, como aqui neste poema:
No fim do verão
No fim do verão as crianças voltam,
correm no molhe, correm no vento.
Tive medo que não voltassem.
Porque as crianças às vezes não
regressam. Não se sabe porquê
mas também elas
morrem.
Elas, frutos solares:
laranjas romãs
dióspiros. Sumarentas
no outono. A que vive dentro de mim
também voltou; continua a correr
nos meus dias. Sinto os seus olhos
rirem; os seus olhos
pequenos brilhar como pregos
cromados. Sinto os seus dedos
cantar com a chuva.
A criança voltou. Corre no vento.
Eugénio de Andrade, in O Sal da Língua (1995).