domingo, 31 de maio de 2015

arte menor (19)


Não esperes a palavra dos outros:
o silêncio é um esforço que não rima.


Ch., 1/4/15

Peter Gabriel (1950) : "Fourteen Black Paintings"


Uma louvável iniciativa (40)


Mesmo que no centro e bulício de uma cidade, há duas coisas que uma igreja católica, até no pino do Verão e na parte da tarde, pode oferecer ao improvável visitante: frescura e silêncio. Para um ateu, porém, as imagens de santas e santos, laterais, prejudicam gravemente uma qualquer hipótese de pensamento abstracto. Na própria igreja da Encarnação, ao Chiado, acresce ainda que uma Santa (Teresinha?), do lado direito, parece até estar a fazer, com um dos braços, levantado, uma saudação fascista...
Em Houston (E. U. A.), existe, no entanto, uma igreja singularíssima - a Rothko Chapel. Dedicada a todos, porque a nenhum culto. Consagrada ao pensamento humano, na sua diversidade mais ampla. Inaugurada em 1971, foi iniciada a sua construção, em 1964. O casal John e Dominique de Menil tiveram a ideia e encarregaram o pintor letão, judeu e americano Mark Rothko (1903-1970) de decorar o templo, interiormente. Este, por sua vez, escolheu o arquitecto Philip Johnson, para  concretizar o projecto.
No interior, encontram-se as Fourten Black Paintings, de Rothko. Mais tarde, no espaço exterior, foi ainda implantado o Broken Obelisk, escultura abstracta de Barret Newman, dedicada à memória de M. Luther King.
A singularidade deste espaço religioso inspirou Peter Gabriel a compor uma obra (Fourteen Black Paintings) e a Desmond Feldman, outra: Rothko Chapel.

George Steiner, sobre o Amor e a Amizade


sábado, 30 de maio de 2015

Divagações 89


Um livro é, à partida, um objecto sério. O que lá está, por princípio, conta com a nossa credibilidade e confiança. A menos que contenha uma teoria filosófica ou literária, de que discordemos, a adesão é quase sempre perfeita e leal. Mesmo assim, atribuímos a essa exposição do autor uma sinceridade própria, um valor em si. Para um leitor, há nessa demonstração argumentativa uma solidez e uma verdade, mesmo que possa ser alheia à dele.
Porque o que não se escreve corre o risco de perder-se para sempre. O que Pina Martins não disse de Sá de Miranda, mas provavelmente sabia, talvez não seja nunca mais descoberto ou encontrado. As partituras, a escrever, de Schubert, interromperam-se para sempre, pela sua morte prematura. Os poemas maduros e livres que Herberto Helder poderia ter escrito, se tivesse tido mais dois ou três  anos de vida, deixaram de ser uma probabilidade humana.
Mesmo numa comunidade de tradição oral, há sempre muita da sabedoria conquistada que desaparece com o fim do sábio transmissor. Por isso me parece justa e sugestiva a referência que Erik Orsenna (1947) faz sobre um preceito africano que diz, mais ou menos, isto: Quando um velho morre, é uma biblioteca que arde.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Condomínio fechado


Teremos de voltar ao poema de Cavafy, em que se falava da chegada dos bárbaros, que não chegaram a vir? Ou, mais perto, aos versos de Pessoa, e aos seus ocidentais jogadores de xadrez. Até porque os bárbaros já estão entre nós. De pouco valerá bombardear os navios ou os armadores traficantes das frágeis embarcações mediterrânicas, que partem, insistentemente, da Outra Banda, que os bárbaros já estão entre nós. E bárbaros somos nós, deuses impiedosos, ao expulsar os gregos, novos Adão e Eva reciclados, deste condomínio fechado e climatizado, em que a inefável Europa se foi transformando. Em que cada país é um castelo sitiado por arrogâncias, egoísmos e cegueira suicida.

Longe

Citações CCXXXVIII


O grande objectivo da cultura é o de nos obrigar a reconhecer, com alguma certeza, a perfeição e fazê-la triunfar.  

Mathew Arnold (1822-1888), in Culture and Anarchy (1869).

Glosa (4)


Que devemos herdar destes últimos versos?
Cumpri-los na obrigação metódica da leitura mais próxima das palavras, ainda mornas? Tentar fazê-las quase nossas, na matéria sombria de outra voz tão desigual, ao ouvi-las? Ou seguir o seu procedimento a tracejado, nesta noite parda de calor do dia passado, que parece ressumar e fumegar, ainda, do rio?
Mesmo que aos versos se acasalem, por coevas, as palavras do Amigo que nos sagrou sobreviventes,ao princípio da tarde. No estúdio interior da calçada banal, já só havia passado, coeso embora nas recentes mas últimas telas onde o azul cinzento era preponderante. E nas palavras, que eram simples, despidas de qualquer ostentação. Ou metáfora, que havia de ser - se fosse -  fogo fátuo e vazio, para quem se conhecia há muito...
Em suma e apenas: interrogar o início, imaginar o fim.

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Último


nascia das trevas morria
mal tocava nas palavras
por isso ninguém sentia
que eu chegara e já partira:

Manhã alta, persianas descidas, que o Sol já parece de Verão, leio, vagarosamente, o último livro de Herberto Helder. De que pouco se falou, que não levantou polémica, já que o corpo do Poeta eram só cinzas frias e esquecidas.
Aqui dou notícia, breve.

Tracy Chapman (1964)

Comic Relief (108)


As novas oportunidades...
Será que conferem o grau de Mestre? Ou apenas o de Dr.? E seguem o protocolo de Bolonha, ou não?

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Critérios


Não sei que escola pedagógica da modernidade fez difundir, de forma acrítica, a inefável teoria de que se deveria estimular a auto-estima das crianças no sentido e com o objectivo do seu desenvolvimento harmonioso e do seu equilíbrio humano. Num país, como o nosso, em que o sentido crítico dos cidadãos sempre foi deficitário, creio que esse princípio foi tragicamente pernicioso. Qualquer pequeno rabisco de uma criancinha era aplaudido como obra-prima; incentivavam, nas escolas, pequenos seres a fazerem poemas que, independentemente do seu valor, eram sempre saudados, entusiasticamente. E assim por diante... Lá fora, creio que se fez o mesmo. Criaram-se países virtuais apenas habitados por génios. Para si mesmos, sem qualquer sentido de realidade e de grau.
Hoje, no Calhariz, vi um frenético jovem estrangeiro a fotografar, sistematicamente, tudo o que mexia ou estava parado: bocas de incêndio, cãezinhos, vitrinas de pastelaria, o celebrado eléctrico 28, caixotes de lixo... Sem qualquer critério, em suma. Que, depois, irá publicar, talvez, no seu popular Blogue, sempre muito visitado. Mais um génio para "de entre família", como dizia o Pessoa, sempre actual, ainda hoje.
Um pouco de modéstia, outro tanto de sentido crítico e uma boa dose de bom senso não fariam mal a ninguém e seriam salutares, no sentido de separar o trigo do joio, o lixo daquilo que, realmente, se deve recordar. Evitando esta exposição excessiva de mau gosto, este protagonismo medíocre de banalidades, esta assustadora falta de critério.
Em contraponto. Quando abordaram Jacques Brel para que viesse a integrar a prestigiada e séria colecção "Poètes d'Aujourd'hui" ( da Pierre Seghers), o belga ficou varado, corou e achou que as suas canções não eram dignas de tamanha honra. Tentando demovê-lo, o representante do editor perguntou-lhe: "Que vous manque-t-il pour devenir un poète?" E Brel, em toda a sua simplicidade, respondeu: "Y croire!"

Mais um poema, traduzido, de Tomas Tranströmer


Aos amigos, para lá de uma fronteira


I
Acabei por escrever-vos uma carta tão seca. Mas tudo aquilo que não pude dizer
foi enfunando e assim pleno, como outrora os dirigíveis
pode, finalmente, partir pelo céu durante a noite.

II
A minha carta está agora nas mãos do censor. Ele acende a sua lâmpada.
Nesse súbito clarão, as minhas frases evoluem como pequenos símios por entre grades de metal
que eles vão abanando, fazendo momices e arreganhando os dentes.

III
Terão de ler por entre as linhas. Havemos de nos ver dentro de duzentos anos,
quando os microfones estiverem esquecidos por dentro das paredes dos hotéis,
e quando puderem, por fim, adormecer, como se se transformassem em eternas trilobites.


Tomas Tranströmer (1931-2015), in Stigar (1973).

Sobre poesia portuguesa


Se haverá algum consenso sobre o facto de a filosofia portuguesa ser quase irrelevante no panorama do pensamento europeu, não deixa, também, de ser notório que a poesia de ideias ou reflexiva é uma corrente minoritária no carme nacional, se comparada com a poesia lírica, em sentido restrito.
Os cultores da primeira creio que se poderão contar pelos dedos. Em sequência cronológica: Sá de Miranda, Francisco Manuel de Melo, Alexandre Herculano, Antero de Quental, Pessoa e Jorge de Sena. Com a ressalva de nem todos serem poetas de primeira água - do meu ponto de vista.

terça-feira, 26 de maio de 2015

Uma reflexão de Francisco Manuel de Melo


"Eis aí o engano dos mortais; porque a velhice é uma piedosa estalagem que Deus pôs entre a morte e a gentileza, brio, esforço e saúde. Se entre o inverno e verão não houvesse de uma banda o outono e da outra a primavera, quem pudera viver, passando desordenada e sùbitamente das calmas aos frios e dos frios às calmas? Se entre o dia e a noite não houvera um e outro crepúsculo, que vista se averiguara com as luzes ou com as sombras, passando intempestivamente da claridade às trévoas e das trévoas à claridade? Da mesma maneira, e ainda muito mais necessária, interpôs a Providência a velhice entre a vida e a morte para que ali se domasse a fúria dos afectos, se deminuisse a sobejidão do amor da vida, e o homem fosse perdendo o receo à morte, pela conversação dos achaques e companhia dos acidentes próprios da velhice. Senão, dizei-me: quem poderia apartar-se liberalmente das felicidades humanas em meio delas, se, ainda depois de gozadas e depois de perdidas, custa tanta dor seu apartamento? ..."

Francisco Manuel de Melo (1608-1666), in Relógios Falantes.

Liszt / Trifonov : "Mazeppa" (Estudos transcendentais, nº 4)


De "As Fórmulas da Viagem", o poema V, de Tomas Tranströmer



A caminho para uma longa noite. Obstinadamente, o meu relógio
faz cintilar o insecto prisioneiro do tempo.

Uma sala sobrelotada torna o silêncio mais espesso.
Na penumbra, as planícies passam em tropel.

No entanto, o escritor está apenas a meio da sua imagem
e é por aí que se deslocam, simultaneamente, a águia e a toupeira.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Recuperado de um moleskine (12)


É um canto mágico por onde eu vejo o tempo, às vezes, transfigurado. Outras, muito objectivo.
Estava um azul de Magritte, ao fim do dia. Mas as nuvens eram pouco criativas - nada sugeriam, entre as suas oblíquas linhas brancas, mal definidas, e os flocos de algodão, banais. Um dos flocos, quase a diluir-se, ainda tentou metamorfosear-se, escurecendo, num famélico leão aéreo. Depois, num cabrito esventrado, à Soutine, a preto e branco porém, mas cada vez mais ténue, que desapareceu, levado pelo vento, para Sul.
Pouco antes da noite cair, houve ainda uma pomba negra que parecia vir na minha direcção, mas que se afastou a tempo, no último momento, para meu sossego. E sua salvação.

Uma fotografia, de vez em quando (61)


Entre Lewis Carroll (1832-1898) e o pintor polaco-francês Balthus (1908-2001) há, pelo menos, três coisas em comum: pseudónimos para autenticar as suas obras; e o gosto por meninas impúberes e por gatos, como motivos emblemáticos nos seus trabalhos.
Lewis Carroll, pseudónimo de Charles Lutwidge Dogson, foi um banal e conservador professor de Matemática do Colégio de Christ Church, em Oxford, e nunca casou. Entretanto, escreveu "Alice no País das Maravilhas" (1865) e fotografou, incansavelmente, Alice Liddel (1852-1934), em menina, que era uma das 3 filhas do reitor desse Colégio. Alice casou tarde, para a época, aos 28 anos, tendo tido uma existência apagada. Teve três filhos, dois dos quais morreram na I Grande Guerra.
As fotografias de Carrol, do período victoriano, não serão as melhores, mas são das mais célebres, por razões alheias, mas significativas.

domingo, 24 de maio de 2015

Wim Mertens : "Further hunting"


Os acordes iniciais, desta interessante obra do compositor belga Wim Mertens, fazem-me lembrar a "Sarabanda" de Händel, que Kubrick fez integrar na banda musical de "Barry Lyndon" (1975).

Nota: mais uma vez os cerca de 60 segundos de aplausos, no final, desequilibram um pouco este vídeo.

A par e passo 136


Céptico e satírico deveria ser um espírito que se distinguisse pela sua extrema avidez de tudo conhecer. A sua imensa cultura fornecer-lhe-ia abundantemente os meios de se desencantar. Ele transformaria, alegremente, em mitológica e bárbara qualquer norma social. Os nossos usos e costumes mais respeitáveis, as nossas convicções mais sagradas, os nossos ornamentos mais dignos, tudo seria convocado, pelo espírito erudito e engenhoso, a ingressar numa mera colecção etnográfica, acasalando com os tabus, os talismãs, os amuletos das tribos; por entre os ouropéis e os despojos das civilizações já ultrapassadas e destronadas do poder por causa da sua exótica e curiosa singularidade.

Paul Valéry, in Variété IV (pgs. 37/8).

Retro (70) : há 60 anos...


sábado, 23 de maio de 2015

Pinacoteca Pessoal 96


Esta Tavola Strozzi, que integra o acervo do Museu de San Martino, de Nápoles, e que é atribuída a Franceso Rosselli (1445-1512?), tem para mim um encanto especial, uma espécie de magia. Parece, em si mesma, o cenário ideal para um conto de fadas.
Mas vamos aos factos, para além da beleza da obra. O quadro terá sido pintado por volta de 1472-73, tendo sido re-descoberto, no Palácio Strozzi, em 1901. Representa parte do porto de Nápoles, e a entrada da armada de Lourenço de Medecis, depois da batalha de Ischia.
Franceso Rosseli é conhecido, sobretudo, como um excelente cartógrafo e gravador. Nascido em Florença, trabalhou sobretudo em Nápoles. Na década de 80 do século XV, crivado de dívidas, fugiu para a Hungria, para escapar aos credores. Regressou mais tarde a Florença e abriu uma loja onde vendia as suas gravuras.

Nota: para ver melhor a pintura, bastará clicar sobre ela, para aumentar.

Pelos 91 anos de Charles Aznavour


Foi ontem. Que Charles Aznavour completou 91 anos. Aqui fica a sua voz para o lembrar.

Citações CCXXXVII


A cultura é aquilo que a maior parte recebe; que muitos transmitem; e que poucos possuem.

Karl Kraus (1874-1936), in Pro domo et mundo.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Recomendado : cinquenta e sete - Cultura


O libelo construtivo e fundamentado, sobre Cultura, subscrito por Raquel Henriques da Silva, a propósito da apressada inauguração, hoje, das novas instalações do Museu dos Coches, merece ser lido.
Veio publicado no jornal Público de hoje. O tom sereno e sério do seu testemunho justifica, inteiramente, que eu recomende, aqui, a sua leitura.

Regionalismos transmontanos 81


1. Varino - gabão, capote com cabeção.
2. Varudo - alto.
3. Vasal - armário para guardar copos, malgas e pratos.
4. Vasaréu - (Valpaços) vaso velho. Caco.
5. Vasculho - vassoura feita de giesta ou trovisco para varrer o forno.
6. Vedeira - alcoviteira, noveleira, mulher que leva e traz novas.

Wim Mertens / Dirk Brossé


quinta-feira, 21 de maio de 2015

Alerta


A conhecida obra "O almoço do trolha", de Júlio Pomar, é, provavelmente, a mais icónica e expressiva da pintura neo-realista portuguesa do século XX. Executada entre 1946 e 1950, há quem nela veja uma alusão simbólica e involuntária, do Pintor, à Sagrada Família.
O quadro vai a leilão na próxima almoeda do Palácio do Correio Velho, nos próximos dias 27 e 28 de Maio de 2015.
Escusado será dizer que esta pintura poderia enriquecer, consideravelmente, o Museu do Chiado. Mas do desGoverno, que deixou perder (e facilitou a venda), para o estrangeiro de um importante Crivelli, e que se exprime, débil e titubeante, sobre a alienação de vários quadros de Miró, para fora de Portugal, não se podem esperar grandes coisas. Nem sequer a clarividência inteligente, lúcida e culturalmente patriótica, para decidir na arrematação por uma opção sensata desta obra, a favor do acervo nacional.

Lembrete 28


Já começaram a florir ao cimo da rua Castilho, próximo da Penitenciária. No Largo do Rato, também. E em S. Pedro de Alcântara. Falta-me ver em que ponto estão os jacarandás da D. João V, da 24 de Julho e os do Largo do Carmo. Que estes últimos são sempre os mais tranquilos e repousados, para observar...

Portugal, desconhecido e abandonado

Algures, a Norte, em Vila Real...

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Osmose (53)


Fértil que tem sido, este mês, o vento agita profundamente as copas das árvores, pela manhã.
Do interior da casa, através da janela, é por aí que lhe reconheço a existência. Invisível, o movimento que provoca denuncia a sua passagem. Mas como poderia eu descrevê-lo, por palavras e gestos, a quem, de todo, o desconhecesse?
Talvez da mesma maneira como se ensinam as cores a uma criança. Porque as palavras que as identificam são, apesar de tudo, redundantes e arbitrárias. As suas existências, raramente, as justificam, objectivamente. Essas, sim, são meras invenções humanas para chamar nomes às coisas.

Silvius Leopold Weiss (1686-1750)


Um colunável, muito jovem:


terça-feira, 19 de maio de 2015

Adagiário CCXX


A aranha vive do que tece.

Divagações 88


O TLS traz, no seu último número (5849), recensões a  dois livros, recentemente publicados, que abordam a escrita criativa, como novo método de aprendizagem. Pelo texto perpassa, aqui e ali, uma fina ironia.
Ciência (?) recente, em Portugal, esta disciplina universitária tem, na maioria dos seus mestres e gurus, alguns escritores de segunda divisão, embora mediáticos q. b., que, com grande sentido de oportunidade, viram nesse ensino uma boa ocasião de comporem o seu orçamento, através das muitas pretensas vocações poéticas e dos suspirantes e aspirantes a prosadores, em que a nossa terra sempre foi abundante.
Está bem!... Também assim poderemos dizer, agora, que temos escritores encartados e licenciados, com os canudos competentes.
Ao invés, no entanto, temos de concluir que os nossos antigos escritores e poetas eram uns amadores, sem formação conveniente, tão autodidactas como esses pintores de domingo que, tanta vez, encontramos pela rua, ou na paisagem, a pintar riachos e moinhos...

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Mais um poema de Tomas Tranströmer


A planície no Verão


Vimos já tanto.
A realidade usou-nos demasiado,
mas, de súbito, eis que chega o Verão:

este grande aeroporto - em que o agulheiro
faz descer do céu carregamentos
de pessoas transidas, uma após a outra.

Ervas, depois as flores - aterram por aqui.
As ervas têm um dono verde.
Eu faço-me anunciar.

Francisco Tárrega / David Russel


Citações CCXXXVI


Devemos ter velhas memórias e esperanças jovens.

Arsène Houssaye (1815-1896).

domingo, 17 de maio de 2015

Brevíssima


Se Karl Marx (1818-1883) voltasse à Terra, com toda a certeza que aproveitaria para fazer um aggiornamento numa das suas frases mais conhecidas, para: O futebol é o ópio do povo.

Pequena história (34)


A leitura de um romance, bem construído, cria quase sempre inesperadas associações, abre ramais noutras direcções, alargando os horizontes.
O general Mikhail Kutuzov (1745-1813), derrotado por Napoleão na grande batalha de Borodino (1812), segundo Tolstoi, no seu "Guerra e Paz" (Tomo II, pg. 371), por essa altura, andava a ler Madame de Genlis ("Os Cavaleiros do Cisne") e Madame de Souza, em língua francesa.
Intrigou-me esta última senhora, com apelido português. Depois de aturados esforços, vim a saber-lhe o nome todo: Adélaïde-Emilie Filleul, marquesa de Souza-Botelho. Filha de uma amante de Luís XV, nasceu a 14 de Maio de 1761, tendo falecido no ano de 1836. Escreveu vários romances. E, em 1802, o embaixador português em Paris, José Maria de Souza Botelho Mourão e Vasconcelos (1758-1825), 2º Morgado de Mateus, casou com ela, em segundas núpcias - era viúvo. A benefício de inventário, deve-se a este Morgado de Mateus a construção do magnifico solar homónimo e uma não menos preciosa edição de "Os Lusíadas", publicada a expensas suas, em Paris, no ano de 1817, com ilustrações de F. Gérard e Fragonard, entre outros ilustres pintores e gravadores.
E eis como, indirectamente, um português veio dar ao "Guerra e Paz", de Leão Tolstoi...

Wim Mertens : "Close Cover"


A fruta da época


sábado, 16 de maio de 2015

Bibliofilia 120


Não sei quando me terei apercebido de que, arremedando o castelhano, autodidacticamente, podia ser entendido pelos espanhóis. Provavelmente, quando fui pela segunda vez a Santiago de Compostela, teria eu entre treze e catorze anos. E onde comprei uns 4 ou 5 livrinhos, de índole diversa, para ler. O que vim a fazer depois, sem grande dificuldade, entendendo quase tudo.
Mais tarde, quando cheguei à poesia de Neruda, as coisas começaram a complicar-se; ainda um pouco mais tarde, com os versos de J. R. Jiménez, começaram a fiar mais fino, e cheguei à conclusão de que teria de comprar um dicionário de espanhol-português para compreender aquela "música das esferas". Acabei por comprar um modesto volume (Editora LEP/S.A., São Paulo) de bolso, em imagem, editado no Brasil, em 1956, na sua sexta edição, com autoria de H. P. Santos. Custou-me, na altura, Esc. 17$50. Mas era de léxico muito rudimentar e deixou-me frustrado, muitas vezes, pelas constantes omissões.
No anos 80 do século passado, comprei um novo dicionário em dois volumes (espanhol-português e português-espanhol), pelo preço muito acessível de Esc. 300$00. Fora editado pela Garnier, de Paris, por volta de 1920, obra do Visconde de Wildik. E era já bastante mais completo. Mesmo assim, uma e outra vez, deixava-me na ignorância de algumas palavras...
Finalmente, cheguei ao completíssimo e competente dicionário de Manuel do Canto e Castro Mascarenhas Valdez (1820-1886), cidadão nascido no Rio de Janeiro, que faleceu em Lisboa. Em 1864 e na Imprensa Nacional (Lisboa), fez publicar a sua monumental obra, em 3 grossos volumes. É trabalho aturado e precioso, onde nestes últimos 6 anos, fui procurar o significado de palavras espanholas, e sempre encontrei respostas. Os meus exemplares estão belamente encadernados, tendo dado por eles 45,00 euros. Não preciso de mais e por aqui me fico, quanto a dicionários de espanhol.

Interlúdio 50


Perdoe-se a má imagem do vídeo, compensada pela boa disposição que pode provocar...

com agradecimentos a C. S..

David Hockney


Inaugurou hoje, em Londres, na Galeria Annely Juda, uma nova exposição de David Hockney (1937), dedicada a pintura e fotografia, com os últimos trabalhos do artista. Encerrará em 27 de Junho de 2015.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Há 25 anos, B. B. King


25 é um número redondo, como 90 seriam, que B. B. King (1925-2015), falecido ontem, não chegou a completar, de anos de vida.
Será boa altura para o relembrar quando, em 1990, actuou no Casino do Estoril, e convidou Rui Veloso para o palco, para o acompanhar.
Em geminação com MR, no seu Prosimetron.

2 destaques de uma crónica


Admitamos que as crónicas de António Guerreiro, na ípsilon do jornal Público, não são fáceis, nem simples. Que, por vezes, têm o seu tom críptico e/ou sibilino, que raramente poderá ser perceptível para a maioria. Mas importará, também, sublinhar a sua argúcia a desvelar alguns dos tiques pimbas nacionais, alguma grossaria preponderante na nossa sociedade. E a sua denúncia realista ao apontar aspectos menos óbvios da banalidade confrangedora de uma boa parte do pensamento da chamada elite portuguesa.
Daí estas duas transcrições, que faço a seguir, do seu texto de hoje:

"...A questão é esta: Marcelo Rebelo de Sousa representa, ao mais alto nível, um discurso que quer passar por análise ou comentário político, mas de onde a política foi completamente evacuada. (...) Para ele, toda a política é uma questão de tácticas, de fintas e simulações. E ganha o que for mais cretino. É desta matéria que são feitas as suas prelecções, enquanto animador do crochet televisivo. ..."

quinta-feira, 14 de maio de 2015

A par e passo 135


Eu creio bem, meus senhores, que a idade de uma civilização se deve medir pelo número de contradições que ela acumula, pelo número de costumes e crenças incompatíveis que nela própria se encontram e se temperam entre si; pela pluralidade das filosofias e estéticas que coexistem e coabitam, muitas vezes, na mesma cabeça. (...) Um homem moderno, enquanto moderno, convive familiarmente com uma quantidade de contrários que se estabelecem na penumbra do seu pensamento.

Paul Valéry, in Variété IV (pgs. 35/6).

Para o momentoso caso nacional, indirectamente, um fragmento de K. K.


Os psicólogos modernos, que deslocam os limites da irresponsabilidade, têm aí amplamente o seu lugar.

Karl Kraus (1874-1936), in Pro domo et mundo.

Diana Krall (1964)


quarta-feira, 13 de maio de 2015

Comic Relief (107)


Se os poetas - alguns - têm, por vezes, o dom de nos recauchutar a alma, os humoristas não terão decerto menor mérito, porque nos dão alegria.
Até há pouco tempo, eu desconhecia este Senhor luxemburgês, que dá pelo curioso nome de Pol Leurs (1947). E é cartunista. Dos bons!

Desafio


Se é verdade que, muitas vezes, contra todas as evidências, vemos o que queremos ver, e não o que lá está, realmente; ou lemos o que gostamos, ou gostaríamos de ler, também é um facto que um jornal, que se pretende plural, tem, necessariamente, sound bites para várias camadas de leitores.
Atentemos, por exemplo, nalguns títulos do jornal Público de hoje:
1. Estado põe contabilista da Tecnoforma a gerir créditos do BPN.
2. Portugal é o oitavo país da UE com mais mortes por álcool.
3. Padre Mário da Lixa quer provocar "limpeza mental" (a propósito de Fátima).
4. Hollande sobre Fidel: "Um homem que fez história".
5. Mais perguntas do que respostas no "caso Crivelli".
Agora, proponho um desafio, lançando leitores-tipo que melhor terão recebido estes títulos, mas por ordem desencontrada da lista anterior:
a) os leitores soixante-huitards.
b) os oposicionistas inatos.
c) os abstémios e hipocondríacos.
d) os intelectuais engajados.
e) os leitores laicos e republicanos.
Quem quiser, que tente acasalar, devidamente...

Muito breve


Há umas pequenas flores, entre azul e lilás, na varanda a leste, que são como algumas borboletas cuja vida é breve: duram apenas um dia - abrem com o Sol nascente, fecham e morrem ao anoitecer.
Ilustram como a beleza é frágil e efémera . Morrem, assim, na juventude. Quase como Rimbaud. Ou, antes, como Keats, que afirmou, em verso: "A thing of beauty is a joy forever..."

terça-feira, 12 de maio de 2015

Melody Gardot (1985)


Regionalismos transmontanos (80)


1. Vacarrona - mulher desleixada e vagarosa.
2. Vadagaio - desmaio.
3. Vaganau - indivíduo corpulento. Homem sem propósito, mariola.
4. Valeira - vala das vinhas (Rebordelo).
5. Vara - pau para os chouriços no fumeiro. Peça de madeira do arado para ligar aos animais.
6. Vareta - andar de vareta: andar de diarreia.

Citações CCXXXV


A democracia é, antes de tudo, um estado de espírito.

Pierre Mendès France (1907-1982), in La République Moderne.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

O todo e o mínimo


Será que o espaço geográfico determina a capacidade de um autor, no tratamento de grupos sociais, pela expressão artística? Foi a pergunta que me ocorreu, pouco depois de reiniciar a leitura de "Guerra e Paz" de Tolstoi, com as suas inúmeras personagens, de algum modo, cobrindo, transversalmente, a sociedade russa. De outra maneira, se o espaço nacional, em que nos movemos, diminui ou alarga o horizonte da expressão artística dos naturais - ver pequeno, ou ver grande... Será que os autores dos pequenos países estão confinados e amaldiçoados ao tratamento artístico de pequenos microcosmos regionais? E o todo se lhes escapa, sempre?
É evidente que "Guerra e Paz" é transversal na abordagem das várias camadas sociais, privilegiando embora as classes mais altas, em detrimento de camponeses e artesãos. Mas poderemos ver o inverso, mantendo-se a larga latitude, nas obras de Eisenstein, de D. W. Griffith ou de Kurosawa. Por aqui, Portugal, teríamos de recuar vários séculos atrás, para chegar até a "Os Lusíadas", de Luís de Camões. Quando ainda havia Império e longas extensões territoriais, abertas ao olhar...

Para ilustração e em complemento da poesia de Tomas Tranströmer


domingo, 10 de maio de 2015

T. Transtörmer, poema sobre um Portugal antigo


Lisboa


Os eléctricos amarelos pareciam cantar subindo Alfama.
Duas prisões havia. Uma, para os ladrões.
Que acenavam com as mãos por entre as grades.
Gritando que queriam ser fotografados.

«Mas aqui," disse-me o cobrador hesitante, como a fazer troça,
«é aqui que metem os políticos». Eu olhei a fachada, a fachada
contínua, e lá em cima, na janela, um homem
com um binóculo contemplava o mar.

A roupa branca secava pelo céu. As paredes ardiam.
As moscas pareciam decifrar letras minúsculas.
Seis anos mais tarde, perguntei a uma senhora de Lisboa:
«Era mesmo assim, ou terei sonhado?»


Tomas Tranströmer, in Klanger och Spär (1966).


para H. N., por razões óbvias.

Patti Labbell & Moby


Divagações 87


Aqui há 40/41 anos atrás, era rara a semana em que "Le Nouvel Observateur" não trouxesse um artigo sobre Portugal. A revista acompanhava, com grande simpatia, os desenvolvimentos do 25 de Abril. E o facto enchia-me de orgulho e dava-me alegria. Ser português, nessa altura, era um motivo de regozijo. Ao contrário de em anos anteriores...
O último L'Obs (nº 2635), depois de anos e anos, sem que Portugal merecesse notícia detalhada, dedica à situação do país nada menos do que quatro páginas. Mas não pelos melhores motivos. A reportagem centra-se em dois temas fulcrais: o ermamento do interior e a diáspora. E ainda sobre uma perspectiva pessimista do futuro, como se Portugal tivesse regressado ao passado de há 50 anos atrás.

sábado, 9 de maio de 2015

Levar o fio à meada


Regressado que foi o bom tempo e as temperaturas amenas, retomo, na varanda a leste, por entre os 4 limõezinhos recém-nascidos do limoeiro novo e as flores brancas das sardinheiras, a leitura de "Guerra e Paz" de Tolstoi. Abandonada que fora, há meses (Novembro de 2014), a obra, na página 247 do segundo volume, que vai a mais de meio, reabro de novo o calhamaço. Ao lado, e à mão, tenho, porém, Baltiques, de Tomas Tranströmer - gentilmente emprestado por H. N., em mais um rasgo atento de boa amizade - para o caso de o tédio vir a ser grande, na leitura da obra-prima (sem ironia, MR!) do escritor russo.
Re-constato as inúmeras gralhas, imperdoáveis, desta tradução portuguesa, da Inquérito, do já longínquo ano de 1957.
São quase sete horas da tarde, ainda há luz na varanda, e o céu, quase limpíssimo de nuvens, está nitidamente azul. Acabei a página 272...

Mercearias (muito) Finas 102


Registe-se, a título de curiosidade e para memória futura, que, na passada quinta-feira, 7 de Maio de 2015, nos salões da casa leiloeira Sotheby's, em Londres, foi vendido um Vintage bicentenário, pela quantia de 5.000 libras, o equivalente a 6.800 euros. Tratava-se do celebrado Vinho do Porto Ferreirinha de 1815, cognominado Waterloo, por pertencer à colheita do ano em que Napoleão foi definitivamente derrotado, em terras, hoje, da Bélgica, e na batalha de nome homónimo.
As caves da Sogrape-Ferreirinha albergam ainda no seu interior, em Vila Nova de Gaia, mais 49 garrafas deste precioso néctar. Pobre de mim!, que o mais antigo Vinho do Porto, que bebi (em 1979), decantado que foi, pertencia a uma reserva particular de 1871. Mas era boníssimo, também...

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Ao fim do dia : "Often a bird", de Wim Mertens (1953)


O minuto final deste vídeo é todo ocupado com aplausos, o que desiquilibra a sua audição.
Mas dentro das várias opções que havia no Youtube, a maior parte dos vídeos eram servidos por imagens delicodoces, indigentes, quitches ou pimbas ao extremo, a acompanhar esta obra (Often a bird), que reputo de belíssima, do flamengo Wim Mertens.
A visão de uma orquestra, simplesmente, é muitíssimo mais digna e escorreita. Ao piano, o próprio autor: Wim Mertens.

Filatelia CIII


Sinal dos tempos, também o fim da II Grande Guerra foi celebrado, filatelicamente, nos países beligerantes. A primeira série britânica, de 1945, com a efígie do rei Jorge VI, aponta para a reconstrução e para a Paz. Dos Aliados, também os Estados Unidos da América emitiram vários selos, em 1945, com motivos alusivos de maior simbolismo patriótico, louvando o exército americano na libertação de Paris, a batalha de Iwo Jima e a sua marinha nacional.
Enquanto isso, na Alemanha derrotada, com as suas infra-estruturas destruídas, Correios desorganizados e emissões paralizadas, cada cidade, vila, lugarejo, aproveitava restos dos últimos selos do nazismo, para franquear a correspondência, apondo-lhe, muitas vezes à mão, sobrecargas manuscritas. Estas estampilhas constituem o que, hoje, se chama: Lokalausgaben (Emissões locais). E, nos selos base, a efígie de Hitler era obscurecida a tinta, num exorcismo artesanal, mas bem revelador do pragmatismo germânico...