sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Lembrar Eugénio (1923-2005)


Acerca de gatos

Em abril chegam os gatos: à frente
o mais antigo, eu tinha
dez anos ou nem isso,
um pequeno tigre que nunca se habituou
às areias do caixote, mas foi quem
primeiro me tomou o coração de assalto.
Veio depois, já em Coimbra, uma gata
que não parava em casa: fornicava
e paria no pinhal, não lhe tive
afeição que durasse, nem ela a merecia,
de tão puta. Só muitos anos
depois entrou em casa, para ser
senhor dela, o pequeno persa
azul. A beleza vira-nos a alma
do avesso e vai-se embora.
Por isso, quem me lambe a ferida
aberta que me deixou a sua morte
é agora uma gatita rafeira e negra
com três ou quatro borradelas de cal
na barriga. É ao sol dos seus olhos
que talvez aqueça as mãos, e partilhe
a leitura do Público ao domingo.


Eugénio de Andrade, in O Sal da Língua (1995).

2 comentários:

  1. Respostas
    1. Até para quem não gosta, particularmente, de gatos, é uma tentação passar a dedicar-lhes alguma atenção, depois de ler este poema..:-)
      Bom dia, também.

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