quinta-feira, 25 de abril de 2024

Apontamento 166: 25 de Abril – Vivências

 

[cfr. https://restosdecoleccao.blogspot.com/search?q=Transportadora+Belo]

Passados 50 anos, todos sabemos que a memória já não é o que era. Sucede, no entanto, que permanecem registos inapagáveis, embora de precisão temporal e local algo diluídos.

Mesmo assim, resolvi registar, para memória futura, o que ainda se acumula na memória, visual e afectiva, de aprendizagem única e determinante.

Com efeito, assim foi o meu 25 de Abril.

Saí, pouco depois das 7 da manhã, da casa de residência em Cacilhas, transformada maioritariamente em república estudantil, para ir para o meu trabalho de administrativa numa fábrica situada no Casal do Marco. Utilizava as camionetas Belo, em imagem, para acordar no caminho, sonolenta, das noitadas de conversas e convívios.

Julgo não estranhei, à partida, a ausência de qualquer passageiro habitual, porque também não tinha grande familiaridade com os utilizadores da camioneta. Achei estranho o facto de o motorista estar muito atento ao que estava a ser transmitido na sua telefonia, matéria que, no meu estado meio ensonado, me passou ao lado. Ficou-me a lembrança de ter feito a viagem com poucos passageiros, contrariamente ao habitual.

Depois de sair da camioneta, seguindo a pé para a fábrica, o caminho também me pareceu pouco frequentado.

Junto da entrada da fábrica comunicarem-me que não podia entrar, devia recolher a casa porque estava em curso “não sei o quê”.

Preocupada com os meus companheiros que deixara a dormitar na “residência estudantil”, tentei voltar o mais depressa possível a casa. Felizmente, as camionetas Belo ainda funcionavam regularmente.

Ao voltar a entrar em casa, já havia quem se tinha apercebido, embora vagamente, do que se estava a passar em Lisboa.

Como seria para passar de barco, de Cacilhas para Lisboa ? Haveria barcos ?

A partir deste momento, da nossa deslocação da margem Sul para o centro dos acontecimentos em Lisboa, a cronologia já não acerta. Baralham-se as imagens, embora haja, por enquanto, registo de memória dos locais percorridos.

Lembro-me perfeitamente, da mole humana e do ambiente no Largo do Carmo. Antes ou depois, guardei imagens de uns soldados da GNR, com arma na mão e semblante assustadiço, nas escadas de acesso para os comboios da estação do Rossio.

Ainda em pleno dia, como diz a seguinte notícia:

“Uma primeira manifestação tinha avançado pela rua António Maria Cardoso, provocando os primeiros disparos e os primeiros feridos, por volta das 13h30.” – Esquerda NET

recordo-me de fixar, para o resto da minha vida, uma Travessa dos Teatros, ao Chiado, pelo facto de alguém me ter empurrado, caindo nestas escadas, para não ser atingida.


Actualmente, julgo saber o lugar exacto, na imagem acima, de onde vieram os primeiros disparos.

Não me lembro de todo o que se comeu, onde e quando nestes primeiros dias fora de casa.

Vínhamos para casa apenas para dormir e tratar das necessidades básicas e de higiene.

Da altura, e ainda como forasteira voluntária, fica o meu testemunho de uma experiência ímpar, de rara dádiva humana, social, cultural, política e afectiva.

No final de contas, seria imperdoável não registar as mudanças de vivência e as alterações no relacionamento pessoal que se operaram após o 25 de Abril. A aparente abertura com laivos de opções progressistas nas relações pessoais cedo deu lugar a outros encontros, passando de ideais revolucionários a trilhos tradicionais de “casa e pucarinho”.

Sinais do tempo.

Consequentemente, se o pós-25 de Abril provocou, primeiro, a perda do poiso na residência habitual e, de seguida, o despedimento de um emprego seguro, surgiram as dificuldades próprias da altura. Abalos e consequências, certamente, na convicção, julgada inabalável, de uma opção democrática, nem sempre bem fundamentada, de quem se tentava situar na margem esquerda do mundo democrático.

Em todo o caso, foram essas circunstâncias que contribuíram para uma opção de vida que desejava, baseada numa formação sólida, intelectual, com enriquecimento pessoal, político e afectivo que, passados estes 50 anos, me merece o maior agradecimento ao país que me acolheu e, designadamente, ao apoio dos que me são mais próximos.

Fica o eterno abraço a todos os amigos que encontrei e que me ajudaram, assim como os familiares que me têm enriquecido a vida todos os dias.

 Post de HMJ

6 comentários:

  1. Não consegui ler tudo, mas quando tiver a vista mais focada voltarei para ler.
    Feliz dia 25 de Abril!

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    1. De HMJ para a MR.
      Desejo as melhoras, na certeza de que o "post" não desaparece. Fica para mais tarde !

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  2. Um belo testemunho. Eu tinha 3 anos e não me lembro de nada... :-D Bom Feriado!

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    1. De HMJ para Margarida Elias.
      Mas nasceu em Democracia, é o que vale !

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  3. HMJ,
    Um relato incrível!
    E, por muitos anos que passem, há vivências que não se apagam da nossa memória!
    Tinha 6 meses (aprox.) quando se deu o 25 de Abril... Felizmente, só sei o que é viver em Democracia e Liberdade!
    Bom dia!

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    1. De HMJ para Cláudia Ribeiro
      Pois, foram momentos marcantes para o resto da vida.

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