terça-feira, 13 de abril de 2010

Transforma-se o amador na coisa amada - Camões por Sena



É talvez o conto português que mais vezes reli. E é, para mim, o melhor momento de prosa de Jorge de Sena. Tem por título "Super Flumina Babylonis" e foi escrito em Araraquara (Brasil), a 27 de Março de 1964. É um documento brilhante sobre criação poética e, também, um "exercício de admiração" - para usar palavras de E. M. Cioran - de Jorge de Sena ao nosso Luís de Camões. Está integrado no livro de contos "Antigas e Novas Andanças do Demónio". São apenas 12 páginas de leitura, mas de grande tensão dramática e limpidez de escrita. Vou trancrever apenas o final, mas para quem nunca leu este conto de Jorge de Sena, aconselho vivamente a sua leitura integral. Até porque é um dos grandes momentos da literatura portuguesa. Para os que já leram a narrativa, venho só relembrá-la.
"...Levantou-se impelido por uma ânsia que lhe cortava a respiração, uma tontura que multiplicava a pequenina luz da candeia. Apoiado à mesa, arrastou-se até à outra ponta, e daí deixou-se cair até à enxerga. Remexendo nela, tirou de um canto umas folhas de papel, o tinteirinho, com a pena enfiada no anel, que se habituara, desde o primeiro embarque, a guardar assim. De joelhos, com as dores neles e nas partes aumentando muito agudas e em picadas de que cerrava os dentes, veio até à mesa, pousou nela o que trazia, e levantou-se. Ficou um momento, de olhos fechados, arquejando. Já as palavras tumultuavam nele, confundidas com as outras, inúteis e mortas, da tradução que tentara. Eram como uma tremura que o percorria todo de arrepios, com hesitações leves, concentrando-se em pequenas zonas da pele. Debruçando-se da mesa a que se apoiava, puxou para o seu lado a cadeira, e caiu sentado nela. Sentia um suor frio escorrer-lhe pela testa, e, ao abrir o tinteiro, viu que as costas das mãos brilhavam perladas. Uma onda de alegria o inundou, em sacões ansiosos. Os olhos ardiam-lhe e era de lágrimas. Tudo falhara, tudo, e a própria poesia o abandonara, receosa dos seus olhos de alma penetrantes que viam o fundo das coisas. O poço com as formas flutuando. Mas era um grande poeta, transformava em poesia tudo o que tocava, mesmo a miséria, mesmo a amargura, mesmo o abandono da poesia. Tremendo todo, mas, com a mão muito firme, começou a escrever... Sobre os rios que vão de Babilónia a Sião assentado me achei... Riscou, desesperado. Recomeçou. Sobre os rios que vão por Babilónia me achei onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei...
E ficou escrevendo pela noite adiante."

12 comentários:

  1. «Sôbolos rios que vão
    por Babilónia, me achei,
    onde sentado chorei
    as lembranças de Sião
    e quanto nela passei. [...]» (Camões)

    Ainda aqui há dias alguém citou este poema, aqui ou no Prosimetron.
    Sou uma grande fã de Sena.

    ResponderEliminar
  2. Tudo o que li de Jorge de Sena foi sempre «na diagonal», nunca me «agarrou». Defeito meu, com toda a certeza. Não o associava a esta magnífica prosa. Vou ver se encontro este conto.
    Uma pergunta infantil: pode-se ser um grande poeta depois de se ter sido abandonado pela poesia?
    Uma heresia: «O poço com as formas flutuando» soa-me um bocadinho pretensioso. Certamente, os meus ouvidos que não prestam... :-)

    ResponderEliminar
  3. errata: certamente, os meus ouvidos não prestam...

    ResponderEliminar
  4. FIDELIDADE

    Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
    como só a presença com que me perdoas
    esta fidelidade ao meu destino.
    Quanto assim não digas é por mim
    que o dizes. E os destinos vivem-se
    como outra vida. Ou como solidão.
    E quem lá entra? E quem lá pode estar
    mais que o momento de estar só consigo?

    Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
    o que à morte se diria, se ela ouvisse,
    ou se diria aos mortos, se voltassem.

    Jorge de Sena

    Adoro este poema.

    Jorge de Sena foi bom em tudo o que fez: romance, conto, poesia, ensaio (onde se debruçou sobre áreas diversas, como Camões, Pessoa, Maquiavel, literatura inglesa, etc.).
    c.a, tem de ler os Sinais de fogo.

    ResponderEliminar
  5. Para MR:
    eu acho que falei no Prosimetron e até referi que também era conhecida por "Babel e Sião"...
    ou então sonhei.
    E como ensaísta, Sena é do melhor que temos, sobretudo pela concisão (ver "Líricas Portuguesas",3ªsérie)crítica dos poetas que aprecia, pela agudeza racional,etc....

    ResponderEliminar
  6. Para "c.a.:
    não queria ser evasivo nas respostas, mas as suas perguntas são difíceis. Antes de mais, o poema toma como base o Salmo 136 (ou 137) de David, e da Bíblia. É,em certa medida, uma glosa dos seus 30 versos.Em tempo de defeso ou pousio, as traduções e/ou glosas são uma espécie de intermediação na aridez, até chegar uma aberta
    mais propícia. Tenho,no entanto, para mim que se pode pintar e romancear até à velhice, em qualidade e frescura. Mas, em poesia, raramente isso acontece. E é o que lhe posso dizer.
    Mas leia este conto de Jorge de Sena, porque ajuda a perceber algumas pequenas coisas.

    ResponderEliminar
  7. Não conhecia esse poema, MR. É, de facto, extraordinário. Vou procurar os «Sinais de Fogo». Muito grato.

    Acho que entendi, APS. Não tinha visto a questão por esse ângulo. Fiquei preso nas palavras, no seu significado literal. Julgo que agora percebi o sentido. Vou ler o conto (e o salmo). Gratíssimo.

    ResponderEliminar
  8. Vou ler o conto, o salmo e reler o poema de Camões (peço desculpa, as sinapses hoje estão um bocado lentas...)

    ResponderEliminar
  9. Aquilino e o início da CASA GRANDE..
    Sena e SUPER FLUMINA...
    Cardoso Pires , início de ALEXANDRA ALFA

    Há quanto tempo !...

    ResponderEliminar
  10. Meu caro Luís:
    eu acrescentaria também o final de "Directa" de Nuno de Bragança, e "Os meus amigos de certo nâo sabem o que é caçar coelhos na neve?...", do nosso estimado Camilo, logo ao início de " Cenas Contemporâneas".

    ResponderEliminar
  11. APS,
    Desculpe, já não me lembrava quem tinha sido... :)

    Gosto muito do Cardoso Pires, mas não do Alexandra Alpha, mas vou ver como se inicia, já não me recordo.

    ResponderEliminar