Embora compositor romântico para os especialistas e puristas, eu, como mero amador musical, atrever-me-ia a classificar Franz Liszt (1811-1886) como simbolista... Estes "Jeaux d'Eau à la Villa d'Este", integrados no "Terceiro Ano de Peregrinação", aqui ficam para agradecer aos meus Amigos e visitantes, e para provar essa minha afirmação atrevida. É, da obra de Liszt, uma das peças musicais de que mais gosto.
Pino Donaggio
Há 5 horas
TEMPO A HAVER
ResponderEliminarAprendi, primeiro, a desenrolar as horas com um exactidão infinita. Com os minutos foi um pouco mais difícil.Finalmente, a aprendizagem do descaroçar dos segundos levou-me meses (dos antigos) a aperfeiçoar, de tal modo a vertigem se apossava das pessoas à minha volta. Isto me obrigava a um enorme esforço de concentração, milhares de vezes interrompido e recomeçado.
Porém, com a chegada da Primavera , o trabalho estava praticamente concluído e bastava-me abrir a toalha do tempo em qualquer lugar, dispondo, de forma harmónica, os símbolos desactualizados que se estendiam preguiçosamente até ao horizonte na vertical e, na horizontal, até ao infinito. Um infinito azul, obviamente.
Este fascínio tinha contudo os seus inconvenientes. Chegava ao fim de um pequeno espaço de tempo com os olhos demasiado cansados pelo movimento frenético dos esgares dos braços e pernas das pessoas que passavam, pelo discurso anárquico e ininteligível dos que pareciam conversar, pelo descontrolo rítmico de quem comia, bebia ou fumava; pelo voraz itinerário de automóveis, comboios e autocarros. Suportava um pouco melhor o percurso dos barcos e navios e quase me reconciliava com o voo dos aviões de carreira que, de longe a longe, iam passando.
Achei, por isso, aconselhável isolar-me mais. Até a música, porém, me perturbava; nem alterar as rotações de dos velhos discos de 78 para 33 rotações me dava a paz de espírito necessária. Só o silêncio se compadecia e me acompanhava, harmoniosmente. E a leitura. Para a qual tinha agora um espaço interminável e livre.
Fora, realmente, um Inverno trabalhoso mas que ia valendo a pena, à medida que ia habituando as coisas ao meu tempo. A luz do dia durava-me imenso e, só quando me sentia fatigado, eu abrandava esse controle sobre o tempo, para que a noite viesse e convidasse os meus olhos a fecharem-se.
Não digo, com isto, que pretendesse recuperar a juventude ou retardar o envelhecimento. Tuido iss passava um pouco ao ladodos meus desejos imediatos. Pretendia apenas saborear melhor a experiência lúcida dos meus últimos trinta anos, dar sentido a essas conclusões de uma forma equilibrada e justa , para que a vida não soasse a um universo “full of sound and fury, and signifying nothing”, como creio que disse Shakespeare, de alguma forma, por alguma sua personagem.
Nos últimos meses, antes do acontecimento, até o meu filho mais velho se queixava da sua falta de tempo para quase tudo: as pesquisas arqueológicas, o estudo, o trabalho com o computador, etc...Isso foi a tal gota de água a mais, o baque de que eu necessitava, para que, num feriado pouco antes do fim do ano, em que mulher e crianças e amigos, todos tinham partido para algures, me pusesse a olhar vagamente para a parede branca em frente e conseguisse descaroçar um minuto, até à exaustão. Claro que o perdi logo a seguir, mas este pequeno exercício me bastou para concluir que era possível determinar o tempo e prolongá-lo. É, evidentemente, uma operação solitária em que a energia, a vontade, a inteligência, a imaginação, bem como o afecto, têm papéis preponderantes. Qualquer coisa como reatingir a infância, em que tudo era grande e os dias e as noites pareciam não ter fim.
ResponderEliminarNaturalmente, depois de alcançar a perfeição do exercício, comuniquei (não!, tentei comunicar ) a descoberta ao meu amigo António que vive em Aldoar. Em vão, a princípio. Pelo telefone (viemos a saber depois), eu não conseguia entender o seu desarrazoado vertiginoso e ele pensou que eu estaria numa post-anestesia operatória, tal era a lentidão da minha voz. Resolvi escrever-lhe a explicar melhor, e ele respondeu. Nas palavras estáticas o diálogo era ainda possível. À terceira carta perguntou-me, simplesmente:
“-E para que queres tu o tempo?”
Na minha carta nº 4 respondi-lhe:
“-Para o gastar convenientemente.”
E, assim, fechamos a conversa elucidativa.
Fui aproveitando o entretanto e o vagar para por as minhas leituras em dia, facto que nunnca conseguira até aí, porque só o fazia à noite.Comecei pelo “ À la recherche du temps perdu” do Proust e, com a maior das facilidades, a leitura foi rápida e deslizante, como outrora tinha sido a renda das catedrais literárias de Amadeo Laudeo.
O desbaste nas minhas estantes começava a ser arrasante e quase nada me restava ara ler senão apoesia toda do Herberto Helder (mais o Edoi) e Os Lusíadas que, em tempo de remota juventude, eu guardara para reler na velhice.
Resovi, então, sair de manhã cedo, a única altura do dia em que o meu ritmo, pela ausência da vertigem do alheio, me harmonizava com o mundo. Fui andando, andando. Até que dei por mim junto da estátua do menino louco e rei, de Cutileiro, na praça de Lagos. Cruzei o seu olhar infinito (seria azul? ), os pobres imensos ombros e as manápulas paradas. A pedra era macia ao meu olhare alguma tristeza havia em tudo isto.
-“Que fazes?”- perguntou-me numa voz áspera e calcárea (seria das areias do Sahará?).
Disse-lhe que usava o meu tempo de outra forma e que ele me dava, agora, para tudo. Sorriu, com um ligeiro arrepio de febre nos olhos. Explicou-me o que sentia de inverso e insuportável. Na invasão dos Algarves, na destruição de toda a frota das Indias, na batalha a que teria de tornar, rapidamente. Na sua enorme vontade de urinar.
E foi assim que, piedosamente, trocamos de lugar.
Alberto Soares
Meu Malandro! "Si non era vero era bene trovato!"
ResponderEliminarE a intuição das mulheres é terrível!...
Abraço fraterno,
Alberto.
Obrigada por este Liszt que desconhecia. Não é um compositor que oiça muito.
ResponderEliminarAlberto, aqui fica uma questão. Será que o Luís é o mesmo António? Será que tem a mesma graça, agora que o sabe? O Fernando Pessoa lá sabia porque é que umas vezes escrevia umas coisas com um nome e outras com outro. Por aqui me fico... e é por isso que eu não quero conhecer a Miss Tolstoi. A única coisa que sei (ou julgo saber) acerca dessa figura é que sabe Russo! Saberá?
ResponderEliminarO Liszt conhecia, a Villa d'Este é que ainda não. Quando estive em Tivolli virei para a esquerda e não para a direita. Pode ser que em breve esteja a recordar "as Peregrinações".
E esquecia-me de dizer... "Saudades Para Dona Genciana", dado que Miss Tolstoi também gosta de J. Rodrigues Miguéis.
ResponderEliminarPara JAD:
ResponderEliminarfoi uma meticulosa e bem humorada estratégia, num jogo afectuoso de Amizade.
E, como sempre, o JAD, nas restantes considerações usou palavras de sabedoria...
Abraço amigo do
A.S.