Se houvera de esclarecer, detalhadamente, porque prefiro Sá de Miranda a Camões, ou Nemésio a Régio, com certeza que teria dificuldade em o explicar. Quem os frequentou, com alguma intensidade, talvez perceba se eu disser que Régio e Camões têm leituras lineares (um pouco menos o 2º), ao passo que Sá de Miranda e Nemésio podem ter várias camadas de entendimento ( a tal ambiguidade da poesia moderna...) ou profundidades e níveis de leitura. Em abordagens sequentes, os poemas vão-se desdobrando, abrindo-nos novas perspectivas de compreensão, quase sempre. São poetas de vida ou de velhice em que a experiência se acrescenta, enquanto Camões e Régio são vates de juventude em que o amor, o grito, a revolta se concentram (uma vez mais, Camões é bem mais rico do que Régio). Depois, a grandeza vocabular que pode sempre levar-nos a novas paragens e associações. Os anacronismos de linguagem em Sá de Miranda são também motivo de irradiação sucessiva, como as elipses, sendo que o verso de Camões é, no geral, corredio e cristalino, ou excessivamente moderno. Por outro lado, o alinhado verso de Camões e Régio, contrapõe-se ao desalinhado, às vezes arrítmico, verso de Sá de Miranda ou de Nemésio que obriga a pausas de leitura e solavancos de espírito, profundamente enriquecedores. Nada melhor que deixar a Vitorino Nemésio (1901-1978) as últimas palavras (Andamento Holandês, 1., pg. 37) deste poste:
Desenho a Holanda cor de Delft
E é minha a água simples de uma mão
De quem não digo nem às aves a maneira
Nem nome ou osso:
Só que a conheço pelo azul que posso.
Um dia (ou «era uma vez», dizia o outro),
Um dia me levaram minhas mágoas,
Como já Bernardim, às longes terras,
Renovado Camões a Guardafui:
E um aceno bastou de porcelana
Já para alguns jacintos alinhados
Na janela fechada do que fui.
Esperam rosa ou estrada os que adormecem.
O sono é sua forma a linho em branco:
Só eu tiro de mim a flor de Holanda
Com a força da graça recebida
E um pouco de bretanha ensanguentada:
Não por tristeza aprendida
Ou maneira de enfermagem,
Mas por que sangre em copa esta Tulipa
Na neve diluída da viagem.
29. 1. 1963.
P. S. : Dedicado, desportiva e amavelmente, a um comentador anónimo do Prosimetron.