segunda-feira, 5 de maio de 2014

Apontamento 45: A adaptação aos "novos tempos"



Por vezes, um “banho de realidade” com todo o desconfortante e decepcionante vale mais do que mil explicações. Acontece que umas viagens pelo país real nos fornecem, sobretudo aos forasteiros minimamente atentos, uma visão mais aguda do desenvolvimento perverso dos últimos anos que foi criando dois países paralelos, o das estatísticas e o outro, “de carne e osso”.

Voltei, hoje, a um palácio classificado pelo IGESPAR, chamado Quinta das Torres, situado no meio de uma mancha florestal admirável, à saída de Azeitão. A visita tinha por objectivo reencontrar um lugar onde “outrora”, ou seja, há uns anos largos, os nossos visitantes tinham sido felizes, apreciando, sobretudo, a singularidade do lugar e a diferença cultural que apreciaram.

Nesse passado, aparente longínquo, funcionava, no dito Palácio, uma Estalagem e, designadamente, um restaurante. Servindo almoços e jantares, num espaço soberbo virado para o “lago, com frescos, em forma de tempietto”, segundo a informação do IGESPAR, comia-se bem, com produtos da terra e empregados locais, atentos e educados. Sem preços exagerados, era um lugar onde se aliava o bem-estar a um ambiente marcadamente tradicional, no bom sentido do termo, que marcaria, de forma indelével, a diferença cultural dos países da Europa, mesmo durante uma estadia breve. Facto é que o nosso visitante de outrora quis voltar ao mesmo lugar !

Embora tivesse alertado os meus visitantes para o facto de o “país paralelo” dos mercados ter provocado muitos estragos, designadamente naquilo que mais nos distinguia, geográfica e culturalmente, dos restantes países da Europa, eles insistiram em voltar ao tal “lugar de excepção”.

Assim foi. Subimos a álea de acesso ao palácio, rodeado de uma vegetação frondosa. Reparamos logo no abandono e desleixo completo. No espaço fronteiriço, nem vivalma, apenas um portão entreaberto para o pátio interior, com dois cães, pachorrentos, a olhar para os forasteiros. Ainda houve tempo para apreciar, como outrora, as laranjeiras e o espaço. Surgiu-nos, então, uma daquelas figuras sobejamente incaracterísticas do “outro país” paralelo. Uma criatura, vestida de fato preto, com listas turquesa, como novas “trolhas” do patrão, a saber ao que vínhamos. Se nos servissem um almoço ou um jantar, como outrora, ficaríamos, com muito gosto e prazer.

Ah! Não, o restaurante já fechou, há quatro anos, e “adaptamo-nos aos novos tempos [sic]”, agora é só para grupos e outras coisas quejandas. Deixou, no entanto, um recado final muito explícito: “os senhores não podem circular, nem tirar fotografias”! No entanto, como a lembrança do passado foi mais forte, os meus acompanhantes ainda tentaram ver o lago. Qual quê ! Veio logo a “megera”, dando ordens para abandonar o lugar, sublinhando que não podiam tirar-se fotografias, claro está, de telemóvel na mão, em jeito de ameaça!


Obviamente não foi preciso explicar mais demoradamente aos meus visitantes que o “país da estatística, do empreendedorismo, do mundo financeiro”, afinal, a “tal adaptação aos novos tempos” tinha dado resultados. A destruição do genuinamente cultural deu lugar ao abandono completo, entregue a umas criaturas sem porte nem cabeça, porventura à espera do próximo “investidor gold” para arrasar o que ainda resta.

Os meus visitantes ficaram tristíssimos. E o país perdeu, definitivamente, como aliás, “nós por cá” sabemos perfeitamente.

Post de HMJ

4 comentários:

  1. Infelizmente, não só empobreceram o país, como também o descaracterizaram.
    É uma tristeza.

    Boa noite!

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  2. Fui uma vez à Quinta da Torre, há anos, almoçar. E gostei bastante.
    Essa moda dos grupos...

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