sexta-feira, 31 de março de 2023

Apontamento 153: Quem não se sente, não é filho do boa gente

 

Ora, os que pretendem falar da habitação, sem preconceitos, mas com os pés assentes na realidade, convinha partir de uma reflexão racional, caso contrário entramos no universo do engano, ledo e cego.

Então, aqui vai o relato da realidade.

Passado algum tempo depois de ter vindo para Portugal, sem nunca ter vivido em apartamentos ou casas alugadas, vi-me, de um dia para o outro e em finais da década de 70, por causa de uma velhacaria de pretensos candidatos a familiares, sem “eira nem beira” a chegar ao aeroporto de Lisboa vindo da Alemanha. Mudaram-me, durante a minha ausência, a fechadura e o resto faz parte da história pessoal.

Resta lembrar que, nos finais dos anos 70, o problema da habitação não era diferente do que se apresenta agora, embora por motivos diferentes.

Com efeito, consegui sobreviver, com tecto, devido a uma ENORME dívida que tenho para com os meus amigos.

Depois de amigos meus me irem buscar ao aeroporto e me comunicarem o facto insólito de estar sem tecto, acolheram-me em sua casa durante o tempo necessário para encontrar uma solução de autonomia.

Primeiro vivi num quarto, com os tarecos – que os velhacos me deixaram tirar – pagando 2/3 do meu rendimento, sobrevivendo, para o resto, à custa dos convites diários de – mesa e banho – dos meus amigos da frente, já que a senhora do quarto não tinha esquentador para aquecer o banho.

Através desses amigos da frente consegui uma casa razoável, onde vivi durante 30 anos, com todos os esforços perante um senhorio – daqueles que ainda não devem ter acabado – de uma falta de civilidade atroz.

O pagamento, em dinheiro, tinha que ser levado para a casa dele, distante da minha. O recibo era passado quando calhava, ao ponto de levar meses a conseguir o pagamento através de transferência bancária, já que o familiar que me acompanhava como testemunha do pagamento da renda nem sempre estava disponível.

Durante os 30 anos de locatária, - e com uma renda bastante acima dos 30 % do rendimento, recomendáveis - não houve nenhuma bemfeitoria por parte do senhorio. Se as diversas janelas de madeira aguentaram o tempo todo, foi graças ao meu cuidado e os conselhos do meu pai, já que o senhorio me levou, durante todo esse tempo, uma lata de 1 litro de tinta para pintar as janelas. Mais nada !

Ao reparar a canalização, gasta, solicitou o pagamento das obras, chegando ao cúmulo de levar uma sanita, VELHA e suja, para substituir a existente.

Obviamente, foi quando achei, e tendo conseguido outra autonomia de acomodação, que a postura sempre humilhante do senhorio tinha chegado ao limite.

Foi assim que me livrei de uma personagem tipo do nosso universo de senhorios – feito em grande medida de matreiros e malfeitores provincianos – que ainda hoje se levanta novamente.

Conto tudo isto porque a História se faz destes episódios, embora individual, marcam um determinado tempo. No passado, julgo o momento difícil foram os anos finais da década de 70 e, agora, temos o mesmo problema, cá como na Europa, da habitação.

Resta acrescentar que os meus pais, como senhorios numa pequena vivenda, nunca chegaram a velhacaria e humilhação a que fui sujeita para ter um tecto.

São lições para a vida e, por isso, saúdo VIVAMENTE, toda a iniciativa do Governo para impor regras a um universo abusivo de proprietários, maioritariamente e culturalmente pouco recomendáveis.

O Jornal DIE ZEIT faz uma boa análise da situação da habitação em Portugal:

https://www.zeit.de/politik/ausland/2023-03/portugal-wohnungsnot-zwangsvermietung

 Post de HMJ

 

6 comentários:

  1. Fez-me recordar uma história que aconteceu com os meus pais, que a certa altura da vida (era eu garota) tiveram uma pequena pensão no 2º e último andar do prédio onde morávamos. Pediram autorização ao senhorio para fazer as obras necessárias e ele autorizou. Não havia papéis assinados e já as obras estavam a meio, "deu o dito por não dito" e disse que não tinha autorizado e com essa mentira aumentou a renda para o que era uma exorbitância, naquela altura. E os meus pais tiveram que aceitar ou então voltar a deixar o andar como estava, o que seria um grande prejuízo, uma vez que as obras de modificação já estavam a meio. Felizmente, a pensão correu bem,estava sempre cheia e embora não dando para enriquecer, permitiu uma vida confortável, quando eramos pequenos. O senhorio foi um sacana e um homem sem palavra.
    Cada vez mais as pessoas, com ou sem papéis assinados, não têm palavra nem respeito pelos outros, nem pelos seus pertences. Porque também quem aluga casas muitas vezes no final dos contratos encontra as casas destruídas e sem possibilidade de obrigar os inquilinos a pagar os estragos (conheço alguns casos).

    Todos deveriam ter um tecto e viver com o mínimo de conforto, mas quando se conseguirá isso?

    Um bom fim-de-semana:))

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    1. para Isabel:
      Então também conheceu esse senhorio tipo, ganancioso, falso e nada interessado na conservação e manutenção do seu bem.

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  2. Impressionante a sua história e a da Isabel. Concordo com ambas. Acho inacreditável a defesa que se faz dos senhorios, sabendo-se estas histórias. Bom dia!

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    1. Para Margarida Elias
      Do que vivi, vi e presenciei, apenas conheço poucos casos de senhorios bondosos, interessados, sobretudo, na preservação do seu bem, mas sem nenhum perfil de proprietário ganancioso.

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  3. Quando eu quis arranjar sair de casa dos meus pais, a meio da década de 70, não havia casas para alugar. Nada! Nadinha! Tive de comprar casa. Foi a opção possível e necessária. Esta a razão por que há tantos proprietários de casas em Portugal, como a senhora Merkel nos atirou à casa, durante a crise, não percebendo nada do que se passava em Portugal durante décadas. Um problema herdado de uma lei de arrendamento para Lisboa e Porto que estabelecia o valor máximo em 1110$00, que não foi aumentado durante décadas. O mesmo contrato passava de pais para filhos e até para netos.
    Com estas rendas havia proprietários que não tinham dinheiro para fazer obras. Conheço um caso próximo que durante anos pagou um condomínio superior à renda que recebia. Fora as obras. Os senhorias pagavam para os arrendatários lá viverem.
    Depois passou-se, como todos sabemos do 8 para o 80, com a lei Cristas. Imensa gente foi posta na rua que também procura casa, para além dos que já procuravam. E há proprietários com casas fechadas, não sei à espera de quê.
    Espero sinceramente que estas propostas do Governo resolvam, pelo menos, uma parte deste problema.
    Bom dia!


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    1. Para MR:
      Pois a precariedade do emprego não me permitiu avançar, sem receios, para a compra de casa. A Lei Cristas, que todos tentam abafar, criou situações completamente inaceitáveis para pessoas idosas com contratos antigos. O mal de uma grande maioria dos senhorios é que não cuidam nem da manutenção, nem da conservação do seu bem. Claro está que, ao fim de 30 anos nada aguenta sem cuidado por parte do senhorio. Aliás, o meu senhorio teve a sorte de EU querer e saber viver numa casa, embora de propriedade alheira, com as condições exigidas, cuidando, EU, da falta de sentido de propriedade do indivíduo.
      A propriedade imóvel não é um BEM ABSOLUTO, exige, para manter os esforços sociais associados, de uma responsabilidade civil, social e até cultural, exigência poucas vezes encontradas em senhorios com que meu cruzei.

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