domingo, 31 de agosto de 2014

Remate


Nunca gostei de falar de matadouros, muito embora tenha, como observador desinteressado e alheio, assistido a algumas desmanchas de carnes, sobretudo de bovinos, que é uma forma de ver o vermelho na sua expressão mais simples. Crua e real.
Agosto acaba-se por entre uma aragem fresca, vinda de Norte, e os gritos ululantes das hordas futeboleiras, vindas de um café chunga, aqui, à beira Sul. Mas que se integram bem na silly season, que termina hoje.
Entre a sra. Merkel que, na sua curteza de vistas e roupas foleiras, conseguiu secar tudo à sua volta, e os morticínios de África, do califado medieval e da Ucrânia, que sobra? Talvez o angelical sr. Holanda, o sorriso figé do sr. Valls, que reproduz, serôdio, o esgar católico do sr. Blair - seu antepassado - que, por sua vez, imitava (mal) o joker-Jack Nicholson da irrealidade cinematográfica.
Não me peçam para ser feliz, em Setembro, s. f. f. !

A par e passo 104


A poesia é a ambição de um discurso que seja mais carregado de sentido, e entrelaçado de mais música, do que aqueles que a linguagem quotidiana pode conter ou trazer consigo. Nada é mais simples de conceber que o desejo de enriquecer indefinidamente esta carga de maravilhas, que se sobrepõe, ou se substitui à carga útil da linguagem. Mas este acréscimo tem limites que se atingem com dificuldade; o equilíbrio que é preciso manter com o leitor, entre o esforço que se exige e as forças com que é sugerido, obriga a que a proporção não se rompa. A obscuridade por um lado, a inanidade, do outro; o vago expressivo, o absurdo, a singularidade pessoal exagerada, todos estes perigos que não cessam de abeirar-se e cercar estreitamente as obras de espírito, ameaçando especialmente os poemas, e que os atraem com perigo para os abismos do esquecimento.

Paul Valéry, in Variété II (pgs. 180/1).

Contos


Um número restrito de personagens e páginas (senão, transforma-se em novela), uma certa concisão narrativa, um leitmotiv forte, a tensão musculada das frases, de preferência breves (Hemingway, por exemplo), fazem do conto um caso à parte na prosa literária.
Há contos que são uma aguadilha, outros, um concentrado forte que não medrou para romance, talvez por impaciência do escritor. O remate, como no soneto, terá que ser apropriado e impressivo. Se possível, surpreendente, como num bom policial.
Esse clarão final, que fica na memória, é que nos permite, depois, reconstituir os antecedentes narrativos e recontar o conto a algum amigo nosso, que o não conheça. Muitos desses contos exemplares vieram da pena de Maupassant ou da caneta de Maugham.
E eu já andava com saudades de ler contos. Por isso, ontem, comprei duas antologias, na rua Anchieta, para me regalar e fartar. Ou talvez tivesse sido para funcionar como antídoto à leitura de "Guerra e Paz", de Tolstoi, que é um romance enorme, em 3 volumes. Estes contos são pequenos microcosmos narrativos...para intervalar.

sábado, 30 de agosto de 2014

Inti-Illimani


Regionalismos transmontanos (51)


1. Listo - esperto, desenvolto, arguto, vivaço.
2. Loba - preguiça, pouca vontade de trabalhar.
3. Lombelo - cada um dos dois pedaços compridos de carne que se tiram dos lados do lombo do porco e que também se chamam coelhos.
4. Longórvia - mulher alta e magra.
5. Loureiro - alegre.
6. Lúparo ou Lúpuro - rebento de couves velhas.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

J. L. Borges


Como já o disse por aqui, Jorge Luis Borges (1899-1986) não é dos meus escritores preferidos. Nem como prosador, ainda menos como poeta. Mas atribuo-lhe, sem dúvidas e com justiça, uma notabilíssima erudição, considerando-o um óptimo conversador.
Este vídeo com a duração de pouco mais de 16 minutos - eu sei -, apesar do fim-de-semana e das eventuais férias, não é para todos, nem sei se será para muitos alguns. Que este tempo é  mais de saltitos e impaciência.
Que as palavras de Borges aproveitem a quem as mereça!

P. S. : não posso deixar de sublinhar e lembrar as palavras de Alberto Manguel - que o conheceu pessoalmente, e bem - sobre as pretensas hesitações gaguejantes de Borges, ao falar. Que seriam intencionais, talvez para obrigar o seu potencial ouvinte a dedicar uma maior atenção às suas palavras...

Versão (pessoal) de um poema de Ezra Pound (1885-1972)


Sub Mare

É, e não é, mas sinto-me bem agora,
Desde que chegaste até aqui e começaste a cavar à minha volta,
Esta construção feita de rosas de Outono,
Passou a haver, então, esta cor dourada, bem diferente.

E podemos afagar estas coisas tão macias
Como são as algas que chegam até nós e vão embora, submarinas,
Para onde há breves brilhos verdes sob as ondas,
Por entre esses sinais mais antigos do que os nomes que têm,
Estas coisas tão próximas, íntimas, familiares a deus.


Ezra Pound, in Selected Poems (Faber and Faber, 1967).

Impromptu (7)


A revista Simplicissimus foi uma publicação satírica alemã que começou a publicar-se em 1896, criada por Albert Langen (1869-1909) e que, com pequenos intervalos, só deixou de ser editada no ano de 1967.
As suas capas têm um cunho muito peculiar, sempre focando temas da actualidade, e são, normalmente, de grande beleza estética.
Aqui ficam as imagens de três números, para se ver a qualidade dos seus ilustradores.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Insistindo...

Cegueiras


Por três vezes, hoje, a cegueira se cruzou comigo.
Para quem, como eu, utiliza com alguma regularidade o metropolitano, faz sentido eu dizer que, a maioria dos desprotegidos residentes (embora móveis através das carruagens) são ou músicos, ou cegos. E as nacionalidades serão duas: a portuguesa, quanto aos cegos, a romena, quanto aos músicos. Ambos se manifestam pelo som. Não deixa de ser desagradável o batimento seco da bengala, no chão das carruagens, de um dos cegos nacionais. E, no meu entender, ele acentua a batida (como hoje) quando está mais mal disposto - fantasia minha, talvez...
À tarde, chegou-me à mão um postal amigo reproduzindo um quadro, onde a personagem principal é Dom Pérignon. Cego, ele, também, e ao que consta.
Finalmente, à noite, estive a ouvir uma magnífica conferência (1977) de Jorge Luis Borges, em que ele fala da sua própria cegueira e aborda as cores da sua vida. Destaca o seu gosto pelo amarelo que ele recorda como primordial, desde que o viu, pela primeira vez, nos tigres do jardim zoológico. Contrastando com o negro. Da cegueira?

Mercearias Finas 89


À falta de acontecimentos gastronómicos relevantes, nos últimos tempos, falemos, hoje, de um frade beneditino. Que os abades, pelo menos por cá e sobretudo os minhotos, são considerados bons garfos e costumam tratar-se bem à mesa. Mas este, que aparece no quadro, era francês, e chamava-se Dom Pérignon (1638-1715). Era beneditino e adegueiro do convento e a lenda, que o considera inventor do Champanhe, refere que era cego e que, talvez por isso, tivesse um apurado sentido de olfacto e de sabores.
O mito vai mais longe e conta que, quando por um feliz acaso, produziu e provou o primeiro trago do inicial champanhe, terá gritado para os seus irmãos de clausura, chamando-os: "Venham depressa, que eu estou a beber estrelas!" Perdoe-se a talvez inverdade dos factos, pela beleza da cena, mas as lendas são assim...
O quadro, em imagem, pertencente ao acervo da casa Moët & Chandon, produtora do célebre champanhe homónimo, foi executado pelo pintor francês José Frappa (1854-1904), e tem por título: Le célèbre Cellerier aveugle, Dom Pérignon, goûtant les raisins des vignobles de l'Abbaye d'Hautvillers. É, pelo menos, uma pintura curiosa e sugestiva.

com grato reconhecimento a A. de A. M..

Citações CXCIV


O barulho é a mais importante forma de interrupção. É não somente uma interrupção, mas também uma ruptura do pensamento.

Arthur Schopenauer (1788-1860).

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Dmitri Shostakovich (1906-1975)


Bibliofilia 109


Estes poetas portugueses do século XVIII (e o XVII ainda é pior...), temos que os depenicar e ler com cuidado, deitar fora os bagos podres, triá-los com frieza, senão é uma grande sensaboria a leitura. Mas há uma boa meia dúzia deles que vale a pena conhecer, embora não integrem, muitas vezes, o cânone oficial, até porque, para tudo, é preciso ter sorte e cair em graça, para ser lembrado. Este vate, Joaquim Fortunato de Valadares Gamboa, bem merecia uma referência nos compêndios de literatura, ainda que fosse breve. Mas nem Inocêncio lhe concede muito espaço, no seu Dicionário, e muito menos dá informação sobre as datas de nascimento e morte, embora avance que Valadares Gamboa talvez tenha falecido logo no início do século XIX.
Por umas Endexas (pg. 80), que constam do II Tomo (Rollandiana, 1804), das suas Obras Poéticas, vê-se que o Poeta estava muito a par da Agricultura (e o Gamboa do apelido até permite fantasiar...), conhecia bem as diversas especialidades de cada fruto, bem como as castas das uvas portuguesas:

Tenho vinha velha,
Mas bem casteada;
De uvas primorosas
Será regalada.
Bastardo excelente,
Temporão leirem,
Branca trincadeira
E preta também.
Doce moscatel,
Bom déba, e boal;
Tenho malvasia
Que não tem igual.

Mas esta simplicidade, que está próxima da quadra popular, não lhe ocupa a totalidade da obra. Porque nela há poemas bem sucedidos e versos de alguma qualidade, semeados pelos dois livros publicados.
Tudo isto para concluir que, nos anos 80 do século passado, tive imensa dificuldade em conseguir comprar os dois tomos da obra poética de Valadares Gamboa, ambos impressos na Tipografia Rollandiana. E se o segundo tomo (1804) que possuo é da primeira edição, já o o Tomo I é da segunda impressão (1791). Não tenho qualquer apontamento sobre o preço que dei pelos livros, que estão em bom estado, mas posso afirmar com segurança que as Obras Poéticas, deste vate neo-clássico, não aparecem com frequência à venda. E, creio, que também nunca foram reeditadas.

Actualização devida: por lapso, não me lembrei do trabalho meritório de Pedro da Silveira sobre o Poeta. Onde propõe 1745 e 1815, como datas de nascimento e morte, de Valadares Gamboa. Refiro estes elementos num anterior poste de 10/10/2010.

Às vezes, o difícil é arranjar um título...


A levada ainda corre, mas vai lenta e quase rasa.
O desejo de sedução nunca nos abandona, mesmo que seja inocente, mas o direito de exclusão tem outra força e legitimidade. O homem sentou-se-me ao lado, mas pediu licença - que eu dei. A verdade é que não me estava a apetecer vizinhança muito contígua e o trintão me pareceu um "copinho de leite" e meia branca. Para esclarecer e abrir caminho, puxei ostensivamente do cigarro, e acendi-o Foi remédio santo, o rapazelho pediu licença, outra vez, para passar e acabou por sentar-se noutra mesa, mais distante. À saída, reparei que tinha pedido litro e meio de água de Luso, para acompanhar a pescada cozida - tanta água, deus meu!
Eu tinha levado o jornal Público, que estava a ler.  Acho que é fundamental ler os sinais. São por vezes mínimos os indícios mas, mediaticamente, marcam uma vontade de futuro. O título, que vai em imagem, é talvez pobrete, mas revela o desejo de mudança do paradigma que, pelo menos, a minha geração atribuia ao herói. Que Bogdanovich possa ser considerado, hoje, um herói, é coisa que me ultrapassa. E as razões parecem-me, no mínimo, asininas e ridículas. Também é verdade que, nos tempos que correm, jornalista é coisa comum e pouco significante, na maior parte dos casos. Que a leveza os não faça voar muito!...

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Uma fotografia, de vez em quando (45)


Não será um artista inovador, mas o fotógrafo inglês David Bailey (1938) deixou-nos uma impressionante galeria de retratos dos ícones da movida londrina dos anos 60. O seu segundo casamento foi com a actriz francesa Catherine Deneuve, a quem tirou excelentes fotografias. E dizem  que Antonioni se inspirou nele para a criação do fotógrafo, figura principal do filme Blowup, em 1966, que veio a ser interpretado por David Hemmings.

Alan Hovhaness (1911-2000)


Mais um poema de F. Echevarría


O mar, ameno, aquietou-se.
A tarde, lenta, retinha
o azul, as nuvens. A noite
estava à espera que o dia
se despedisse dos montes
e os montes da despedida.
Que claridade. Só se ouve
parar o mundo. A retina
pára também. Como o longe.
Até que o vagar decida
descer a encosta da noite,
enquanto persiste o dia.

Fernando Echevarría, in Categorias e outras paisagens (pg. 242).

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Curiosidades 31


A minha ideia de um Bertolt Brecht (1898-1956) folgazão, seguro de si, bom garfo, comunista convicto, alterou-se significativamente com a leitura de uma recensão crítica de Michael Hofmann (TLS nº 5811) à obra Bertolt Brecht - A literary life, de Stephen Parker. O dramaturgo alemão tinha, às vezes, ataques de pânico, faltas frequentes de apetite, conversas incoerentes, bem como movimentos descontrolados, provavelmente, por sofrer do síndrome de Sydenham (ou dança-de-são-vito). E, embora fosse adepto do marxismo, desde 1926, a sua forma prática na ex-R. D. A., merecia-lhe as maiores reservas. Daí ter mantido, até à sua morte, cidadania austríaca, dinheiro na Suiça, casa na Dinamarca, editor em Frankfurt e médico em Munique...
Surpreendeu-me também a sua fobia de ser enterrado vivo. Deixou escrito que queria ser sepultado em caixão à prova de vermes: de aço, e não de zinco. E que um médico desse um corte profundo na sua artéria femural, quando o tivessem considerado morto, para uma certificação absoluta. Esta última parte não me surpreendeu tanto, porque sabia de alguém, meu conhecido, que, nos anos 50 do século passado, também quis que lhe dessem um corte na carótida, aquando da sua morte, para certificação segura do estado do seu corpo, antes de ser enterrado.

Nota: o retrato de Brecht, que encima este poste, é de Rudolf Schlichter (1890-1955) e foi pintado em 1926. Acho-o magnífico.

A par e passo 103


É necessário fazer ver que a linguagem contém recursos emotivos misturados com as suas propriedades práticas e directamente significativas. O dever, o trabalho, a função do poeta é pôr em evidência e em acção estas capacidades de movimento e de encantamento, estes excitantes da vida afectiva e da sensibilidade intelectual, que são confundidos na linguagem de todos os dias com os signos e os meios de comunicação da vida quotidiana e superficial. O poeta consagra-se e consome-se, por isso, a definir e a construir uma linguagem na linguagem; o seu trabalho, que é longo, difícil, delicado, que exige qualidades muito diversas do espírito e que jamais está terminado, como também nunca será totalmente possível, tende a constituir o discurso de um ser mais puro, mais poderoso e mais profundo nos seus pensamentos, mais intenso na sua vida, mais elegante e mais feliz na sua palavra do que em qualquer outra pessoa real.

Paul Valéry, in Variété II (pg. 170).

Pascal Comelade : "L'Italiano"


domingo, 24 de agosto de 2014

Idiotismos 27


Numa altura de internacionalismos, ou de veneração atenta e obrigada a americanismos serôdios, tenho por vezes a tentação modesta, mas irresistível, de aportuguesar, mesmo que por ironia provocatória, alguns modismos parolos usados por muitos CEO lusos, num dialecto provinciano novo-rico e grotesco, mas também por muita da classe, dita intelectual, e que se julga vivida e modernaça, do nosso pequeno burgo pequenino e europeu. Que lhes faça bom proveito!
Daí a minha cunhagem inocente e ingénua, que fiz de feicebuque (Facebook, para quem não perceba) e, ainda mais forçada, de linquedim (Linkdin, para os que não entendam), e que passei a usar no Arpose.
Ora, ocorreu-me, há pouco uma terrível dúvida metafísica, que vou passar a explicar. Há cerca de 2 horas, um visitante brasileiro (e como eles são criativos e originais, na renovação do português!...), na sua pesquisa, no espaço do Arpose, referiu, proficientemente, como search words (até eu!...): feise bucke - um pouco híbridas, é certo.
Perplexo, fiquei sem saber se as hei-de considerar e utilizar, no futuro, em vez da minha pobre invenção...

Retro (54)


A arquitectura, movimento e imponência da criação do transporte aéreo do conde alemão Ferdinand von Zeppelin (1838-1917) sempre fascinaram os seres humanos, como se pode ver pelo vídeo que dá alguns apontamentos sobre a viagem de volta ao mundo, efectuada em 1929. A sua chegada a Nova Iorque foi saudada entusiasticamente por muitos norte-americanos. A sua periculosidade, no entanto, e vários desastres ocorridos, levaram a que o projecto de construir Zeppelins fosse abandonado, definitivamente.
Mas, como se pode ver por este selo alemão, emitido em 1991, os Zeppelins continuam a ser um motivo recorrente e popular. Que, aquando do seu uso, os chamados Dirigíveis, foram objecto de muitos selos, e em vários países (Alemanha, Brasil, Espanha, Rússia...), sendo hoje, ainda, uma temática filatélica com grandes adeptos.


Ficções


Se no TLS se anuncia que uma das temáticas mais frequentadas por romancistas, na actualidade, é a auto-ficção, o "Obs.", por sua vez, informa sobre uma "rentrée historique", com uma abada de biografias romanceadas. Que vão  de umas memórias imaginadas, aos 93 anos, de Carla Bruni ("La veillesse de Carla B."), escritas por Patrick Besson, até ao Trotski mexicano dos anos 30 ("Trotski, Lowry & Cie."), de Patrick Deville, passando pela revisitação desportiva de Zidane - "Chant furieux", de Philippe Bordas, a ser  publicado pela Gallimard.
E tudo isto me fez lembrar que, aqui há uns anos, e por motivos que não vem ao caso, pude constatar, por comparação cronológica, a prática possibilidade temporal de Eça se ter podido cruzar com Cavafy, nas ruas de Alexandria. Quando por lá passou (1869), para assistir à inauguração do Canal do Suez. Viagem que talvez lhe tivesse proporcionado matéria e inspiração para a escrita de "A Relíquia" (1887).
Por isso, se poderá concluir que, para a ficção, haverá sempre motivos. Desde que a imaginação discorra, fluindo, e o romance não se torne obsoleto, por falta de leitores...

Felix Mendelssohn (1809-1847)


sábado, 23 de agosto de 2014

Retratos 13


Contentam-se com pouco, embora não dispensem roupa de marca e a última tecnologia. Lêem à pressa, normalmente muito mal e com extrema dificuldade e tédio. Ficam pasmados e de boca aberta, diante de uma imagem mais insólita ou espectacular (para eles...), que registam logo para sua memória (?) futura.
Correm apressados, não sabendo muito bem para onde. São obesos, se não de corpo, pelo menos de espírito. Passam a vida sentados e são devotos, inconscientemente, da fast food. Não fazem comentários nos blogues, porque mal sabem escrever, embora grunham, no feicebuque e nos linquedins, sílabas rasteiras, que os outros semelhantes vão entendendo, à superfície do nada. Não pensam muito, porque isso os cansa, excessivamente. As mães, hipocondríacas, sempre que podem, delapidam o orçamento em revistas róseas e raspadinhas. Mas eles, nem dão por isso. O seu mundo é o seu quarto. E babam-se por imagens escatológicas, que reproduzem até à exaustão (talvez porque achem moderno e de bom tom). Reúnem-se, às vezes, aos magotes, para se conhecerem, em centros comerciais, sem motivo nenhum, para conversa sem jeito, como animais selvagens, em volta de um pequeno charco ou grande lago, pela sede grande de alguma coisa distante e longínqua, de que desconhecem os contornos. Têm uma religiosidade difusa entre Fátima, superstição obscurantista rural e crendice tonitroante de seita americana. Sendo hordas silvestres, podem provocar desacatos inocentes, sem motivo justo. Perdoemos-lhes, porque não sabem o que fazem.
Quem é, quem são?

Quotidiano, mau feitio e arrependimento


19 de Dezembro de 1969

Esta manhã, fui para além de tudo o que se possa imaginar, contra o "meu" canalizador, que cá veio a casa, com um atraso de dois meses, acabar um trabalho que deixara incompleto aquando da instalação de um radiador a gás.
(Tenho tanta vergonha do meu comportamento que não tive outra ideia, senão pedir desculpas a este canalizador insolente.)
Está feito, telefonei ao canalizador.

A coisa mais grave é perder o controlo de si mesmo.
Houve um tempo em que eu gostava imenso de insultar as pessoas. Ainda o faço algumas vezes, malgré moi, e sempre com um vivo remorso depois.

Jovem, eu tinha a volúpia de criar inimigos - agora não sei o que hei-de fazer daqueles que eu carrego penosamente atrás de mim.

E. M. Cioran (1911-1995), in Cahiers - 1957/1972 (pgs. 774/5).

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Mais uma crónica exemplar


Na ípsilon, do jornal Público de hoje, António Guerreiro assina mais uma interessantíssima crónica de que vamos dar uma pequeno excerto, mas que não dispensará, aos que se interessam, a sua leitura integral. Segue:
"...Desapareceu o espírito popular, mas os vários canais portugueses de televisão insistem, quase sem excepção, em construir um povo que não existe, mas cujo simulacro - pensam eles, os "produtores de conteúdos" televisivos - é telegénico que se farta e tem aquela qualidade tão apreciada pelos construtores de mentiras: o "efeito de real". Trata-se daqueles programas, reportagens e concursos frequentados por pessoas que são submetidas à deformação pelos próprios apresentadores, repórteres e entertainers para satisfazer os ditames televisivos do expressionismo grotesco. O povo construido pela televisão é degenerado, ridículo, monstruoso. E os seus criminosos construtores têm nomes publicamente conhecidos e sucesso alargado: são as Júlias, as Luísas, os Joões, os Manueis e os seus directores de programas, produtores, chefes, empresários, até ao topo da hierarquia. Há o "povo" que vem aos estúdios dos programas de televisão (quase sempre um "povo" suburbano que já conhece bem os códigos da televisão e sabe imitá-los); e há o povo que a televisão visita no seu habitat natural, geralmente os recantos profundos do país onde se vai em busca de arquétipos. Um e outro são descaradas mentiras, falsas construções que deformam até à degradação. ..."

Revivalismo Ligeiro XCVII


Filatelia XCIV


Oriundas, muitas vezes, de arquivos comerciais de empresas já desaparecidas, estas cartas têm, normalmente, muita procura, por parte de filatelistas que se dedicam à temática  da marcofilia. O seu interesse aumenta consoante o percurso da missiva e os carimbos que ostenta, bem como a forma como foram franqueadas.
Na imagem, podem ver-se uma carta do voo inaugural Lisboa /Bolama (Guiné-Bissau), da Pan American Airways, outra da Linha Aérea Imperial, no seu primeiro voo Angola (Luanda)/Lisboa, efectuado a 14/1/47, e finalmente o envelope de uma firma portuguesa do Porto, para Birmingham, endereçada à Austin Motor Company, por correio aéreo.
Não tendo a raridade das cartas pré-filatélicas, não deixam de ser interessantes, também por serem todas de Correio Aéreo.

A eficácia artesanal e pobrete da NSA, norte-americana


Depois de meses, em que deixou em paz o pobre do Arpose, a execrável e soez NSA (National Security Agency) voltou a centrar a sua atenção paranóica no nosso Blogue. Pouco me preocupa o facto, embora me irrite um pouco esta parva vigilância norte-americana indigente e muito pouco eficiente. Se não anteciparam o 11/9, nem conseguiram descobrir o perdido avião das Malaysia Airlines (ver imagem) está tudo dito sobre a sua utilidade prática...
Mas, para que conste, aqui ficam as suas 7 entradas, já hoje, no Blogue, sob as seguintes coordenadas:

Simi Valley - California . IP Adress 199. 30. 20
IP Adress 173. 252. 10
IP Adress 173. 252. 103  (por 3 vezes)
Colorado Springs (via adelphia. net) 69. 171. 248 (por 2 vezes).

P. S. : este poste bem poderia ser incluído na nossa rubrica dos Comic Relief...

Aditamento : e ainda (talvez para registar este poste), mais tarde (14h27) com a nova coordenada:

Colorado Springs (via adelphia. net) 69. 171. 235.

Citações CXCIII


O paradoxo é o meio mais fulminante e mais eficaz de transmitir a verdade aos adormecidos e aos distraídos.

Miguel Unamuno (1864-1936)

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Da Janela do Aposento 48: Efemérides



O dia começou bem para as efemérides muito especiais, familiares, com o tio Otto a celebrar, como único sobrevivente dos Wagner, os 100 anos. Utilizou uma palavra para se referir à proeza de alcançar a meta, que já não ouvira há muito tempo, e que é de difícil tradução para português. Voltou a insistir que, a partir de agora, voltaria a contar o percurso da sua vida a partir do ano 1.

Destacando-se, desde sempre, dos restantes irmãos pela boa disposição e pelo enorme gosto pela vida, houve quem o recompensasse por períodos de grandes sacrifícios durante a guerra. Teve honras de uma visita do burgomestre que comentou, com o seu humor, dizendo que o estavam a “embonecar” para o evento.

Para além de artífice memorável na construção de móveis, era um fotógrafo excepcional, enriquecendo o espólio familiar e, sobretudo, o meu álbum de fotografias desde a infância até aos meus quinze anos. Tenho pena das películas, da AGFA, que se perderam quando abandonou a sua câmara escura instalada na cave da sua casa.

Lembrei-me, pois, das fotos que me deixou da infância, do teatro de bonifrates que montava em casa a contar histórias, numa casa pequena, cheia de alegria.

Por coincidência, o dia de hoje é também o início do ano lectivo, em Colónia e no respectivo estado. Veio-me à memória o primeiro dia de escola, com a fotografia a preceito que, no entanto, não foi o tio Otto que ma tirou. As recordações fixaram-se na fotografia reproduzida acima e ficou a interrogação sobre o percurso da civilização – europeia – nos últimos 60 anos.

Confesso que tenho alguma dificuldade em aceitar a menorização e infantilização do ser humano, empreendidas pelas poderosas forças do consumo, a ponto de o Governo de Portugal emitir uma brochura sobre o “Regresso às aulas” com conselhos indigentes.


Ora, como se pode ver pela foto, apresentei-me, no primeiro dia de aulas, “compostinha”, sem haver necessidade, da parte do governo de então, em explicar à minha mãe o que me havia de vestir, ou de comprar para levar para a Escola.

A lição de chegar aos 100 anos, “são e salvo”, não passa, certamente, por essa indigência do consumo tolo e do supérfluo em detrimento da essência. Para já, nem sequer me rebaixo a comentar a imagem que o folheto oficial transmite dos professores. Deixo a imagem apenas como registo de revolta.



 Post de HMJ

Joseph Haydn / Mstislav Rostropovich / Seigi Ozawa

Adagiário CLXXXVII ( ou esconjuro? )


"Chapéus de sol, relógios, moinhos de vento, bens de ribeira, terras de ladeira, mulher chocalheira, venha o diabo e escolha e pegue as que queira."

De "O Livro dos Provérbios Portugueses" (Presença, 1999), recolhida de José R. Marques da Costa.

Regionalismos transmontanos (50)


1. Lavadura - restos de comida. Comida para porcos.
2. Lebracho - lebrão novo, lebroto.
3. Leino - engraçado, catita, bonito.
4. Lela - diz-se da rapariga adoidada, leviana, alvoroçada.
5. Leorna - conversa fiada, lábia, treta.
6. Levadiço - leviano, de cabeça no ar.

Para a explicação da obra


"Encontrei o essencial da minha pintura através do passeio e da procura; é isso que dá à minha obra este ar de divagação que me podem criticar, mas eu sempre preferi o estudo e a análise ao estabelecimento e à exploração de uma fórmula. (...) A história em si não conta, o que importa é a forma de a contar."

Raoul Dufy

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Pinacoteca Pessoal 83 : Raoul Dufy (2)


Acabado, hoje, o livro sobre Dufy (1877-1953), que é um estudo bem interessante, de Jacques Lassaigne, sobre a obra e figura do Pintor francês, havia que deixar um sinal. Escolhi uma das pinturas que mais me agradou e que pertence à última fase dos trabalhos de Dufy. Não é a única tela dedicada à Música, arte que o Pintor muito prezava, não viesse ele próprio de uma família que a praticava, com fervor. Mas esta "Homenagem a Mozart" é a maravilha com que me despeço esta noite.

Lembrete 21


Memorando para disciplinar as leituras:

Manhã - "Guerra e Paz" (Inquérito, 1957), de Leão Tolstoi.
Tarde - "Dufy" (Skira, 1954), de Jacques Lassaigne.
Fim da tarde e noite - "Categorias e outras paisagens" (Afrontamento, 2013), de Fernando Echevarría.

Tarantela Napolitana


terça-feira, 19 de agosto de 2014

A par e passo 102


Como poderemos libertar-nos desta contrariedade de dois instintos capitais da inteligência? - Um que nos excita a solicitar, a forçar, a seduzir os espíritos ao acaso. O outro que, avaramente, nos convoca para a solidão e para um isolamento irredutível. Um que nos pressiona a parecer e o outro que nos incita a ser, e a confinar-nos no ser.

Paul Valéry, in Variété II (pgs. 94/5).

Comic Relief (93)


(Informação colhida em O Inimigo Público, do jornal Público de 15/8/2014.)

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Divagações 71 (com as aves e os 4 pontos cardeais)


Constato, através do sitemeter, que um cibernauta, muito provavelmente do Norte, gastou, perdulariamente, 54 segundos do seu precioso tempo, no poste "Bach / Landowska / Menuhin" (15/8/2014), que dura 6 minutos e 7 segundos. E lembrei-me de Eugénio de Andrade e dos seus versos: "Boa noite. Eu vou com as aves!"
Verifico, pelo perímetro que alcança o meu olhar, que não há mais do que 6 andorinhas em redor. E não terá havido muitas mais este Verão. Que as mais ousadas, ou exigentes, já terão emigrado para Sul.
Os meus braços acusam, pelas 20h45, a aragem fria deste mês de Agosto, na varanda a Leste. Não apetece ficar. Mas, pelas notícias da Alemanha, todo este mês tem chovido na Renânia-Vestefália. Por isso, não há muito que reclamar, seguidores que somos, e bons alunos, da batuta germânica.
São quase horas das gaivotas altas, vindas do lado Este, rumarem ao Atlântico, no azul já pálido do céu. Mas hoje não vi nenhuma: devem, também, ter emigrado, todas, para as Berlengas, que já acolhem 30.000 casais! Vi, entretanto, dois estorninhos outrabandistas meio-despistados, e o que julgo ter sido um peneireiro, que seguiu para Oeste. Só as castas e tímidas rolas se vão entretendo por aqui, apesar do frio. E da noite, que começou a cair.

Achar o fio à meada...


"Logo que se ouviram os sons alegres de «Danielo Cooper», tão parecidos com a dança russa do trepak..."
" - Sim, isto é que é «Danielo Cooper" - replicou Maria Dmitrievna..."
Estas palavras podemos encontrá-las, respectivamente, nas páginas 87 e 88 do romance "Guerra e Paz" (Inquérito, 1957), de Leão Tolstoi (1828-1910), na versão portuguesa de José Marinho. A busca a que procedi sobre esta dança, não me trouxe dados muito sólidos, e até o próprio nome aparece sob múltiplas siglas: Danilo Kupor, Daniel Cooper, Danila Cooper, para além da que foi escolhida pelo tradutor português.
Ao que parece, teria sido uma dança muito popular entre a aristocracia russa, no período das guerras napoleónicas (1803-1815), daí ser referida por Tolstoi. A música teria tido a sua origem numa antiga contradança inglesa, caracterizada por movimentos fáceis, mas rápidos, provindo o nome do compositor que a criou.
O vídeo é uma encenação moderna, russa, desta música e dança, mas dará para fazermos uma ideia de como seria executada, no tempo de "Guerra e Paz".

com envoi para MR.

Willy Hess (1906-1997)


Citações CXCII


O fraco duvida antes de tomar uma decisão. O forte, depois.

Karl Kraus (1874-1936), in Pro domo et mundo.

domingo, 17 de agosto de 2014

Personagens - a nitidez e a medida


Na ausência de feições visíveis ou de uma caracterização física e psicológica bem impressiva, num romance com grande número de personagens, o pobre do leitor (e muitas vezes isto me acontece) corre sempre o risco de se perder no labirinto, não conseguindo seguir, com precisão no fio narrativo, os nomes e as acções de cada um dos vários intervenientes, associadamente. Tudo, porque o autor não teve, talvez, nem a noção do equilíbrio, nem piedade para com o Outro - ser humano que o viesse a ler.
A maior parte das vezes, embora pareça ter o cuidado e a preocupação de nunca se exceder no número de figuras dos seus romances, Georges Simenon consegue que o leitor, son semblable, son frére, quase nunca se perca no enredo das suas obras. É essa - parece-me - uma das marcas de água por onde é mais simples reconhecer a qualidade e solidez de um bom ficcionista. Ou seja, não perder a noção real do mundo exterior que o rodeia.

Os azúis de Dufy


Ainda mais do que Matisse, Raoul Dufy (1877-1953) tem o condão de me convocar para o ar livre, ou lembrar férias à beira-mar. Até porque, nas telas deste Pintor, o azul tem, quase sempre, um lugar preponderante.

com agradecimentos renovados a H. N. .

Nota: perdoe-se, no texto de Lassaigne, do lado direito da imagem, uma citação inconsequente de clamorosa inexactidão, que passo a traduzir - "...René Jean observou que nas suas tapeçarias, o velho pintor português Nuño Gonçalvez, dava da mesma maneira as ondas banhando a costa africana."
Quem será este ignorante pseudo-erudito do René Jean?
Será que não haverá, por aqui, uma grande confusão com Jean Lurçat, que era francês?

Para todas as estações


Que não se diga, assertivamente, que cada livro requer uma estação do ano, própria, de leitura. Quando muito se poderá dizer que há obras que exigem a experiência da idade para serem fruídas na sua integralidade maior. Porque será leviano e pouco sério afirmar que ao inverno, as obras densas, e para o verão, coisas ligeiras. Em última instância, tudo dependerá da qualidade do leitor e da leitura.
"Há algo na leitura aturada desta obra, que fizemos à lareira neste inverno tão convidativo ao aconchego...", dizia Arnaldo Pinho, na Voz Portucalense, a 12/2/14, na recensão que fez ao livro "Categorias e outras paisagens", de Fernando Echevarría (1929), e de que, aqui no Arpose, reproduzi, há dias, um poema. Pois, diferentemente, é no verão que estou a ler, pouco a pouco, este conjunto de poemas de grande densidade. Que requerem uma atenção exclusiva.
E, de preferência, na varanda a leste, ao fim das tardes, para aproveitar a aragem que tempera o dia.
Devo dizer que uma e outra, a leitura e a brisa, se têm dado bem comigo. Nada destoa. Muito embora a paisagem dos poemas seja apenas ponto de partida para uma sintaxe ambiciosa e uma  grande riqueza de sugestões e pensamentos, que convoca. Sendo que, do concreto, nos leva até caminhos múltiplos e abstractos que podem, ou não, conduzir ao verão. Por entre pinhais e mar, algas ou terra, aves e peixes, luz ou neblina, pode surgir, de repente e assim, um verso:

"A neve é um país de santidade."

sábado, 16 de agosto de 2014

Os nossos bretões, em geminação tardia...


Recentemente, e em comentário a um poste de MR, no Blogue amigo Prosimetron, lamentava-me eu de não termos, em Portugal, um cantor mirandês, de renome, para contrapor aos vídeos, que ela ia colocando, com artistas da Bretanha, cantando em dialecto... Esquecia-me que, se não temos um cantor, temos uma banda mirandesa bem interessante - os Galandum Galundaina, que aqui se apresentam.

Uma dedicatória de Graciliano Ramos


Especialista que não sou de genealogias, penso que este Jaime Cortesão Casimiro, que teria falecido em Oeiras no início deste ano de 2014, e a quem o livro "Angústia" está dedicado, seria parente (Filho? Neto? Sobrinho?...) do médico, escritor e historiador português Jaime Cortesão (1884-1960), que esteve emigrado no Brasil, entre 1940 e 1953.
Mas o que, de mais interessante, me importava destacar era a bem-humorada frase (A Jaime Cortesão Casimiro/ envio esta longa maçada. - Rio - 1947) do escritor brasileiro Graciliano Ramos (1892-1953). Que aqui fica para que conste. O livro foi-me oferecido, há dias, por um bom e generoso Amigo. A obra é a 3ª edição do romance, que foi editado, pela primeira vez, em 1936.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Três Fernandos


Se por insistência mediática, e talvez por vontade alheia ao desígnio do Poeta, a obra de Herberto Helder é comprada e lida (?), poesia há que, sendo "difícil", julgo que terá restritos leitores. E mal se fala dela, também, por discretíssima. Estou a pensar na obra de Fernando Guimarães e na poesia de Fernando Echevarría, que, à falta de melhor definição, eu denominaria de intelectualizada. E que se materializam numa forma quase prosaica de abstracção pouco, ou nada, lírica.
Mas também me pergunto qual teria sido a recepção (autêntica) à obra de Fernando Pessoa, enquanto vivo. Entusiástica, não foi, com certeza.

Fernando Echevarría (1929)


Vem aí o verão. Porque está pronta
a espessura nostálgica das árvores.
Alarga o seu perímetro de sombra,
decorrente da firme potestade
dos troncos, que sustentam a alta fronda
e está a vir. Mas, por agora, baste
ver a verdura tutelar das copas
expandir a promessa. Erguê-la à grande
exactidão que o pensamento empolga
e a funda aí. E à perenidade
do mental estatuto que a prolonga
a espera do verão a vir nas árvores.
Entretanto o a vir abre a memória
como a ventura dessa nova idade.

Fernando Echevarría, in Categorias e outras paisagens (Afrontamento, 2013).

Herbertiana, sobre alguns poetas


"...Alguns poetas procuram atravessar as portas, e se a palavra que treme e faz tremer é um acto tremendo, uma passagem para a tenebrosa matéria de certas realidades, tenho ouvido pouco dessa palavra sísmica; estamos num tempo verbal manso. O arrepio que às vezes julgo percorrer uma voz, escuto melhor, não, não é daquela força com que se falam inocência e crime. Os poetas cumprimentam o dicionário, a gramática, a regra das formas, trazem luvas para trabalhar as massas sangrentas. E saem limpos como de cirurgia a raios laser. Não compreendo. ..."

Herberto Helder, in Telhados de Vidro, nº 4 (Averno, 2005).

Uma reflexão de Goethe, na velhice


O quê? Então cheguei eu aos 80 anos para pensar as mesmas coisas de sempre? Pelo contrário, eu esforço-me em pensar algo de diferente, algo de novo em cada dia, para evitar aborrecer-me.

J. W. Goethe (1749-1832).

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Revivalismo Ligeiro XCVI : Violeta Parra (1917-1967)


O regresso da "madalena" de Proust


Quando saí do restaurante à beira da estrada, seriam aí umas 13h50, lembrei-me de contar tudo isto mas, na altura e para melhor me situar, teria de citar a "Toada de Portalegre", de José Régio, pareceu-me pseudo-erudito demais, e desisti da ideia de o narrar, aqui no Arpose. Até que, ao entrar em casa, disse para comigo: tens toda a tarde, para pôr isto por escrito, ó Alberto! Não te chega?!

Das memórias sensoriais, talvez a das imagens e do olhar seja a mais fiel e longeva. Da táctil, alguma coisa nos fica, de áspero ou macio, ao menos, bem como da auditiva, embora se torne bem difícil trazer à recordação uma voz de alguém que já não ouvimos há muito, porque desaparecida. Mas eu diria que a memória dos cheiros e sabores é ainda mais caprichosa, por ser imaterial e evanescente.

Quando a travessa do entrecosto grelhado me chegou à mesa, estava eu a acabar de ler, no TLS, um artigo em que se falava do "mercantilismo", palavra que, criada no século XIX por um historiador, é das poucas que a linguagem corrente, os economistas e os políticos adoptaram; até porque estes dois profissionais raramente aproveitam as lições da História - e têm-se visto os resultados...

Pois do lado direito da travessa, que me trouxeram nesse restaurante à beira da estrada, brilhavam e distinguiam-se, amarelinhas de dourado e apetitosas, as batatas fritas do acompanhamento. Assim irresistíveis, peguei em duas delas com os dedos, antes de me servir, e levei-as à boca. Crocantes e muito bem fritas, o seu sabor fez-me recuar até ao longínquo Verão de 1963.

Nesse Agosto já distante, quase diariamente, quando eu desembarcava na estação de comboios de Bona, vindo de Witterschlick, creio que por volta das 17h30, ao sair, numa esquina e em direcção à Tillmannhaus, não deixava de comprar um pequeno pacotinho de batatas, fritas na altura e à vista de quem passava. Que traziam um minúsculo garfo de plástico e que custavam, julgo eu, meio marco alemão.

Essas batatas fritas, e as de hoje, pareceram-me gémeas, na memória do sabor. Inesperadamente, se replicaram no tempo, por um feliz acaso.

Uma fotografia, de vez em quando (44)


Não fora a dança a sua temática quase exclusiva e a fotógrafa norte-americana Barbara Morgan (1900-1992) seria, talvez, muito mais conhecida. A fixação fulgurante dos movimentos, que conseguiu captar nas fotos de bailado, passou também para a sua, menos conhecida, obra pictórica (desenhos, aguarelas...). Adaptou a "rhytmatic vitality" à força da vida e à obra, como ensinava o cânone chinês de pintura, que a influenciou, em tempos de juventude.
E quase se poderia considerá-la como fotógrafa "residente" da companhia de bailado de Martha Graham. Muito embora tenha também excelentes fotografias de Merce Cuningham e de outros bailarinos.

para MR, por várias razões.

Memória (91) : Lauren Bacall / Humphrey Bogart


Lauren Bacall faleceu ontem, a pouco mais de um mês de completar 90 anos. Foi, com Humphrey Bogart (1899-1957), um dos casais mais carismáticos do Cinema do século XX. Aqui ficam, num pequeno vídeo extraído de "To have and have not" (1944), de Howard Hawks, filme baseado no romance homónimo de Hemingway, e em que contracenaram juntos.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Regionalismos transmontanos (49)


1. Lampo - diz-se do figo que provém da primeira produção.
2. Landó - carruagem, carroça.
3. Lapar - comer com sofreguidão.
4. Laparoto - manhoso, astucioso. Rapaz gordo e tolo.
5. Larica - fome, apetite. Erva parasita do centeio.
6. Larpão - lambão, comilão.

Samuel Arnold (1740-1802) : Gavota


Citações CXCII


A pseudo-erudição, no seu lado bom, é a homenagem da ignorância à cultura.

E. M. Forster (1879-1970), in Aspects of the Novel.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Poetas vistos por poetas


Popa
à memória de Ted Hughes

"E como era ele," perguntei-lhe eu,
"O estar com Eliot?"
                     "Quando nos olhava"
Disse ele, "era como se nos encontrássemos parados no cais
Observando a proa do Queen Mary
Chegar até nós, muito lentamente."

                     Agora parece-me
Que estou parado no paredão do molhe a vê-lo
Ao mesmo tempo que ele me observa enquanto vai zarpando
E uma inacabada popa de madeira
Vai sendo trabalhada, mas trémula se afunda
Sem conseguir verdadeiro progresso.


Seamus Heaney, in District and Circle (Faber and Faber, 2006).

Bibliofilia 108 : Correia Garção (2)


Por razões que eu não saberei explicar, muitas obras poéticas do século XVIII português ficaram inéditas até à morte dos seus autores, embora miscelâneas manuscritas circulassem entre os seus admiradores, como foi o caso de algumas, diversas, versões do poema herói-cómico O Hyssope, de Cruz e Silva, que só veio a ser publicado em 1802, três anos após a morte do Poeta. E, por isso, postumamente.
O mesmo aconteceu com as poesias de Correia Garção (1724-1772), que o seu irmão fez editar, em 1778, na Regia Officina Typografica. Mas haveria que esperar mais cem anos, para que viesse à luz, em Roma, uma edição mais completa e inclusiva da obra do Árcade Coridon Erimanteu, de que já aqui falei em 10/4/2010 (Bibliofilia 13).
Esta primeira edição, de que se exibe a portada, não sendo livro raro, não aparece com frequência à venda. O meu exemplar, encadernado em carneira, encontra-se em bom estado de conservação e foi comprado, por volta de 1986, em Lisboa, tendo eu dado por ele Esc. 8.500$00 (cca. 42,50 euros). Na semana passada, num alfarrabista da rua do Alecrim, vi um exemplar semelhante exposto para venda, que custava 60 euros.