“Jeannot
era um artilheiro sem medo, que conhecia até ao mais pequeno detalhe tudo o que
se pode aprender das formas, das cores e dos ruídos. Quase iletrado; lia
penosamente e só aprendeu a escrever nos finais do ano catorze. Cabouqueiro de
profissão e orgulhoso como são quase sempre os cavalheiros da pá, que não vivem
propriamente para bajular; e ainda para mais respondão, não se esquecendo nunca
de reclamar os seus direitos. Todavia, nos momentos difíceis, silencioso, calmo
e pronto, adivinhando a ordem e enxotando o medo apenas pela sua presença. De
resto sabendo fazer de tudo na perfeição; tirava do buraco de um canhão cheio
de água lenços brancos como neve que dir-se-iam passados a ferro. Como impedido
venceu a escravatura militar em tempo de paz por força desse género de talento.
Mas, em tempo de guerra, Jeannot jogava um jogo mais nobre. Tive muitas vezes a
oportunidade de observar aquela fronte (…) arquitectural (…); o género de
fronte que não suporta o desprezo (…).
Perito
experiente do terreno, das baterias inimigas e do tiro, conhecendo as boas e as
más horas como os bons e os maus caminhos, Jeannot era o mais seguro companheiro
para as surtidas de infantaria que são a prova do artilheiro. Nessas missões o
homem de engenho está necessariamente submetido ao homem de decisão e de
expediente, sejam quais forem as respectivas patentes. O nosso Jeannot tinha
essa decisão e essa economia de movimentos que pareciam afastar o perigo e que
na realidade afastavam os perigos imaginários. Daí a amizade de um dia para o
outro e uma real igualdade entre o artilheiro de rústico falar e o chefe
timorato. Em consequência Jeannot recebia uma cruz, regava-se com água-de-colónia,
engraxava as botas e olhava o chefe com um orgulho desafiador (…).Mas (…), passado
o perigo, a glória não durava muito e Jeannot voltava aos trabalhos de rotina e
sentia novamente o peso da administração militar que esmaga os talentos,
sobrepõe obrigações a obrigações e acolhe duramente aqueles que reclamam. Nem
todos os dias há a oportunidade de ir buscar uma sopa atravessando mil perigos,
de resgatar um ferido de um qualquer abrigo bombardeado ou de apagar um fogo
junto ao paiol das munições. Após semanas de perseguições, de meditação e de
resmungo consigo mesmo, o artilheiro Jeannot (…) pedia a passagem para a
infantaria.
Era
colocar a vida em jogo, mas era também a oportunidade de ficar por cima, de ser
escutado; aquela cabeça orgulhosa não exigia menos.
Por
muito desprezado que seja o homem de tropa nesse regime de despotismo oriental,
esse homem pode sempre afrontar os seus superiores desde que seja capaz de
ultrapassar o medo; e é por essa via que aqueles de quem se diz serem fracas
cabeças acabam muitas vezes como heróis. Diz-se frequentemente que um chefe
deve o seu poder ao facto de nunca se mostrar inferior àquele em quem manda;
eu, por mim, anotei um outro efeito do poder despótico, que nunca tinha
previsto, o facto de o subordinado orgulhoso querer ser pelo menos superior
nalguma coisa e de quase sempre o conseguir (…).
Entretanto
ia observando Jeannot que continuava a travar as suas batalhas e alcançava a
vitória unicamente pela sua coragem. Mas onde estava o inimigo que era preciso
vencer? Muito próximo, era o seu comandante. Jeannot combatia pela liberdade
como diziam os jornais, mas não como eles a entendiam”.
Não é de Jeannot o olhar
que desde o retrato nos olha com a certeza do mal- estar do corpo, atolado na
água e na lama de uma trincheira da frente da guerra de catorze, e de que de
tudo o resto sobra a dúvida. Do homem, do olhar, do porquê do gesto e do quase desafio
do sorriso ficam hoje, como porventura ficaram ontem, as razões por saber,
mesmo que o próprio as dissesse de viva voz, pois é sempre grande o abismo que
separa aquilo que, de facto, um homem é e sente e aquilo que a sua
circunstância permite traduzir, e de que talvez só o corpo guarde concreta
memória.
Mas é a partir de pedaços da realidade como
este que os propos de Alain alcançam
a nitidez de um positivismo quase solar, de quem persegue o lado incómodo e
difícil de pensar, não o pensamento “subalterno” e “politécnico” mas o
pensamento encharcado nos fios esconsos da vida, em conflito aberto com as
suficiências do lugar-comum e que vai iluminando o proprium do Homem: a dignidade, o sofrimento e o saber de ofício,
distinguindo sempre a sujeição de quem obedece do acto livre de quem respeita.
Iniciada em 1906 no
jornal La Dépêche de Rouen et Normandie, a escrita dos propos nasce
e constitui-se, como refere o próprio Alain, (pseudónimo de Émile Chartier,
1858-1951), no espaço livre de duas páginas que são a sua medida, uma medida em
que o texto se desdobra e se afeiçoa como o dos poetas perante a medida de
estrofe. Por um lado, a obrigação diária de escrever, numa espécie de corrida a
galope que terminava dia a dia por mais um texto fechado (ritmo que perdurou
até à guerra de 1914, em que Alain participou como artilheiro), por outro a
regra jornalística que impunha ao escrito os constrangimentos próprios do verso
acabaram por ditar a forma fragmentária a que chamou propos, na qual, por
assim dizer, é o sentido do texto e não o seu pretexto, isto é, a pedagogia do
acto de pensar sobre as coisas e não a coisa pensada aquilo que verdadeiramente
se oferece ao leitor, no espaço contido de uma espécie de poema sumário em que,
sob o chapéu de uma metáfora ampla – algures a meio caminho entre a dispersão
egocêntrica de Montaigne e a síntese provocatória de Valéry – filosofia e
literatura se confundem.
Alinhadas como que
“seguindo o curso do tempo e os movimentos do pensamento”, as cerca de seis
centenas de textos que constituem esta edição dos Propos (La Pléiade, 1956), da responsabilidade de Maurice Savin,
com prefácio de André Maurois (e que cobre o período compreendido entre 1906 e
1936) assemelham-se hoje a uma escolha de posts
de persistente blog onde se
recortam a acção e o perfil do cidadão e professor Émile Chartier e do filósofo
Alain. E embora tratando-se de pouco mais de 10% da totalidade dos propos (que serão ao todo cerca de
5000), mesmo assim a escolha de M. Savin permite-nos desfrutar do essencial de
um pensamento em acto, de uma espécie de estaleiro da razão, de conversa
continuada, sempre transbordando da certeza para a dúvida, em estado de
deliberada imperfeição.
E é no decurso dessa
conversa com o leitor que os propos se
transformam no lugar onde se interrogam as aparências, se duvida das
evidências, se massacram os lugares-comuns e se reconduz a filosofia ao valor
primeiro de uma ética, em que Descartes e Pascal são, de algum modo, as
traves-mestras de um olhar perscrutador sobre os múltiplos recantos do corpo e
da vida, e em que os ecos de Montaigne e de Balzac se reconhecem, quer pela
forma como o pretexto se expande num exercício aditivo e continuado de pensar,
quer pelo modo como, à maneira de Balzac, o detalhe se vai revelando como
reflexo do todo e a palavra reencontra no “bom juízo (que) é a alma da moral”,
para lá dos fatalismos razoáveis, o homem livre, senhor do sentido e da ordem
das coisas e sempre capaz de dizer não, como mais tarde sublinhará Camus.
Pode, portanto,
dizer-se que é pelo radical sentido da liberdade e do exercício da razão que na
obra de Alain, nomeadamente nos seus propos,
se desenha e se revela o fio da sua modernidade. Considerados no seu
alinhamento cronológico, que são afinal os propos
senão fragmentos de uma indagação incessante sobre as múltiplas facetas da
realidade humana, sempre refractária, na sua aparência caótica, a toda a ideia
de sistema e em que ao luzir da certeza se segue a sombra da dúvida, que não é
outra coisa senão a responsabilidade de ser livre e de perguntar, como essa
dúvida fosse a forma irónica de libertar a realidade dos atavios do mistério e
do conforto das ideias feitas.
“Quando
uma criança grita e não quer ser consolada, a ama faz muitas vezes engenhosas
suposições acerca daquele jovem carácter e daquilo que lhe agrada e lhe
desagrada; chegando mesmo a convocar a hereditariedade em seu socorro,
reconhecendo até o pai naquele filho; esses ensaios de psicologia prolongam-se
até que a ama descobre no alfinete a causa real de tudo (…).
Os
males do ano de catorze vieram, conforme creio, do facto de os homens
importantes terem sido surpreendidos; e daí terem tido medo. Quando um homem
tem medo, a cólera não anda longe; a irritação segue-se à excitação. Não é uma
coisa agradável um homem ser bruscamente privado do seu ócio e do seu repouso;
muitas vezes modifica-se e modifica-se muito. Como um homem acordado de
repente; acorda demais. Mas não digais nunca que os homens são maus; não digais
nunca que eles têm um tal carácter. Procurai o alfinete.”
Embora contendo, como
todos os escritos, as marcas de um tempo extinto, que são os nódulos, quiçá
salutares, do próprio envelhecimento, reconhece-se nos propos o apelo de uma irreverência bem medida, sobretudo na maneira
como, colocando-se do lado oposto do panfleto, prossegue uma indagação sempre
próxima das coisas e longe da abstracção fácil dos sistemas, revelando no seu
lastro de realismo, sempre rente ao corpo e por vezes surpreendendo-se com o
formato da própria humanidade, a necessidade de obedecer, para que “a regra
(que) é a verdade do homem” subsista, mas que ao mesmo tempo celebra com
apurada ironia, o direito à resistência surda e ao irrespeito militante pela vã
glória de mandar.
Filosofia para não
filósofos, ou talvez não; para ler com o vagar e a tenacidade de um pescador de
águas profundas.
Post de H. N.
Nota: O Arpose acolhe honrosamente, e com satisfação amiga, mais uma leitura atenta de H. N. - que muito lhe agradecemos.