A imagem de Portugal que a Geração de 70 verberou foi também, e talvez sobretudo, o retrato amargo daquilo que essa Geração pensava que a nação não deveria ser mas era; um exame crítico porventura conceptualmente rigoroso mas que, bem vistas as coisas, decorria afinal de uma mitificacão simplista do passado, da qual esses jovens moços eram nem mais nem menos do que os verdadeiros autores e quase singulares intérpretes.
E é desse retrato de “decadência” e de “atraso cultural”, dessa meditação com “laivos de certo masoquismo” - que esses jovens foram emendando ao longo das suas não longas vidas- que parte Eduardo Lourenço na sua Pequena meditação europeia (conferência realizada em 23 de Janeiro de 2010, no âmbito dos eventos relacionados com a designação de Guimarães para Capital Europeia da Cultura em 2012) para conduzir os então assistentes e os agora leitores ao retrato que a carta de Pero Vaz de Caminha traça das terras e das gentes do que depois se chamaria o Brasil e que, como todos os grandes momentos da História e da escrita de História, traduz, pela sua capacidade de incorporação e de acomodação da diferença, talvez um dos melhores e mais autênticos retratos que os portugueses foram capazes de fazer de si próprios e da sua própria cultura, e que Eduardo Lourenço sublinha nestes termos: “ quando lemos a carta de Pero Vaz de Caminha ficamos muito admirados porque os portugueses não se espantaram com coisa nenhuma. Contrariamente àquilo que aconteceu com os conquistadores espanhóis, os portugueses nunca duvidaram que aqueles sujeitos – sobretudo as sujeitas – que eles encontraram fossem ser humanos, como eram seres humanos maravilhosos.”
Assim, o que claramente sobressai nesta Pequena meditação europeia é aquilo que poderemos considerar um sereno diálogo entre o presente e o passado, diálogo esse que não versa sobre o carácter nebuloso e messiânico do futuro mas sobre uma certa claridade do passado, porque em boa verdade só nos deverá interessar saber para onde vamos se soubermos bem de onde viemos: um pequeno povo e uma nação de desenvolvimento médio que, vistos da janela do presente (pois, como observou Benedetto Croce, toda a história é “história contemporânea”), se revelaram um esteio da cristandade que alargou sucessivamente os vínculos da Europa aos perímetros do mar; estradas que abrimos e foram nossas enquanto durou o segredo, a surpresa dos outros e o efeito da audácia de sermos os primeiros.
Não foi, pois, na sabedoria mas na perspicácia e na curiosidade aquilo em que fomos maiores, no saber de experiência feito, no saber que se apura e se deduz entre e a tentativa e o erro e se faz de pequenas adições, sucessivas emendas, tragédias quase anónimas e lampejos de génio.
Se fomos senhores dos mares, fomo-lo pelo lado fragmentário e inesperado dos saberes e não pelo lado sistemático do poder, que só muito transitoriamente detivemos, se privilegiámos a política de transporte e nela baseámos a nossa fugaz riqueza, essa maneira quase débil de seguir em frente, mas provavelmente inevitável para uma nação escassa de gente, revela-se-nos, hoje, no absoluto da sua fragilidade, porventura o mais duradouro e lúcido contributo dos portugueses para a cultura europeia e que Eduardo Lourenço refere deste modo: “uma cultura que esteve em contacto com a diferença e que conheceu a diferença e, por conseguinte, sem ser de maneira tão crítica como a de Montaigne ou de Montesquieu, ela aceitou que o Outro era a mesma coisa que o Mesmo. Nós não éramos melhores do que os outros, estávamos entre os outros, tínhamos uma espécie de universalidade sem conceito, mas estávamos no mundo, porque em última análise, a História não tem nenhum sujeito particular, tem a Humanidade inteira como sujeito, unicamente.”
Falamos também de saberes que se desprendem da vida e que vivem e convivem paredes-meias com o temor do pecado e o instinto da transgressão, entre a curiosidade e o medo, entre a utilidade e a fantasia, entre o excesso e a penúria; saberes feitos de aventura, de rasgos de inteligência emocional e de fogo juvenil que deixaram rasto e prol a toda a largura do mundo.
Por isso, ao contrário do excesso de rigor com que a Geração de 70 marcou a cultura portuguesa e sobretudo da fortuna que essa visão dolorosa, irónica e algo compadecida projectou nos tempos sombrios que se viveram depois, talvez a verdade possa ser, agora, a de que fizemos mais do que aquilo que deixámos de fazer: a racionalidade simples de um cristianismo ainda medieval e uno permitiu-nos, apesar de tudo, olhar o Outro a partir das suas humanas semelhanças, encarar o medo do desconhecido como uma manifestação do poder de Deus e, com uma audácia próxima da inocência acomodar o imprevisto entre a barbaridade e a fantasia, incorporando a incerteza no algoritmo da fé.
Simultaneamente grandes e mesquinhos, timoratos e temerários, revelámo-nos no óbvio (na “glória de mandar”, na “vã cobiça”), mas também para além dele: os mares que navegámos, as terras que achámos, as conquistas que fizemos, os relatos que deixámos e as cartas que traçámos, traduzem com eloquência o modo como protagonizámos a nossa radical condição de europeus: uma delicada mistura de tenacidade e de sonho, metáfora viva de um certo ofício de viver, em trânsito permanente entre o pecado da ignorância e o brilho da melhor ilustração.
Post de H.N.
Nota: O Arpose agradece mais esta preciosa colaboração de H. N.