quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Um Agosto português muito pouco ortodoxo


Este poderia ter sido um Agosto normal no centro da Europa. Mas não em Portugal: choveu no primeiro dia, já chuviscou hoje, 31, último dia do mês; e houve sempre vento frio, do Norte. Será que a troika sereníssima também pediu a S. Pedro para poupar na energia solar a gastar com o nosso País? Ou será que o Governo, que se prepara para vender as Águas de Portugal, também já hipotecou, ao estrangeiro, as nossas condições climatéricas?
Seja como for, o rifoneiro português teve razão, desta vez: "Primeiro de Agosto, primeiro de Inverno".

Meter o Rossio na Betesga


Como se sabe, a palavra betesga significa ruela estreita, viela. E esta expressão popular, que usei no título deste poste, quer dizer: meter algo grande num espaço pequeno demais.
Dito isto, julgo que, às vezes, chego a ter compaixão pelo Google. Para além de ter, frequentemente, o motor gripado, de o Alzheimer de que sofre ser progressivo, ainda para mais, muitas vezes, lhe pedem coisas "fantásticas", surreais ou barrocas, desmesuradas, irracionalmente. Ora vejamos dois casos sintomáticos que chegaram ao Arpose, via search words glutonas a quererem "meter o Rossio na Betesga":
1º caso - o distinto pesquisador escreveu e clicou para o motor do Google estas palavras: "escansão do quarto canto nunalvares pereira do livro mensagem de fernando pessoa". O Google baralhado e confundido titubeou, mecanicamente, 2 postes: "A ressaca de Pessoa" (12/6/10) e "O escanção aconselha" (27/6/10)...
2º caso - o minucioso investigador escreveu, como search words: "musicas a desgarradas dos açores do bairro das laranjeiras avô e neta % 2". E o Google, "ceguinho de choro (José Régio)", mandou-o para "Laranjeiras de Machado" (poste de 9/7/10) e também "Para um Avô que faz anos", de 26/7/2011.
Finalmente, fiquei banzado com uma das últimas search words que chegou ao Arpose. Nada menos que: "francisco sá de miranda papel de parede".
Mas que despautério!...

Pinacoteca Pessoal 17 : Mattias Grünewald


A passagem do aniversário da morte (31/8/1528) de Mattias Grünewald, é apenas um dos motivos  para recordar este pintor alemão de que já falei aqui (2/4/2010) a propósito daquela que considero a sua obra-prima: "A Crucificação de Jesus". Não são muitos os trabalhos que lhe sobreviveram, a maior parte trípticos para igrejas. E há quem considere Grünewald um pintor conservador, por ter sido pouco sensível ao Renascimento. Os seus temas são normalmente religiosos.
Na minha modesta opinião, parece-me que é um pintor da "família" de Bosch, ou de Soutine e Francis Bacon. O "feio" nunca o intimidou, em relação à sua pintura. Escolhi "A Tentação de Santo António" (Die Versuchung des heiligen Antonius") para ilustrar a afirmação, neste poste. E, também, porque tratando-se de um santo português, o motivo não nos é totalmente indiferente.

P.S.: por informação Amiga e segura, vim a saber que a figura representada no quadro não é a do Santo António lisbonense. E ainda que as tentações, simbolicamente sugeridas, têm como cenário o Egipto. O meu grato reconhecimento a quem me alertou.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Luís Gois : Toada beirã



Nota pessoal: perdoem-se as inúmeras incorrecções que surgem na letra do fado, que aparecem no vídeo.

Leituras Antigas XXXV : "Revista Ilustrada"


São do ano de 1956, estes dois primeiros (1 e 2) exemplares da "Revista Ilustrada", de banda desenhada brasileira. Creio que tive mais números, mas só estes dois resistiram à voragem do tempo. As capas, apelativas e coloridas, eram de Aylton Thomaz; o interior, a preto e branco, variava de desenhador: "O Mandarim" de Eça, foi desenhado por Vieytes e a banda desenhada, do exemplar da obra de Emilio Salgari, tem como autor C. Roume. A colecção era editada pela Editora Legislação Federal, que tinha Nelson Borges da Fonseca como director, e cuja sede se situava na Av. Franklin Roosevelt, 39, no Rio de Janeiro. Cada número custava, no Brasil, 7,00 cruzeiros e, em Portugal, a intermediária Latina Editora precificava-a a Esc. 5$00. A revista era de publicação mensal e trazia sempre o horóscopo do mês. Na contracapa da segunda revista anunciava-se que o próximo exemplar seria: "Os Três Mosqueteiros" de Alexandre Dumas.

Seis versos pelo frio de Agosto


De há pouco
o que ficou é muito breve
- na tarde há um nada que acontece.
E na madrugada as horas vão trocadas
de calendário e planície na memória.

Ou, talvez, de neve.

Sb., 29/8/11.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Uma louvável iniciativa (2)


Mais três "Expressões Populares" que me vieram à mão, através de embalagens de açúcar para adoçar o café. Dois dos pacotes vão em imagem, o terceiro, "Lágrimas de Crocodilo (choro fingido)", cuja explicação aqui vai, reza assim, na embalagem: "O crocodilo quando ingere um alimento, faz forte pressão no céu da boca, comprimindo as glândulas lacrimais. Assim, enquanto devora a vítima, ele chora um choro fingido."
O primeiro poste, sobre esta louvável iniciativa das "Expressões Populares", foi colocado, aqui no Arpose, em 26/4/2011.

Mais 2 fragmentos de René Char


5.
Não pertencemos a ninguém senão no ponto áureo desta lâmpada desconhecida de nós, que nos é inacessível mas mantém despertos em nós a coragem e o silêncio.

15.
As crianças aborrecem-se ao domingo. Passereau propõe uma semana de vinte e quatro dias para ultrapassar o domingo. Ou seja, a cada dia acrescentar uma hora de domingo, de preferência, a hora da refeição, porque assim já não haverá pão duro.
Mas que não se fale mais do domingo.

René Char (1907-1988), in "Feuillets d'Hypnos".

domingo, 28 de agosto de 2011

Divagações 12 ( em 2 andamentos, com nocturno)


Se eu conservasse a secretária arredada de livros e papéis, "talvez fosse feliz (F. Pessoa)". Faltariam talvez as concordâncias ou, porventura, o poema que procurei, incansavelmente, folheando os 4 livros, mas o verso estava longe - havia que criá-lo, com tempo e maré.
Repor os lugares não é tarefa fácil, porque os objectos se acomodam rapidamente a outras vizinhanças, num mimetismo dissimulado que não destoa na paisagem. Se a leste, ontem, o céu podia ser de Turner (rosa, laranja, cinzento e azul breve), dez minutos depois já se tinha transformado.
Recolocar os cinzeiros, na estratégia habitual, terá sido o mais fácil, do cenário, após o inventário, assim como ocupar o silêncio e fazer nascer o vento, através da casa. Abrir as janelas e varandas. O cavalo sai por entre as árvores, carregado de neblina, como se fosse branco ou de mármore. Move-se lento, mas definitivo em direcção à noite de Verão.
Hypnos, hippo.

sábado, 27 de agosto de 2011

Mercearias Finas 36 : relembrando o Branco de Pegões


Porque MR, no Prosimetron, referiu em comentário o Branco (2010) da Colheita seleccionada da Adega Cooperativa de Pegões, venho relembrá-lo como um dos vinhos de melhor qualidade/preço, no mercado. É criação do enólogo Jaime Quendera, em boa hora e trabalho. Oscila ligeiramente, em sabor e graduação alcoólica, de ano para ano, o que é natural. Provadas todas as colheitas, até à de 2010, continuo a considerar a de 2006, como a melhor, apesar dos seus 14º.
Este vinho branco acompanha, irrepreensivelmente bem, todos os pratos de peixe. Até um bacalhau assado. Um senão apenas e um aviso aos incautos: na Loja da Adega Cooperativa de Pegões, custa 4,00 euros; no P. D. (passe a publicidade) pode adquirir-se por apenas 2,99 euros. Não dá para acreditar... estas políticas comerciais portuguesas são uma espécie de tragicomédia. O vinho não tem culpa, e é bem bom.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Ex-voto às agências de ratos (rating agencies)


Desde a baixa de rating aos Estados Unidos, as agências têm estado caladas que nem ratos, mimeticamente copiando a sua condição. Por isso este ex-voto, que lhes é dedicado, com ternura e esperança de que fiquem na mesma.

Um ex-libris


O ex-libris é, muitas vezes, a súmula de um ideal ou um programa de vida feito, normalmente, já a meio dela.
Recordo o de Aquilino Ribeiro, com a imagem de um cavaleiro a galope e a frase: "Alcança quem não cansa". Ou o de uma pessoa (M. R. de S.) de boa memória, para mim, e já falecida. Foi advogado, depois de ser capitão da marinha mercante. O seu pequeno ex-libris tinha a imagem de um barco de velas desfraldadas e a palavra: "Vercalfir". Eram as letras iniciais, explicou-me ele, das palavras: Verdade, Calma, Firmeza.
Apercebi-me, há dias, com maior atenção, do ex-libris de Georges Simenon. Na imagem, tem uma árvore e um homem (Adão?), em primeiro plano, e atrás, ao fundo, do lado direito, um segundo homem. E uma frase: "Comprendre et ne pas juger". Esta frase poderia aplicar-se por inteiro à maneira de ser do Inspector Maigret, que procurava sempre perceber as razões do crime, mas raramente julgava, do ponto de vista moral, a atitude do criminoso. Deixava isso ao livre arbítrio do leitor.

Citações LXXV : Régis Debray


"... a religião não é o ópio do povo mas a vitamina do fraco."

Régis Debray (1940), em entrevista a Magazine Littéraire, nº 421 (Junho de 2003).

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Mais 4 greguerías de R. Gómez de la Serna


1. No almanaque das galinhas todos os dias se comemoram inúmeras mártires e pobrezinhos inocentes.
2. Nas igrejas devia haver umas chaminés para que saíssem as orações.
3. Se o mar está limpo é porque se lava com todas as esponjas que quiser.
4. Há umas beatas que rezam como os coelhos comem erva.

Ramón Gómez de la Serna, Greguerías 1920-1927.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Genealogias do post-25 : Álvaro III, o breve


O primeiro dos Álvaros foi o Cunhal: era um Senhor. O segundo Álvaro era Barreto, também tinha cabelo branco e marcava, pelo menos profissionalmente, a diferença em qualquer dos Ministérios onde entrasse.
O terceiro tem falta de cabelo e foi emigrante no Canadá, tendo regressado, recentemente às berças. Mas tem a vida armadilhada, bem como a sua área de actuação. O TGV, vai haver: é uma das contrapartidas aos chineses, pela compra do terminal de Sines - é o que dizem.
Mas pior, ao que parece, é que as estações do Metropolitano de Lisboa irão ter todas nomes de grandes empresas ou de multinacionais, em vez de nomes de localização geográfica. Assim, por exemplo, a Estação Baixa-Chiado passará a chamar-se: "PT-blue". É esperar, para ver.
Talvez por isso, hoje, o terceiro lanço das escadas rolantes, na subida, da referida estação, estava, de novo, parado e avariado...como aqui há uns meses.
Por isso e talvez, Álvaro III, o breve.

a ms, surrealmente grato.

De que é que precisa?


Não será o Professor Karamba, com os seus largos anos de experiência e sucesso, que, provavelmente, já passou a um patamar mais alto, e só atende, porventura, sob marcação muito antecipada - ocupado que estará em dialogar, para o Além, com Nostradamus, Bandarras e outras sumidades. Mas este Professor Mamadu, artífice de "todos os trabalhos ocultos" e com "Dom Herditário" (sic), promete. Nestes tempos de crise, nunca se sabe..., mais vale guardar o cartão.

Beiroas e populares


Ó rio, que vais correndo,
Que passas pela Barosa,
Rio, leva-me esta carta
Àquela religiosa...

Adeus, rio da Barosa
(A água já vai secando!)
Onde passa o meu amor,
Não sei a hora, nem quando...

S. Gonçalo de Amarante,
Feito de pau de amieiro,
Irmão das minhas tamancas,
Criado no meu lameiro.

Nota: citado por J. Leite de Vasconcellos, em "Memórias de Mondim da Beira".

Conselhos para Álvaro

Parece que um tal Álvaro tem a intenção de convidar "velhinhos endinheirados" para esta nossa "Suiça" à beira-mar plantada. Não me restam dúvidas de que a maioria do povo sabe receber bem, dentro do "seu castelo", casinha limpa, boa comida e simpatia. O caso muda de figura quando pensamos na falta de civismo no que respeita ao asseio do espaço público e, sobretudo, na existência de determinadas entidades públicas que se distinguem pelos enormes "calos na cabeça" e tornam o dia-a-dia num calvário, tanto para nacionais como forasteiros.

Eis um exemplo:

Uma empresa chamada Ascendi, uma tal PPP (parceria público-privada) como julgo, tem uma forma extremamente expedita e simples para o forasteiro proceder ao pagamento de portagens, nas vias sob responsabilidade de gestão da dita empresa. Não havendo, para os estrangeiros, a opção de pré- ou pós-pagamento, o condutor terá de adquirir, previamente e nas estações dos CTT, um DE (=dispositivo electrónico) temporário, o qual deverá devolver, no prazo de dois dias, no mesmo balcão onde o adquiriu (funcionário da Ascendi dixit !).
Sucede que a página electrónica da Ascendi não tem opção em Inglês, nem divulga o montante das tarifas a cobrar. Ora, como a maioria dos forasteiros, tanto novos como velhos, não compreendem esta faceta paradoxal do país, aqui vão uns conselhos para Álvaro:
- oferecer a qualquer cidadão estrangeiro um curso rápido de Português, oficioso e formal, para entenderem o funcionamento do nosso serviço público;
- declarar os Sábados e Domingos como dias de permanência obrigatória no país (dias de encerramento do serviço público dos CTT), uma vez que a Ascendi não deixa entrar, nem sair ninguém, nas "suas" auto-estradas, sem o dito DE.
Assim, os turistas ficam mais dois dias. Bem pensado, Álvaro !

Post de HMJ

Letras, 1965


Faculdade de Letras, 1965, Lisboa. Entre a crise académica de 1962 e, a mais grave, em 1968-69, decorre um período menos perturbado, muito embora os universitários não tenham desistido das suas razões, nem da sua luta pela independência associativa e académica face ao poder político. Era reitor da Clássica, na altura, Inocêncio Galvão Telles.
Este jornal Letras 65, da Comissão pró-associação, de carácter não-periódico, faz-se eco das reinvindicações estudantis. A colaboração é rica e diversificada. Alguns artigos são de nítido cariz político: "O significado do ataque às associações", por Medeiros Ferreira, "Uma reforma da Universidade", de Margarida Losa, ou "... e que  faz depois tanta gente?", de Eduarda Dionísio; "Letras 65" informa também que, no ano lectivo de 1962-63, entraram para a Faculdade de Letras de Lisboa 641 alunos, frequentaram-na 2.873, e concluiram os cursos: 59 alunos.
As contribuições literárias do Jornal são vastas. Em poesia, Fiama, Gastão Cruz, Almeida Faria, António Torrado, Herberto Helder e há, ainda, um poema inédito de Sophia sobre Lorca ("Túmulo de Lorca"). Do Jornal constam também depoimentos de Cardoso Pires, Abelaira, Sophia e Luis Francisco Rebello - autores premiados, por livros, no ano anterior de 1964. Registe-se também a colaboração de Alice Vassalo Pereira (Alice Vieira), Eduardo Prado Coelho e Lauro António; bem como respostas de Professores (Delfim Santos, Peral Ribeiro...) a um inquérito sobre o tema "Exames".
Optamos por reproduzir, em imagem, o texto literário de Herberto Helder, intitulado "Um pequeno lugar", inédito na altura, que não sei se terá tido, posteriormente, inclusão em livro.

para MR, cordialmente.

Fragmentos de umas férias descomprometidas (3) : com mitologia


Já as crianças loiras tinham partido, quando chegou o Engenheiro e o menino moreno tolhido dos membros, andar trôpego e fala arrastada. Vinham retomar posse da casa e a criança foi dizendo que ia para a garagem, uma espécie de gruta de Ali-Bábá, cheia de ferramentas e alfaias agrícolas. Com ele, assim de perna esquerda deficiente, Vulcano tomava forma infantil, na rectaguarda da casa alta frente ao mar. Cessara, inesperadamente, a chuva de Verão e bagas grossas polvorentas, parara o vento ciclónico e até o calor abafado desse Agosto estranho lusitano. Foi então o tempo de se acertarem as contas, e os últimos partirem. As crianças loiras já iriam longe.
Mas gostei de as ver, à despedida, subir para cima dos marcos da estrada e abrir os braços róseos, jovens e sem rugas, em saudação ao Atlântico, num Ah! uníssono. Pareciam novos nórdicos viquingues, a que não faltou sequer a mãe Valquíria, elegante. Já não respeitavam Odin, mas celebraram a Natureza  num clamor de alegria e vibração juvenil. Ao longe, no Oceano, apenas dois barquitos pequenos tinham ousado afrontar as ondas fortes e o vento traiçoeiro. Na casa alta, frente ao mar, ficaram apenas os sinais e despojos da permanência breve e das férias acabadas: sumos a meio, 3 ou 4 talhadas de melão, meio pacote de bolachas de chocolate...
O Luka, quase toda a manhã, afundado por entre as almofadas fofas do divã, deixava apenas ver um olhar triste, observando os adultos a fazer as malas. Ia acordando, lentamente, de um sonho que acabara.

Citações LXXIV : Nicolas Chamfort


"A sociedade é composta por duas grandes classes: a dos que têm mais refeições do que apetite, e a daqueles que têm mais apetite do que refeições."
Nicolas Chamfort (1740-1794).

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Pinacoteca Pessoal 16 : Picasso


Penso que este quadro de Pablo Picasso (1881-1973) será, talvez, uma das últimas pinturas ditas de "intervenção" da Europa Ocidental, no século XX. Excluí, conscientemente, as Américas e a Europa Oriental, desta afirmação anterior. O "Massacre da Coreia", de Picasso, não terá porventura a violência apocalíptica de "Guernica", que a precedeu, mas espelha bem a revolta e indignação do Pintor perante a Guerra e a opressão desmedida. É um quadro que as bem-pensâncias procuram esquecer e, muito raramente, referem. Mas melhor do que as minhas simplórias palavras, valerá mais a pena transcrever (TLS nº 5222, de 2/5/2003), traduzindo, aquilo que, sobre o quadro, David Hockney (1937) escreveu, sob o título " Problems of depiction". Segue:
"Em 18 de Janeiro de 1951, Picasso pintou um quadro intitulado "Massacre na Coreia". No dia seguinte voltou a pintar crianças. O catálogo razonado Zervos anota a obra como sendo relativamente isolada numa sequência de retratos de crianças - a inocência e o futuro.
A Guerra da Coreia tinha começado em Junho de 1950 e em  Dezembro daquele ano vieram a lume histórias nos jornais que davam conta de atrocidades na Coreia que incluíam relatos de disparos sobre mulheres e crianças.
O quadro de Picasso foi reproduzido nos jornais da época (eu lembro-me disso, tinha 14 anos e era aluno de uma escola de Bradford). O caso foi rotulado como uma acção de propaganda e o quadro foi muito desvalorizado, comparado com "Guernica", e o assunto, praticamente, não voltou a ser falado.
Anos mais tarde, ao ver uma exposição de Picasso no MOMA, eu fiquei impressionado com o quadro. Ele ficou comigo, e comecei a interpretá-lo de forma diferente.
Em 1950, as imagens da II Grande Guerra ainda estavam presentes; a recuperação do post-guerra ainda ia a meio, quando as notícias do novo conflito, longe de Paris, começaram a chegar - reportagens de jornalistas, mas sem imagens.
A pintura de Picasso era uma resposta
Evidentemente que as suas fontes são Goya e Manet, mas eu penso também que, mais importantes ainda foram as imagens largamente difundidas dos campos de morte nazis. E isto teve um largo impacto, na altura (foram mostradas em Bradford, num local da cidade onde tinha caído uma bomba, e eu vi-as quando tinha oito anos).
Do meu ponto de vista penso que é uma obra universal, embora Picasso tivesse dito que as fotos vieram depois do acontecimento, e na verdade, de algum modo, não testemunham inteiramente a terrível e brutal actividade desses campos de morte, mas apenas nos dão conta dos sobreviventes - muito poucos em relação aos mortos. Por isso, o seu assunto e motivo é a resposta de um Pintor às limitações da fotografia, limitações que ainda hoje se mantêm connosco, e talvez mereçam, ainda hoje, um debate." 

Discretamente

Foi um tempo em que tudo estava completo.
Mas, hoje, quando uma luz reacende o passado, em forma de relâmpago como a notícia, para logo se apagar, tudo regressa como se fora um súbito incêndio na memória. Folheamos as cinzas e já pouco encontramos. Estamos apenas a sós connosco nas imagens a sépia diluida. E o movimento cessou.
Morreu, com 99 anos, um homem bom. E foi o meu primeiro Amigo quem mo disse. As sensibilidades da infância, felizmente, nunca se perdem.

para a Zé, para o Quim e para o Zeca, afectuosamente.



Pequena história (2) : D. Jorge de Lencastre


Passou há poucos dias o aniversário do nascimento (12 de Agosto) de D. Jorge de Lencastre (1481-1550), filho bastardo de D. João II e de Ana de Mendonça. Dizem que era de baixa estatura, culto e de boas maneiras. Conta-se, também, que sendo ainda de pouca idade o pai quis casá-lo com uma filha dos reis de Castela, Fernando e Isabel, com vista a assegurar-lhe um futuro real. Para isso, mandou D. João II, secretamente a Castela, Lourenço da Cunha que foi levado à presença da Raínha Isabel. Exposto o assunto, a raínha, com manifesta cortesia e ironia, respondeu ao fidalgo português que não poderia casar a sua filha com um bastardo, embora real. E acrescentou que, como o seu marido (Fernando) também tinha uma filha natural, talvez pudessem tratar desse outro casamento. Incomodado, Lourenço da Cunha que tinha respostas rápidas, terá dito: "Senhora, El-Rei meu Senhor, não pretende tanto aparentar-se com El-Rei D. Fernando, mas com V. A., por isso se V. A. tiver outra filha bastarda, ele a tomará para seu filho."

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Ainda Vergílio Ferreira, sobre Maluda


Não sendo uma Pintora que me atraia, especialmente, praticou uma pintura que espelha uma alegria recatada e de luz e, nisso, estou com ela perante a Vida. Maluda (1934-1999) morreu cedo (e mal) e penso que não o teria merecido. Vergílio Ferreira fala dela, discretamente e com ternura, em "Escrever", sem lhe referir o nome - isso basta, como prova de respeito e estima. Diz ele, assim, na página 111:
" 170 . Está sentada numa cadeira de rodas. Tem as pernas cortadas pelos joelhos. E entretanto a morte vai-a trabalhando no que lhe resta ainda vivo. Havia uma operação a retalhar essa morte, mas os médicos hesitam no receio de lhe ajudar o trabalho. E enquanto o fim não vem, ela pinta. E ri com os amigos. E inventa festins para celebrar com eles a alegria que perdura. Breve talvez tudo acabará. Mas como o apóstolo, ela poderá perguntar ó morte, onde está a sua vitória? E a morte levá-la-á, enfim, mas acabrunhada de vergonha e de silêncio."

Filosofias



Pese embora ser polémico afirmá-lo, tenho para mim que a filosofia portuguesa é uma sub-espécie europeia, residual, para não dizer: inexistente. Romance de ideias também é coisa que mal existe, ou existiu entre nós. Tivemos, na verdade, alguns artistas que pensaram, literariamente: Sá de Miranda, Francisco Manuel de Melo, Herculano, Antero, Pessoa, Sena - mas fizeram-no, sobretudo, através da poesia que escreveram. Em prosa, pouco mais temos, decerto, além de Francisco Sanches, D. Duarte, Matias Aires, Leonardo Coimbra, Vergílio Ferreira e Eduardo Lourenço, no ensaio. Só com enorme benevolência acrescentaríamos Teixeira de Pascoaes e António Sérgio, cujas obras não me parece terem consistência e densidade filosófica suficiente.
Veio isto à colação por me ter posto a ler (ou reler?) a obra "Escrever", de Vergílio Ferreira (1916-1996) livro póstumo, saído em 2001. Dele deixo, aqui, algumas citações avulsas que me mereceram alguma atenção e sublinhado:
" 72. A cultura, como a religiosidade, tem os seus verdadeiros crentes e os seus devotos festeiros. Os crentes comungam nela o sagrado. Os devotos tocam-lhe charangas e deitam-lhe foguetes."
" 82. ...E o problema obscuro que se insere no caso e explica a generalizada fascinação (pelos dinossauros) é esta simples pergunta que se ignora e ninguém faz: que significa haver Deus no tempo dos dinossauros em que o homem não existia e se ele não viesse a existir? Mais nada."
" 107. Que vocábulos estão morrendo no nosso tempo? Porque em todas as idades foram morrendo alguns. Uns porque morreram os motivos deles e outros sem razão ou a só razão da sua decrepitude. ..."

terça-feira, 16 de agosto de 2011

A Pragmática dos provérbios e a hipocrisia do novo-riquismo


O vinho, embora bom, tinha excesso de sabor a madeira. Lembrava-me verniz, infelizmente...
O provérbio era de origem flamenga e veio-me à cabeça, por ideias associadas e travessas, porque também não o conheço em mais nenhuma língua. Reza, mais ou menos, assim: "O verniz gasta-se depressa."
Lembrei-me dos comunistas do 26 de Abril, recordo alguns aristocratas que não de sangue, vi alguns novos-ricos industriais dos anos 60 estenderem-se ao comprido, alguns cristãos-novos serem mais papistas que o Papa. Não me esqueço daqueles  abstémios convertidos frenéticos, agora na condenação, e que foram fumadores compulsivos - vade retro! Tão iguais a rameiras arrependidas que casaram e apregoam a Virtude.
Também sei de quem comprou títulos à Igreja e ao Mercado, roupagens medievais de Ordens secundárias, solares de província, arruinados, para habitar e "épater le bourgeois", cursos universitários em escolas de fim-de-semana. A insuficiência e a mediocridade procuram o excesso com avidez, frequentemente.
O tempo, muitas vezes, se encarrega de dizer que "o rei vai nu". A capa da Ordem de Cristo, ou da Ordem de Malta (ao que parece, agora atribuída a alguns empregados  bancários, maioritariamente), nem sempre dá com o conteúdo (muitas vezes mecânico), porque o verniz estala depressa, sobretudo, com o calor. Mais vale andar mal vestido, do que bem "adornado" - como dizia um catedrático de Geografia, em Coimbra, nos anos 60.
Por isso gosto deste provérbio flamengo, pragmático, que nos avisa, sincero: "O verniz gasta-se depressa."

com agradecimentos a Rosane de Smet. 

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Adagiário XLVIII


"Ata curto, pensa largo, ferra baixo e terás cavalo."

J. L. Borges via G. Greene


Será um crime de lesa-majestade, mas nunca fui grande apreciador de Jorge Luis Borges (1899-1986). A prosa tem algo de funâmbulo erudito, discretamente exibicionista, e a poesia dele sempre a achei excessivamente literal, rasteira e prosaica. São gostos...
Mas há duas pequenas situações, referidas por Graham Greene (1904-1991), que o conheceu pessoalmente, e que o escritor inglês integrou numa pequena palestra feita na Anglo American Society, em 1984, sobre o artista argentino, que merecem ser lembradas (são transcritas da versão brasileira, daí porventura a discrepância ortográfica). A primeira é uma espécie de programa de intenções que Borges entende como razão maior e motivo da sua obra: "Não escrevo para uma minoria seleta, que nada significa para mim, nem para aquela adulada entidade platônica conhecida como «As Massas». (...) Escrevo para mim e para os meus amigos, e escrevo para facilitar a passagem do tempo." O segundo episódio é mais doméstico. Segue: "...Certa vez, durante o segundo período de Perón, ele (J. L. Borges) vivia com a velha mãe, e receberam um telefonema misterioso. Uma voz de homem disse: «Vamos matar você e sua mãe.» A mãe de Borges respondeu: «Eu tenho noventa anos, portanto é melhor vocês se apressarem. Quanto ao meu filho, será fácil para vocês, pois ele é cego.»" e G. Greene termina dizendo: "Isso, creio eu, dá uma imagem do que era a sua família."  

domingo, 14 de agosto de 2011

Os Dinossauros


Ao primeiro dia de neblina o Sander e a Mira ainda se entreteram, naturalmente, a chapinhar pela piscina da casa e o Avô ficou-se a dormitar, em frente, sentado na cadeira de lona. A noite é que foi difícil, talvez pela intensa humidade. Doíam-lhe as articulações todas, sobretudo na zona dos joelhos. Estranhou a cama e dormiu mal, o avô, acordou imensas vezes e, nos sonhos, as gaivotas que vira na véspera pairavam como papagaios de papel sobre o mar, por entre a neblina, num silêncio sem pios.
No segundo dia, foi uma orvalhada intensa que deixava os cabelos húmidos e não despegou toda a manhã: sol, nem vê-lo. A humidade entrava na carne e parecia chegar aos ossos. Nem praia, nem piscina. Foi entretendo os netos como pôde e até lhes fez bonecos de plasticina: um orangotango a pedido, um elefante azul de tromba empertigada e dois dinossauros de aspecto terrífico. O sono dessa noite ainda foi pior: além das dores nas articulações, teve caimbras horrorosas que o deixaram dorido para todo o dia.
O terceiro dia amanheceu morrinhento sobre o mar e em terra. Vinha um cheiro a madeira húmida do brasido do grelhador do jardim: a pinho e faia, talvez. De aves, apenas fantasmáticas gaivotas rompiam por entre as nuvens baixas. As crianças estavam inquietas e começaram a peguilhar uma com a outra. Às 9 horas, já a Mira chorava copiosamente. Como estavam perto e, embora ao Avô lhe custasse guiar, por causa das articulações, resolveu levar os netos a ver as pegadas de dinossauros nas falésias. Gostaram muito.
E, no regresso, o Sander perguntou: "- Ó Avô, de que morreram os dinossauros?"
O velho respondeu, de imediato e sem pensar: "- De artrite reumatóide!"

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Cioran, Valéry e os aforismos


Em 28 de Dezembro de 1968, E. M. Cioran anotou (Cahiers- 1957-1972, pg. 659) o seguinte:
"Não se deveria, como fez Valéry, escrever «pensamentos» desde a madrugada mas esperar  pelo fim do dia, hora realmente propícia aos aforismos, estes pequenos inventários mais ou menos quotidianos."

Notas de Leitura III: "Pequena meditação europeia" - Eduardo Lourenço



A imagem de Portugal que a Geração de 70 verberou foi também, e talvez sobretudo, o retrato amargo daquilo que essa Geração pensava que a nação não deveria ser mas era; um exame crítico porventura conceptualmente rigoroso mas que, bem vistas as coisas, decorria afinal de uma mitificacão simplista do passado, da qual esses jovens moços eram nem mais nem menos do que os verdadeiros autores e quase singulares intérpretes.
E é desse retrato de “decadência” e de “atraso cultural”, dessa meditação com “laivos de certo masoquismo” - que esses jovens foram emendando ao longo das suas não longas vidas- que parte Eduardo Lourenço na sua Pequena meditação europeia (conferência realizada em 23 de Janeiro de 2010, no âmbito dos eventos relacionados com a designação de Guimarães para Capital Europeia da Cultura em 2012) para conduzir os então assistentes e os agora leitores ao retrato que a carta de Pero Vaz de Caminha traça das terras e das gentes do que depois se chamaria o Brasil e que, como todos os grandes momentos da História e da escrita de História, traduz, pela sua capacidade de incorporação e de acomodação da diferença, talvez um dos melhores e mais autênticos retratos que os portugueses foram capazes de fazer de si próprios e da sua própria cultura, e que Eduardo Lourenço sublinha nestes termos: “ quando lemos a carta de Pero Vaz de Caminha ficamos muito admirados porque os portugueses não se espantaram com coisa nenhuma. Contrariamente àquilo que aconteceu com os conquistadores espanhóis, os portugueses nunca duvidaram que aqueles sujeitos – sobretudo as sujeitas – que eles encontraram fossem ser humanos, como eram seres humanos maravilhosos.”



Assim, o que claramente sobressai nesta Pequena meditação europeia é aquilo que poderemos considerar um sereno diálogo entre o presente e o passado, diálogo esse que não versa sobre o carácter nebuloso e messiânico do futuro mas sobre uma certa claridade do passado, porque em boa verdade só nos deverá interessar saber para onde vamos se soubermos bem de onde viemos: um pequeno povo e uma nação de desenvolvimento médio que, vistos da janela do presente (pois, como observou Benedetto Croce, toda a história é “história contemporânea”), se revelaram um esteio da cristandade que alargou sucessivamente os vínculos da Europa aos perímetros do mar; estradas que abrimos e foram nossas enquanto durou o segredo, a surpresa dos outros e o efeito da audácia de sermos os primeiros.
Não foi, pois, na sabedoria mas na perspicácia e na curiosidade aquilo em que fomos maiores, no saber de experiência feito, no saber que se apura e se deduz entre e a tentativa e o erro e se faz de pequenas adições, sucessivas emendas, tragédias quase anónimas e lampejos de génio.
Se fomos senhores dos mares, fomo-lo pelo lado fragmentário e inesperado dos saberes e não pelo lado sistemático do poder, que só muito transitoriamente detivemos, se privilegiámos a política de transporte e nela baseámos a nossa fugaz riqueza, essa maneira quase débil de seguir em frente, mas provavelmente inevitável para uma nação escassa de gente, revela-se-nos, hoje, no absoluto da sua fragilidade, porventura o mais duradouro e lúcido contributo dos portugueses para a cultura europeia e que Eduardo Lourenço refere deste modo: “uma cultura que esteve em contacto com a diferença e que conheceu a diferença e, por conseguinte, sem ser de maneira tão crítica como a de Montaigne ou de Montesquieu, ela aceitou que o Outro era a mesma coisa que o Mesmo. Nós não éramos melhores do que os outros, estávamos entre os outros, tínhamos uma espécie de universalidade sem conceito, mas estávamos no mundo, porque em última análise, a História não tem nenhum sujeito particular, tem a Humanidade inteira como sujeito, unicamente.”
Falamos também de saberes que se desprendem da vida e que vivem e convivem paredes-meias com o temor do pecado e o instinto da transgressão, entre a curiosidade e o medo, entre a utilidade e a fantasia, entre o excesso e a penúria; saberes feitos de aventura, de rasgos de inteligência emocional e de fogo juvenil que deixaram rasto e prol a toda a largura do mundo.
Por isso, ao contrário do excesso de rigor com que a Geração de 70 marcou a cultura portuguesa e sobretudo da fortuna que essa visão dolorosa, irónica e algo compadecida projectou nos tempos sombrios que se viveram depois, talvez a verdade possa ser, agora, a de que fizemos mais do que aquilo que deixámos de fazer: a racionalidade simples de um cristianismo ainda medieval e uno permitiu-nos, apesar de tudo, olhar o Outro a partir das suas humanas semelhanças, encarar o medo do desconhecido como uma manifestação do poder de Deus e, com uma audácia próxima da inocência acomodar o imprevisto entre a barbaridade e a fantasia, incorporando a incerteza no algoritmo da fé.
Simultaneamente grandes e mesquinhos, timoratos e temerários, revelámo-nos no óbvio (na “glória de mandar”, na “vã cobiça”), mas também para além dele: os mares que navegámos, as terras que achámos, as conquistas que fizemos, os relatos que deixámos e as cartas que traçámos, traduzem com eloquência o modo como protagonizámos a nossa radical condição de europeus: uma delicada mistura de tenacidade e de sonho, metáfora viva de um certo ofício de viver, em trânsito permanente entre o pecado da ignorância e o brilho da melhor ilustração.

Post de H.N.
Nota: O Arpose agradece mais esta preciosa colaboração de H. N.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Pais irresponsáveis, políticas desajustadas e políticos medíocres


Acrescentar às causas, referidas no título, programas de ensino deficientes, falta de princípios e ganância. Há de tudo nestes saqueadores anárquicos: professores de ginásio, uma filha de um conhecido milionário, gangues de bairro, donas de casa, crianças de 11 e 12 anos. Um cidadão inglês (cinquentenário), cuja pálpebra direita trémula denunciava preocupação e nervosismo, apontava as causas dos excessos, por estas simples palavras: "Maus pais e excessiva indulgência para com as crianças!"
Entretanto, esta negra de meia idade (no vídeo) assume, frente à horda selvagem, a voz da Razão.
(O vídeo não é o original, porque o Youtube sugou-o...: teve de ser substituído por outro...)

Um poeta ignorado


Não fora Ricardo Jorge falar dele, e nunca teria dado por Manuel Duarte de Almeida (1844-1914), poeta duriense, dito parnasiano. Mas engracei com a quadra, citada por Ricardo Jorge. Por isso, aqui vai ela:

Se fores ao cemitério
No dia do meu enterro,
Dize à terra que não coma
As tranças do meu cabelo.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Português em destaque (5) : Moscatel de Setúbal


Mal amado ou esquecido, o Moscatel de Setúbal é pouco lembrado. E os que apreciam este generoso, optam muitas vezes pelo "muscat" duriense que Favaios costuma engarrafar em pequenas botelhas como se fora Martini ou Cinzano, para ser bebido como aperitivo. A região demarcada do Moscatel de Setúbal fez, há pouco, 100 anos, porque o decreto da sua criação foi despachado em 1907, autenticado por D. Manuel II e publicado em 1908. Mas o vinho já era apreciado, há muito, fora de portas, e Luis XIV não o dispensava nas suas festas de Versailles (José A. Salvador dixit).
Mas o que me apraz, hoje, destacar é que, muito recentemente (17 e 18 de Julho de 2011), numa prova internacional realizada em Paris, para apreciar "Muscat" de vários países, o Moscatel de Setúbal - Reserva de 2002 - da Casa Ermelinda Freitas foi considerado o Moscatel melhor do mundo e ganhou a medalha de ouro do concurso. É uma honra para a Adega de Fernando Pó que também orgulha Portugal ou, no mínimo, todos os enófilos portugueses. Evoé!

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Fábula muito rudimentar


O moínho das mentiras está na colina mais alta da paisagem. Por uma contradição dos ventos ou leve aragem, quase imperceptível, é que as velas se agitam. O moleiro mal dá por isso, mas acompanha. Insone, porém. A pesada mó tritura memórias e sonhos - como devia ser: num equilíbrio difícil. E há um gemer silente, um resmonear a que se junta: o léxico ou as cores. O afecto das palavras que se agregam para não ficarem sozinhas ou das cores que se misturam irmanadas.
No final há-de ser peneirada. A farinha descansa. Mais tarde virá água e fermento - doseados pela regra ou experiência. De novo a massa informe descansa. Avulta.
Depois o padeiro irá tendê-la sobre a mesa. Acrescentará leves polvilhos de farinha branca e seca. Vai ao forno. Sairão, mais tarde, padas pequenas ou pães grandes, acabados. Quero eu dizer: versos ou poemas. Pequenos quadros e telas grandes. Mas ficam sempre rapaduras pelo chão.
No final, o artífice nunca sabe ao certo se o pão ou o quadro, ou o poema será bom. Às vezes até se esquece de pôr sal. Há que prová-lo, mastigando com precaução. Sorvendo-lhe o sabor ancestral e interior. É assim que a memória do trigo passará para os outros. Entretanto, as velas do moínho estão paradas e a mó imovel sonha outras rotações. As velas sonham outras colinas. O padeiro vai à vida: para colher mais farinha.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Redundâncias, pela "silly season"


1. "O ser humano pode coexistir, pacificamente, com os peixes."
George W. Bush (pai).
2. "Não estamos em guerra com o Egipto. Estamos, sim, num conflito armado."
Anthony Eden, aquando da crise do Suez.
3. "Durante décadas, a gastronomia inglesa foi objecto de uma compaixão divertida, enquanto os Estados Unidos são vistos pela sua sinistra habilidade em impôr ao mundo a sua industrializada fast food."
Paul Freedman.
4. "Quase todos os apoiantes do Brasil usam camisolas amarelas - é um fabuloso caleidoscópio cromático."
John Motson.
5. "Não admira que as pessoas sejam horríveis, uma vez que começaram como crianças."
Kingsley Amis.

Nota: grande parte das citações foram recolhidas e traduzidas de "Chambers Dictionary of Quotations".


domingo, 7 de agosto de 2011

Astrologias (3) : O Leão (de Nemeia)


Espontâneo sem afectação, humano, mas também vaidoso. Há quem diga que são egocêntricos, embora generosos; gostam do luxo e, por vezes, da ostentação. Conquistadores por excelência (D. Afonso Henriques), quer a nível do poder político (Napoleão, Fidel de Castro), quer a nível dos afectos e sentidos (Bill Clinton, Jacqueline Kennedy), os nativos do signo do  Leão - referem alguns especialistas - distinguem-se, muitas vezes, (sobretudo as mulheres) pela farta cabeleira ou por gostarem de usar cabelos compridos e cuidadosamente penteados (Mae West). Terão falta de intuição psicológica, até para conhecerem os outros e suas reacções.
Têm forte apetência pelo poder (Mussolini, Marcelo Caetano), às vezes com final pouco feliz (será que Barack Obama irá ter sorte?), mas possuem, também, carisma e um grande e original sentido de humor (George Bernard Shaw, Alfred Hitchcock) e, neste signo, abundam os bons actores: Peter Sellers, Robert de Niro, Peter O'Toole, Dustin Hoffman e Sean Penn. Grande sentido do espectáculo: Cecil B. De Mille, Mick Jagger e Madonna. Não gostam de perder e, quando as coisas não correm de feição (Rasputine), tornam-se figuras um pouco sinistras - o que é raro. Sendo mais habitual o seu lado aristocrático de autoridade natural. Apreciam as artes, mas há poucos nativos do Leão a praticá-las: Walter Scott, Shelley, Melville, Warhol.
Pontos mais sensíveis, fisicamente: o coração e a espinha vertebral. 

sábado, 6 de agosto de 2011

O sexo dos anjos, em jeito de fábula


A 29 de Maio de 1453, Constantinopla caíu nas mãos do sultão Mehmet II, turco otomano.  Mas enquanto alguns soldados ainda defendiam a cidade, contra os bárbaros, um consistório religioso discutia, acalorada e metafisicamente, o sexo dos anjos - se eram do sexo masculino ou feminino. Foi o fim da Idade Média. E a dúvida sobre o sexo dos anjos é, inapelavelmente, uma questão bizantina.
Hoje, "quando tudo arde" (Sá de Miranda dixit), há também quem se entretenha, puerilmente, a discutir o sexo dos anjos..., porque não lhes falta pão para a boca e os horizontes das suas celas mentais são limitados, pequenos, e as suas janelas de pensamento nem sequer distinguem a realidade, cá fora.

Fragmentos de umas férias descomprometidas (2) : idos 80


Voltamos lá, ontem.
O perfil, a 3/4, não fora um pouco de volume a mais, poderia ser o do Engenheiro: o mesmo cabelo fino já rareando, o nariz, levemente arqueado, o tom de pele emaciado e claro, quando a luz batia nas feições. Mas o Engenheiro fora-se em Setembro/Outubro de 84 e nunca poderia ali estar, de novo, com os seus quarenta e poucos anos, sem a Cláudia e o Hugo.
Nessa altura, o Luís, de mangas arregaçadas, grelhava e suava, o Sr. Carlos atendia, solícito e rápido (havia quem lhe chamasse o "Speedy Gonzalez"); o Leonel, que vinha fazer um biscate, ao fim-de-semana, fingia actividade gesticulando muito, por entre as mesas. Enquanto a Dona Filomena, de avental e mãos atrás das costas, inspeccionava o serviço. A irmã solteira, Maria do Amparo, com as lentes garrafais de criança infeliz,  compunha os óculos grossos e ia atendendo os copinhos de três, no balcão ao lado. A cunhada Rosa, essa, era a trenga da família, e parecia ter vindo de outro mundo...não fora o avental.
O restaurante, meio ao ar livre, ficava numa esquina das 2 estradas que levavam à praia. Enchia ao fim-de-semana, porque o peixe era sempre fresquíssimo, no Verão, módicos os preços, e as uvas tintavam, sobre as nossas cabeças, na ramada verde que nos trazia sombra amena, quebrando o sol rigoroso. E havia, quase sempre, o par feliz que se sentava na mesa baixa do centro, habitualmente reservada, para eles, pelo Sr. Carlos ou pelo Luís, antes das enchentes. Vinham a pé e eu acompanhava-os, com o olhar, até chegarem.
Entre os empregados  do restaurante, recordo-me que lhes chamavam: "o casal". E julgo que eles teriam gostado muito, se o soubessem, deste substantivo comum que os irmanava de afecto. Nos idos de 80...

Ainda Cocteau: um breve prefácio


"Existem poemas em que o poeta tenta a sua sorte; outros onde o poeta a prolonga. Raros são os poemas de sorte. Eles correm da mão como o ectoplasma da boca de um medium. O poeta, adormecido de um olho, vai controlando a descida.
Assim nascem as mandrágoras: estátuas das profundezas. Reunir este tipo de poemas, por vezes rebarbativos, cortá-los, consolidá-los, obriga a uma tarefa ingrata; porque o público gosta de reconhecer, o conhecimento fatiga-o e raramente ele aprova o que o poema traz de novo."

Nota: este pequeno prefácio de Jean Cocteau, antecede uma escolha de poemas feita por Henri Parisot e Pierre Seghers, que integra o volume 4 da colecção "Poètes d'aujourd'hui", dedicada ao artista francês.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

J. R. Jimenez - 2 poemas traduzidos


4 (calor, fugas)

Há um eu que vai dormindo
- moscardo fixo da ideia! - ;
e há um que está vigiando
para que eu não adormeça.

Sombra

Toda a noite interna navegando
- os espaços negros dos meus sonhos;
horas grandes por dentro, veloz relógio externo
até chegar a esta praia rósea pela aurora.

Que livre mar tão infinito
e teu, limitada noite breve;
e que distância tão imensa
desta terra de ontem
a esta mesma de hoje!

Juan Ramón Jimenez (1881-1958), in Belleza.

Jean Cocteau sobre Poesia


"A poesia é uma língua à parte que os poetas podem falar sem receio de serem entendidos, uma vez que as pessoas têm por costume tomar esta língua como uma certa maneira de usar a sua."
Jean Cocteau (1889-1963).

A evitar, absolutamente (1) : "A louca da casa" de Rosa Montero


Há muito que não lia um livro tão atabalhoado. Na sua precipitação discursiva, inconsequente, parece ter sido escrito pela Vicky Pollard (da série cómica inglesa "Little Britain"). Mas não foi: escreveu-o Rosa Montero (Madrid, 1951), traduziu-o Helena Pitta, publicou-o Edições Asa; e tem por título "A louca da casa", pecaminosamente retirado de palavras de Santa Teresa de Jesus.
Desde a abordagem de nomes grandes da literatura (Rimbaud, Tolstoi, Verlaine...) num registo, tão leviano e pobre, que faria corar de vergonha as "Selecções do Reader's Digest", até à narração repetida, por 3 vezes, e em tom de farsa do affair com o actor americano M. (pg. 22, pg. 82 e pg. 149), mas de maneiras distintas, substantivas e absurdas, porém sempre no ano de 1974, passado numa alta torre de Madrid...o livro é, todo ele, um chorrilho inconsistente e pleno de vacuidade. Com um aparente ritmo vertiginoso, para disfarçar, imensas citações de nomes conhecidos,  assim se foram enchendo 171 páginas de palavras, sem sentido.
Originalmente editado, pela jornalista madrilena Rosa Montero, em 2003, foi traduzido em português, pela Asa, em 2004. E, ao que parece, terá sido um sucesso de vendas, porque já vai na 3ª edição (Abril de 2008), que foi a que li. Como se anda a ler mal, em Portugal!... Só posso concluir: livro a evitar, absolutamente, por um mínimo de sentido crítico e em nome da qualidade e sanidade literárias.

3 Máximas de Chamfort


36.
Desejamos  a preguiça ao mau e o silêncio do estúpido.
40.
Há disparates bem ataviados, como há parvos muito bem vestidos.
134.
É mais fácil legalizar certas coisas do que legitimá-las.

Nicolas Chamfort (1740-1794).

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Em nome da ética ... não escreva ao Presidente

O pacato cidadão resolveu escrever ao Presidente da República, solicitando esclarecimentos sobre a manutenção -excepcional - do "princípio dos direitos adquiridos" para os titulares de cargos políticos do governo regional da Madeira. O exponente invocava o artigo 13º(2) da Constituição da República Portuguesa para obter uma resposta, "em nome da ética e da igualdade dos cidadãos", face a uma escandalosa discrepância de tratamento entre portugueses.
A não-resposta chegou:

Pergunta final:
Não haverá, no meio de tantos Conselheiros de Estado, quem defenda, numa próxima reunião e na presença do referido titular do governo regional da Madeira, a dignidade dos cidadãos ?
Post de HMJ

Sinceridade e delicadeza


É uma esplanada sobre a praia fluvial e sobre o rio. Quatro quarentões, por entre a sobremesa e os cafés, todos, mais ou menos amigos: o filósofo, o poeta, o editor e eu. Final de Agosto, temperatura a rodar os 30º. Folhas manuscritas, numa 5ª cadeira vazia. Diz o editor: "...os analfabetos falam por frases completas, não se expressam por monossílabos, ou palavras únicas, isoladas..." - e contou duas histórias exemplares, a seguir. Mas o filósofo quer elevar o nível da conversa e cita, a despropósito Heidegger, segundo o qual o conhecimento antecipado da morte, propiciava autenticidade (referiu, no entanto: sinceridade). O poeta não concorda, nem aconselha: "Há que ser delicado para com os outros! A sinceridade ou a verdade não são as virtudes principais do ser humano." Eu fico-me na dúvida e não me pronuncio. Dividimos a conta, pagamos, e o filósofo pede o segundo café.
O editor, que está com pressa, pegou então nas folhas manuscritas, metendo-as debaixo do braço. Ao despedir-se dos 3 amigos sentados e restantes, disparou para o nosso amigo vate: "Como queres a minha opinião crítica sobre os teus poemas?, sincera ou delicada?" E antes que o poeta respondesse, prosseguiu: "Vou ser delicado, podes crer!..." E saíu do restaurante, a sorrir, e acenando para trás. Nós ficamos em silêncio uns bons cinco minutos. E puxamos de cigarros, que fomos acendendo lentamente, para ganhar tempo e coragem para preparar as palavras seguintes...

...e, se chover, há sempre alternativas...


...à beira-mar, há mais de 50 anos.