terça-feira, 1 de junho de 2010

Em sequência : Sá de Miranda



A fazer fé nos dados mais credíveis, Francisco de Sá de Miranda terá nascido, em Coimbra, nos finais de Agosto de 1481, o que significa que cresceu e se fez homem durante o reinado de D. Manuel I. Pese, embora, o lado polémico da minha afirmação, faço desde já uma declaração de interesses: considero-o um dos maiores poetas portugueses de sempre, ao lado de Camões e de Pessoa. É, porém, uma "frauta ruda" no seu cantar enviezado, nas suas elipses, nos seus versos nem sempre claros, delicados ou fluentes, mas que apontam para longe e para o fundo de nós mesmos.
Esteve em Itália, provavelmente entre 1521 e 1526 - era ainda familiar afastado dos Collonnas, e de Vittoria Collonna (1490-1547), mulher influente, amiga de Miguel Ângelo -, onde tomou contacto com a "modernidade" da época: o Renascimento. Dessa viagem ficou, pelo menos, a "Cantiga feita nos grandes campos de Roma". Quando regressou a Portugal, estadiou em Buarcos (onde também dizem que terá nascido), pousou, reflectiu e voltou, depois, à vida activa. Era um homem de Leis (formado em Lisboa), e a Justiça sempre foi uma das suas questões próprias. A sua poesia faz-se eco disso. E era um varão desassombrado, o que tinha a dizer, dizia: a amigos, a príncipes ou reis. Nunca se coibiu de dizer "não" o que é, sempre, um indício de maturidade mental, sobretudo num país de brandos costumes que inventou o "nim".
A sua ida para o Minho, próximo de Amares (Quinta da Tapada), está envolta em mistério, pelas causas que a originaram, até porque Sá de Miranda era um homem do Paço. Arrisco, especulativamente, uma hipótese insuficientemente documentada, ou por provar: o clima criado pela Inquisição. Há versos sibilinos ("...Não vejo o rosto a ninguém;/ cuidais que são ou não são...") vários pelas suas "Poesias" que denunciam uma perseguição ("...mente cad'hora espia;..."). O reinado de D. João III, com a criação da Inquisição, foi muito diferente do período manuelino anterior. Percebe-se que, com D. João III, houve menos liberdade, havia receios, tudo foi mais domesticamente cristão, mais pequenino e mais conforme...
Sá de Miranda casou tarde. Esse facto deve, também, ter-lhe dado uma visão mais ampla da vida. A morte de um dos dois filhos que teve, em combate, próximo de Ceuta, e o falecimento de sua mulher afectaram-no profundamente. Fragilizado ("...porque se conta dele que, estando sem gente de cumprimento [ e ainda com ela ], se suspendia algumas vezes, e de ordinário derramava lágrimas sem o sentir;..."), vem a morrer em 1558, em data desconhecida, mas posterior a 16 de Maio. De Sá de Miranda, na lição de Pina Martins, escolhi por gosto o seguinte soneto:

Alma que fica por fazer desd'hoje
Na vida mais? se a vã minha esperança
Que sempre sigo, que me sempre foge?
Já quanto a vista alcança a não alcança.

Fortuna que fará? Roube, despoje,
Prometa doutra parte, em abastança:
Que tem com que m'alegre, ou que me anoje?
Tanto tempo há que dei mão à balança!

Chorei dias e noites, chorei anos,
E fui ouvido ao longe, pelo escuro
Gritando, acrescentar muito em meus danos.

Agora que farei? Por Amor juro
De tornar a cantar fora d'engano
E por muito do mal, posto em seguro.
P.S. : para Luís Barata, com estima.

3 comentários:

  1. (...)Chorei dias e noites, chorei anos,
    E fui ouvido ao longe, pelo escuro (...)

    Acho que entendo o que quer dizer.
    É um prazer (raro) aprender consigo. Para mim a parte mais dura de envelhecer: ir perdendo quem nos ensine. Obrigado, APS.

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  2. Meu caro c.a.:
    por gostar muito deste soneto, escolhi o 1º verso para epígrafe do meu segundo livro, e para, modestamente, homenagear o meu poeta português preferido.

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  3. "Ir perdendo quem nos ensine"- bonita frase que subscrevo.
    Caro APS: Agradeço ter-me associado a tão grande vulto, que admiro e lamento estar algo esquecido.

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