O Artur chegou cedo mas, para nossa surpresa, vinha acompanhado por uma daquelas gordas fadas loiras de leste, com límpidos olhos azúis, que já arranhava o português. Irina Miloslavskaya, segundo o cartão de visita marmoreado e perfumado que nos deu, pouco depois, no restaurante. Optamos pelo "Porto de Abrigo", que era ali à beira. O Pedro Tamen abancou, dez minutos passados, na mesa ao lado. Artur pediu as habituais pescadinhas de rabo na boca, nós fomos no pato assado, e Irina optou por uma frugal salada. Ficamos a saber que a gorda fada loira emigrara, de início, para as limpezas portuguesas mas, rapidamente e com a equivalência dada pelo Conservatório, reiniciara a sua carreira de violinista, a recibo verde, numa das nossas melhores orquestras. Onde, aliás, Artur era um dos pianistas principais. Fez questão de mostrar o anel de safiras - sinal de promessa auspiciosa deste relacionamento de grande afinidade musical. Ficamos comovidos. Seria que o Artur ia atinar, finalmente?
Mas, à sobremesa, desiludimo-nos. O nosso amigo pianista tinha planos grandiosos a médio prazo em que, temporariamente, Irina não entrava. Recém-chegado de Macau, onde conhecera Jennifer, americana de 32 anos, Artur combinara, dentro de um mês, encontrar-se com ela em Dallas e fazerem, em romagem saudosa, num velho Buick da jovem americana, o percurso de Kerouac, pela estrada fora. Eram ambos devotos da "beat-generation" e Artur, que completara os 47 anos, queria experimentar as sensações desse deambular aventureiro. Irina estava de acordo e ficaria à espera, em Portugal, como boa Penélope. Achava que era uma espécie de despedida de solteiro que, intimamente, não desaprovava.
Ficamos preocupados, mas sabia que seria inútil demovê-lo - eu conhecia bem o Artur. Despedimo-nos, junto do Mercado da Ribeira: cheirava a maresia.
Em finais de Agosto recebi, de Phoenix, um telegrama do meu amigo pianista que me pedia para o ir esperar ao aeroporto da Portela, dois dias depois. Lá fui. Mas não o reconheceria, se ele não tivesse gritado o meu nome. Vinha muito bronzeado, vestido à "cowboy" e com um enorme chapéu branco de abas largas, do faroeste americano. Botas altas, lenço vermelho ao pescoço: fiquei estarrecido, mas Artur estava bem, embora excessivamente eufórico para o que lhe era habitual. No carro em que o levei para Oeiras, foi-me contando as peripécias do seu sonho americano realizado. Também me informou que Irina não conseguira esperar por ele, e ia casar com um marialva ribatejano. Ia dedicar-se, com o futuro marido, à criação de cavalos e produção de vinhos. Largava de vez o violino. E ele, Artur, tinha um projecto grandioso. Ia abandonar o meloso do Chopin e dedicar-se, de alma e coração, ao Liszt. Como ele tinha os dedos compridos, achei bem e fiquei muito contente.
Hoje, porém, passados mais de 10 anos, e quando oiço o Paco Bandeira a cantar "A ternura dos quarenta", pergunto-me se não seria mais sensato dizer: a loucura dos quarenta - porque me lembro sempre do Artur.
«Forty is an itchy age» dizia a Ellen Bursty no "The Last Picture Show", de Peter Bogdanovich. É a idade em que se somam as parcelas e se fazem as contas. Julgo que será mais ou menos assim com todos, uns mais, outros menos. Apesar de tudo, este seu amigo parece-me um caso um pouco atípico... :-)
ResponderEliminarOuve-se realmente uma voz a dizer "ou fazes agora ou nunca mais",e há vezes em que se não resiste- mesmo contra o mais elementar bom-senso...
ResponderEliminarJulgo que não vi o filme do Bogdanovich, c.a., mas percebo a ideia. O que penso, realmente, é que - um pouco como as doenças de infância - mais vale tê-las na idade própria. Mas é evidente que "puxei" um bocado pelo Artur... :).
ResponderEliminarE, Luís Barata, há muita coisa que não se deve perder, para evitar arrependimentos serôdios...
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