domingo, 5 de janeiro de 2014

Divagações 61


A música soa a tempo passado, cavo. Não há como o Sol para iluminar a poalha fina, transversal, que atravessa o espaço da sala fechada, há tanto tempo. Abrir as janelas, uma a uma, para a luz da manhã entrar e quase fazer implodir toda a memória. Ainda que ela regresse, renascendo dos frágeis objectos pousados por mão estranha e já desaparecida.
Tocá-los é tocar, de alguma forma, quem amorosamente os pousou, numa simetria de afectos, sobre os móveis empoeirados pelo tempo. E que, por sua vez, traduzem uma situação antiga, um gesto, um olhar. Eu poderia, no pó acumulado dos vidros, desenhar um nome, re-escrever um corpo que não volta. Mas já não é tempo de milagres, que as imagens vão sendo cada vez menos nítidas. E distantes.

2 comentários:

  1. Extraordinário texto, e de «servidão» colectiva: é mesmo esse o quadro em que entra quem quer que visite, mais ou menos esporadicamente, antiga casa de família. Mas poucos o descreveriam assim.

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  2. Muito obrigado pelas suas palavras.

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