quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

A. C. : um retrato


Pela idade, estou numa época de balanços, nos índices da vida. Ontem, ao assistir ao filme de Robert de Niro, "The Good Shepherd" (cujo título parece uma piscadela de olho ao poema de William Blake), com Matt Damon, lembrei-me de A. C.. A personagem (Edward Wilson) interpretada pelo actor americano, embora fisicamente não fosse parecido, fez-me lembrar, pelo silêncio e serenidade aparente, a figura de A. C.. Que foi uma referência na minha infância e princípio da adolescência.
Aparentemente, A. C. seria alto, mas não estou seguro: aqueles balandraus, melhor dizendo, sobretudos, eram sempre grandes, quase chegavam aos pés, e pareciam dar mais altura a quem os vestia. A. C. tinha nariz aquilino, e sem cavalo - direito. O perfil era nórdico (talvez tivesse sido louro, na juventude) e o cabelo liso e todo branco. A pele, também, embora os vasos capilares, visíveis, dessem ao rosto uma aparência rósea. Parecendo longe, estava próximo: era muito atento, mas de forma discreta. A palavra era, nele, medida como se fosse ouro ou prata que gastasse, parcimoniosamente.
Foi com ele que visitei a primeira oficina de ourivesaria - uma imagem inesquecível na memória. Foi com ele que, pela primeira vez, fui à caça e vi um jogo de futebol. Mas quando lhe perguntava (porque o meu campo visual era pequeno) se tinha sido golo, nada me respondia. Era silêncio apenas (que eu, nas caçadas, escrupulosamente, observava), e serenidade. Nunca o ouvi gritar nos jogos de futebol, nem levava as filhas, para acompanhá-lo.
As mãos tremiam sempre, até quando levava o cigarro à boca - diz-me a memória. Hoje, dir-se-ia: Parkinson. Mas nunca o vi falhar um tiro a uma perdiz, a um tordo ou a um coelho bravo. E a condução do seu Dodge era feita com absoluta tranquilidade. Por isso...
Era o único homem, numa casa de três andares, onde viviam cinco mulheres. Daí, talvez eu entenda, hoje, o seu silêncio português, nos jogos de futebol. Que ainda respeito, e admiro.

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