segunda-feira, 2 de maio de 2011

Osmose (18)




Há uma dormência que o habita. Henrique regista, com pouca exactidão, a conversa em volta. Algumas palavras (poucas) aguçam-lhe mais os sentidos. A garrafa de Grandjó vai só a meio, no princípio da tarde. Mas acompanha, com atenção amorosa e possível, a neta que, num deambular principiante e trôpego, circula pelos vazios da sala e entoa uma algaravia musical, entre o celta e lusitano (talvez) que ilumina o torpor de Henrique, apesar do fechar das pálpebras cansadas. A pequena Lígia, nos seus primeiros passos hesitantes, vai de encontro à quina da mesa, cai e chora, num lamuriar ténue, mas lancinante. A roda de gente conversante, mal dá por isso. Henrique tenta levantar-se, com dificuldade, mas a força do sentimento consegue erguê-lo, pesado e lento, do sofá. Ergue a neta do chão, rosto a rosto, uma lágrima entra-lhe na boca, e é salgada, não doce como o sangue que é o mesmo, e tudo lhe parece inicial, perfeito. Como quando em criança se deitava, na relva fresca, à espera dos pássaros.

Sem comentários:

Enviar um comentário