sábado, 31 de julho de 2010

Mercearias Finas 12 : A sopa de beldroegas e o TLS



O professor Bernardo da Fonte ia, todas as sextas-feiras, buscar à tabacaria "Velho do Restelo" o seu exemplar do TLS (The Times Literary Supplement). Às vezes, encontrava a Cilinha, com as suas assimetrias caprichosas e voz aguda, a quem, paternalmente, beijava as bochechas, até porque eram colegas de profissão. Outras vezes cruzava-se com o Sr. Murphy, louro e fleumático, que resmoneava um bom dia com sotaque; vinha também um paquete do "JL" para levar outro dos exemplares reservados. O quinto TLS era para mim, que vou contar a história. Acrescento, desde já, que eramos uma irmandade distante, sem familiaridades entre si, mas fiel.
A tabacaria tinha dois empregados: o Heitor, alentejano de gema, já quarentão, e o Rodrigo, ainda moço, fantasista e sonhador, que tentava sempre falar de mundos distantes e culturas exóticas com os clientes menos apressados. Mas veio a morrer, de repente, em circunstâncias estranhas, três anos antes da tabacaria "Velho do Restelo" fechar. No entretanto, sucedeu-lhe o Fulgêncio, a rondar os vinte anos, um pouco raquítico, baixinho e magro, mas enérgico e prestável. Sempre com um "olho na burra, outro na albarda", não lhe roubassem as revistas dos expositores. Justiça lhe seja feita: mal eu assomava à porta, já o Fulgêncio procurava o TLS para mo entregar, com um sorriso.
Ora uma sexta-feira, ainda eu estava a pagar a "BBC music" e o jornal inglês, ao Fulgêncio, quando entrou o Heitor, épico e esbaforido, clamando: "- Já ganhei o dia! Hoje, no restaurante, ao almoço vou comer sopa de beldroegas!" Ao professor Bernardo da Fonte, que entrou quase a seguir, ouvi-o perguntar: "- E é boa a sopa de beldroegas?", e o Heitor respondeu: "- Se é, senhor professor!, tem é que se depenicar as folhas, como as penas às perdizes..."
Este pequeno incidente, inofensivo na aparência, foi, no entanto, como um rastilho aceso num cartucho de dinamite progressivo. Eu nunca mais descansei enquanto, lá em casa, não me fizessem uma sopa de beldroegas que, confirmei, sendo bem feita, é de apetite! Amarguei-as, porém, porque tive que depenicar 4 molhos de beldroegas, durante quase duas horas, e nunca mais me atrevi a pedir uma segunda dose. Prefiro depenar perdizes...
Com o professor Bernardo, o caso foi mais dramático. Parece que, por essa altura, ele já não se dava muito bem com a mulher, embora o casamento já levasse mais de trinta anos, e quatro filhos. Por outro lado - segredou-me o Heitor -, a esposa do professor, e homem de letras, não era lá grande cozinheira, nem alentejana. Mas ele tanto insistiu com a senhora que ela lá lhe fez a sopa de beldroegas. Porém esqueceu-se de lhe pôr os dois queijinhos frescos da receita. E a sopa parecia mais um caldo de ervas daninhas. O professor passou-se...
Seis meses depois, ele e a dona Custódia estavam divorciados. Um ano mais tarde, Bernardo da Fonte veio a desposar, pelo civil, a Cilinha Gomes Alves - nessa altura, já uma cronista consagrada e muito presente em mesas-redondas, de temas literários, na TV. E foi assim que, dos 5 exemplares que a tabacaria "Velho do Restelo" guardava e vendia, passou a vender apenas quatro. O professor e a Cilinha passaram a ler pela mesma "cartilha". Mas não foi por isso que a tabacaria veio a fechar. Mas isso, é outra história. Já sem sopa de beldroegas...
Nota: qualquer semelhança das personagens com pessoas da vida real é mera coincidência.

10 comentários:

  1. Eu também gosto de sopa de Beldroegas; ou melhor, gostei... já passaram 40 anos sobre a última que comi.

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  2. É muito boa, sim senhor (quando bem feita). E também se pode fazer uma salada muito saborosa com as folhas tenras das beldroegas.

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  3. Eu também gosto. Mas, concordo, é muito chato catar as folhinhas das beldroegas. Já há muitos anos que o não faço.
    Uma pergunta: a Cilinha sabia fazer sopa de beldroegas?

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  4. Jad, o mês de Agosto não costuma dar direito a sopa de beldroegas? Este ano tens de reivindicá-la. :)

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  5. Nunca experimentei beldroegas cruas. Não gosto de agriões crus. Fazer esta comparação deve ser uma tontice, mas como nunca experimentei...

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  6. A Cilinha, MR, é mais cronista que cozinheira, e tem o nariz arrebitado. É muito provável que passassem a comer fora... Agora, o Heitor ainda o vi na quarta-feira, e está famoso. Atende, com simplicidade e competência, numa tabacaria estreita mas comprida, no Rossio. Foi por isso que me lembrei das beldroegas...

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  7. Experimentei a sopa uma vez mas não gostei nem um bocadinho. Pelo que leio agora, desconfio que a cozinheira não era grande coisa...

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  8. Não sei se as fazem no Inverno, no Alentejo. Porque talvez fosse, altura e local, para reincidir, e tirar a prova real,c.a.

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