Faço, quase sempre, uma boa, embora demorada, digestão feliz das viagens que empreendo. Ainda que viajar me seja cada vez mais desagradável, pelo desconforto físico e mental das partidas e chegadas, das malas a carregar e dos processos burocráticos que lhes estão associados. Mas também pelo balbuciar inepto e inicial das primeiras frases gaguejantes em língua estrangeira, quando vou para fora de Portugal.
O dia (17/10/17), razoável para um Sol londrino, intermitente, não estava, de modo nenhum destinado à Arte, porque o tinha previsto para vir a ser consagrado a prosaicos assuntos de Filatelia. Dois números de rua, na
Strand, me ocupavam o espírito: o nº. 399 (da Stanley Gibbons) e o 99, que ainda devia albergar o
Stamps Centre, onde, em 1976, eu tinha comprado, afortunadamente, a um comerciante de origem polaca, um belíssimo lote de selos clássicos portugueses, por 50 libras. Mas, e como diz o povo, "o homem põe e Deus dispõe."
Saí na estação de Embankment e, atravessando uma rua transversal, dirigi-me para a
Strand, paralela. O número 399 foi fácil de encontrar. Lá comprei o último
Stanley Gibbons Stamp Monthly, com um interessante estudo sobre as emissões de selos do reinado de Jorge VI, e saí à procura do número 99, que sempre pensei ser no mesmo lado da rua, por também ser número ímpar, como acontece em Portugal. Não era, era quase em frente, mas só o vim a descobrir muito mais tarde, depois de passar pelo retrato do português Helder Macedo, no meio de vários outros professores ilustres, em fotografia de corpo inteiro, nas vitrines do King's College, e de ter visitado uma maravilhosa exposição na Somerset House.
Mas vamos por partes. Depois de calcorrear a Strand até ao fim, desenganado de encontrar o
Stamps Centre, na volta, pelo outro lado da rua, por mero e feliz acaso deparei-me com um anúncio discreto, no passeio, a informar sobre uma exposição de pintura subordinada ao tema promissor de
Da Renascença ao Impressionismo, na Courtauld Gallery que, integrada na Somerset House, ocupava seis salas, com pinturas esplêndidas de grande qualidade, e que iam de Cranach a Monet, passando por Gauguin e Van Gogh.
Tenho de confessar que nunca, em tão breve espaço de instalações, eu vi reunidas tantas obras-primas. O
Adão e Eva, de Cranach, que iniciava a mostra, embora numa tábua pequena, era de uma perfeição admirável. Nunca também pensei lá encontrar uma das versões de
Os Jogadores de Cartas, de Cézanne, e, muito menos, uma variante primeira (?) de
Le Déjeuner sur l'Herbe, de Manet, aparentemente inacabada e ainda algo incipiente. Mais
O Balcão, de Renoir, um auto-retrato de Van Gogh e vários Degas. Só o quadro de Cranach, deixou-me fascinado, em frente dele, por uns bons cinco minutos de alumbramento e prazer...
Mas o que mais me surpreendeu, na verdade, foi uma escultura magnífica de Gauguin, para além do
Nevermore, cuja obra eu pensava ser apenas constituída por pintura. O artista terá feito, em mármore, apenas duas esculturas. Uma do filho, Emil, e outra da esposa dinamarquesa, Mette. Foi esta última, de 1877, e única, que eu pude admirar na Courtauld Gallery, da Somerset House. Há um aspecto muito curioso no olhar da mulher. Normalmente - creio - na maioria dos rostos esculpidos, o olhar inclina-se para baixo ou está, no plinto que o suporta, à altura do olhar do observador visitante. No rosto de Mette, porém, o olhar dirige-se para cima, numa ascese que Gauguin quis, talvez, sugerir.
Só por esta escultura de Paul Gauguin valeria a pena eu ter entrado na Courtauld Gallery, da Strand, nessa manhã de 17 de Outubro de 2017, em Londres.
Comecei a tarde, já passava muito do meio-dia, a almoçar uma dose generosa de
Fish and Chips, numa esplanada da Queensway. Que o Sol tinha aberto, esplendoroso, numa solidariedade alegre de beleza...