segunda-feira, 31 de julho de 2017

Jeanne Moreau


De Losey, Eva, realizado por Truffaut, Jules et Jim, ou La Notte, em que foi dirigida por Antonioni, bastariam para a inscrever, indelevelmente, na história do cinema. Acrescem aqueles lábios estranhos, dissonantes, a lembrar a sofreguidão dos peixes. Ou de viver...
Jeanne Moreau (1928-2017) deixou de existir.
Com música de Pascal Comelade, lembrêmo-la, nalgumas cenas de La Notte, de Antonioni, em que contracena com Marcello Mastroiani.

António Reis, realizador e poeta


Sei que o autor era conhecido, já antes, em círculos restritos portuenses em que se lia poesia e se ia ao cinema, com alguma devoção. Mas para muita gente, e para mim, que gostava ou fazia poesia, a publicação, em 1967, de Poemas Quotidianos, de António Reis (1927-1991), pela Portugália, foi uma pedrada no charco. Porque era uma poesia muito singular, subjectiva mas atenta, despida de atavios, para a época, e fora editada na prestigiada colecção Poetas de Hoje.

Depois das 7
as montras são mais íntimas

A vergonha de não comprar
não existe
e a tristeza de não ter
é só nossa

E a luz
torna mais belo
e mais útil
cada objecto

Lido este poema, pelo livro emprestado na altura por um amigo, vi que estava perante um poeta diferente, sério perante a vida, atento aos pequenos sinais de existir. Não me lembro já do que Eduardo Prado Coelho, no prefácio da edição da Portugália, dizia desta poesia do quotidiano anónimo dos homens sem história. Por preocupada arrumação, classificaram estes poemas de António Reis no segundo neo-realismo. O que me parece, hoje, muito redutor.
Agora que, passados 50 anos, a Tinta da China, em boa hora resolveu reeditar o livro, fala-se em Guillevic, como seu parente de influência. Talvez. Mas ao poeta francês falta-lhe a ternura, que António Reis sabe usar com parcimónia natural. Vejo-o mais próximo de Saúl Dias (Júlio, como pintor, irmão de José Régio), embora mais urbano e atento aos ruídos da cidade.
Talvez por isso, António Reis terá deixado de escrever versos, depois, e filmou Trás-os-Montes (1976). Cansado, provavelmente, da cidade e dos seus artifícios, tentadores mas efémeros.
Seria quase desnecessário dizer que recomendo, vivamente, este livro de poemas.

agradecimentos a ms, afectuosamente.

domingo, 30 de julho de 2017

Impromptu (32)

Para acabar o mês, em tranquilidade e beleza.

A avisada e prudente usura


Aguce-se o crítico bisturi pessoal para raspar as camadas de ferrugem que cobrem o essencial.
Não se vá atrás da emoção de uma capa bem esgalhada, das badanas encomiásticas ao autor, para deslumbrar o ingénuo e putativo leitor, esqueçam-se as estrelinhas dos jornais, gabando o livro, como best-seller da actualidade. Que, em menos de um ano, será vendido nas estações do Metropolitano a metade do preço ou, talvez, triturado nas guilhotinas impiedosas dessas editoras sem critério literário, mas com poderosas baterias de propaganda com meros objectivos comerciais. A que se juntam umas senhoras e uns raros senhoritos que abriram blogues chulos e mercenários, em parceria (disfarçada) com as ditas editoras, em que, para além de falarem de tachos e panelas, também escrevem sobre livros, de uma maneira infantil e paupérrima. Porque, quanto à chamada crítica literária, em revistas ou jornais portugueses, hoje em dia, estamos conversados.
A juventude pode dar-se ao luxo - como eu fiz, aliás - de gastar perdulariamente o seu tempo com autores menores e leituras inúteis. Mas pede-se à maturidade, e sobretudo à velhice, que seja mais prudente e use o seu tempo de forma mais útil e criteriosa. O tempo já vai medido, e não é muito...
Um bom amigo meu contou-me, há dias. Tinha à sua beira dois livros. Um do nacional hugo mãe (zinha), outro do norte-americano John Updike. Isentamente, abriu um após o outro, e leu as primeiras linhas de cada livro. Entre a prosa paroquial, pequenina, a pretender ter graça, e a prosa séria, universal de Updike, não teve dúvidas. Continuou a ler o romancista americano e abandonou o livro do escritor (?) português. Até porque nem sempre é verdadeiro o slogan: o que é nacional, é bom. Pode ser péssimo, mesmo que lido com piedosa e patriótica caridade...

Bibliofilia 155


Das revistas literárias, sabe-se que têm, normalmente, vida breve.
O entusiasmo inicial dos colaboradores e/ou dos editores não resiste muito tempo à escassez das disponibilidades financeiras e à relativa fidelidade dos subscritores e eventuais leitores. Por sua vez, as colecções completas destas publicações são, quase sempre, difíceis de encontrar, hoje em dia, nos alfarrabistas. Desta Sísifo, que se editou em Coimbra (Livraria Atlântida), sairam apenas 3 números, sendo que o do meio era duplo, e tinha uma tiragem de 700 exemplares. Com boas colaborações (Ramos Rosa, Eduardo Lourenço, Eugénio de Andrade, Júlio Resende...), cada número avulso custava Esc. 7$50. Publicou-se nos anos de 1951-1952.


A colecção completa, que pertencera a Laureano de Barros ( (1921-2008), matemático bibliófilo e anti-fascista, foi vendida, aqui há uns anos atrás, num leilão organizado por Manuel Ferreira, no Porto, por 70 euros. Em 2016, a Frenesi, que não é peca nos preços, tinha à venda outra colecção completa por 150 euros. E Miguel de Carvalho, livreiro-alfarrabista da Figueira da Foz, na sua última lista (Julho 2017, ref. 13886) apresentava, também um conjunto completo, à venda por 70 euros. Incompleta, com falta do fascículo nº 4, adquiri recentemente, em Lisboa, os números 1 e 2-3 (com o número 515, da tiragem), por 10 euros, motivado sobretudo por neles constar uma primeira versão de um poema de Eugénio de Andrade (1923-2005), que veio a sofrer alterações, até à sua expressão final e ne varietur. Originalmente, assim era:



O poema incluído, mais tarde, no livro As Palavras Interditas, que veio sendo aperfeiçoado pelo Poeta, na sua versão definitiva* (1990, Jornal/Limiar) ficou deste modo:

Post Scriptum

Agora regresso à tua claridade.
Reconheço o teu corpo, arquitectura
de terra ardente e lua inviolada,
flutuando sem limite na espessura
da noite cheirando a madrugada.

Acordaste na aurora, a boca rumorosa
de um desejo profundo de açucenas;
rosa aberta na brisa ou nas areias,
alta e branca, branca apenas,
e mar ao fundo, o mar das minhas veias.

Estás de pé na orla dos meus versos
ainda quente dos beijos que te dei;
tão jovem, e mais que jovem, sem mágoa
- como no tempo em que tinha medo
que tropeçasses numa gota de água.

Por cotejo, as diferenças são substanciais, como pode ver-se, mas julgo que o poema terá chegado à perfeição humana possível, ou de que Eugénio de Andrade seria capaz. Vale a pena lembrar, a propósito, uns versos lapidares de J.R. Jiménez, em pobre tradução minha: "... não lhe toques mais/ que assim é a rosa."

* A versão final do poema manteve apenas 7, dos 15, versos exactamente iguais aos da versão inicial.

sábado, 29 de julho de 2017

Mercearias Finas 124


Como as donas de casa costumam fazer, anualmente, as limpezas de Primavera, arejando a casa, também eu, como adegueiro doméstico, tenho por hábito, fazer a limpeza de vinhos brancos (mais antigos), pelo meio do Verão. Antes que eles fiquem passados de todo e imbebíveis. Que os tintos são mais longevos, habitualmente e se forem bons.
Calhou, anteontem, a vez a um Colheita seleccionada, branco, 2006, da Adega de Pegões, que já tinha muito pó na garrafeira, e era o dux veteranorum. Por essa altura, Jaime Quendera pontificava, sabiamente, por lá, como enólogo. Era trunfo a favor, mas os 11 anos de vida desse Branco (castas: Arinto, Chardonnay e Antão Vaz) acentuavam o meu cepticismo.
Mas a rolha saíu inteira, sinal positivo, e o pé era pouco - nem foi preciso decantar este Branco com 14º, bem medidos de pujança.
E foi uma agradável surpresa. Velho na cor (amarelo carregado), com aroma distinto e sabor ameno. Tinhamos massas italianas com carne picada, a que HMJ agregou, inspiradamente, folhas de aipo e uns restos de brócolos. E o vinho de Pegões combinou bem. O melhor estava, no entanto, para vir, quando encetámos a sobremesa: figos e umas lascas de meloa algarvia, entre o doce e o apimentado. O Pegões branco de 2006 mostrou aí toda a sua raça e subtileza longeva. Parecia um Sauternes dos bons  ou um Colheita Tardia de grande qualidade. Sobressairam sabor e doçura comedidos. Deus o abençoe - que já se foi, neste Verão de 2017.

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Sinais


Há quem diga:  Deus está nos pormenores. Mas o Tempo também se denuncia pelos detalhes, ou a incúria dos homens.

quinta-feira, 27 de julho de 2017

Dos Avós


Dos Avós, não me reza a história. Maternos se foram antes de eu ter vindo, e dos paternos, não me lembro, embora me pareça que a Avó, por pouco me foi coeva, e consta de uma fotografia amarelecida e pouco nítida, posando junto a uma fonte monumental, talvez do Bom Jesus, em Braga.
Recordo-me, sim, de uma Bisavó silenciosa, à cabeceira de uma mesa grande e natalícia. Mas é uma recordação neutra, inexpressiva, que não me suscita emoções de maior.
Não foi desagradável, no entanto, antes pelo contrário, que ontem me tivessem lembrado que já o sou. Através de fotografias de um Ser pequenino, e de um vídeo, onde pernas e braços tenros se mexem, desconfortados. Nesta sequência expectante e misteriosa de sangues que se vão projectando, naturalmente, para o futuro, que é um país distante, aonde não chegaremos de todo. Por aí se vai fazendo a fragilíssima eternidade dos homens...

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Apontamento 103: Falhas da Criação



Ora, olhando para a imagem acima, parece inacreditável. Cheias na Alemanha, mais propriamente na Baixa Saxónia.

Em Portugal e no Sul de França é o que sabemos: seca, calor e incêndios.

Ainda haverá quem acredite na perfeição da criação divina ? 

E a CIÊNCIA, senhores ? Não descobriu, ainda, forma de desviar a chuva para onde é mais precisa e partilhar o sol, alegrando os saxões e outros forasteiros com mais sol na terrinha deles para não virem para cá e encher as nossas ruas de turistas ???

Post de HMJ

Memória (115)


Passou recentemente (18 de Julho) o segundo centenário da morte da célebre romancista inglesa Jane Austen (1775-1817), efeméride que os seus compatriotas celebraram e vão continuar a celebrar por todo este ano, de forma diversificada e abundante, através de inúmeras manifestações culturais.
Surpreende-me sempre, de modo positivo, este concentrado amor dos britânicos às suas coisas nacionais e às suas figuras de referência. Que lhes permite, ainda hoje, publicar trabalhos e estudos com novas perspectivas, por exemplo, sobre a obra de Shakespeare ou de Turner. Por cá, e em relação às nossas figuras gradas, há, creio, muito mais desinteresse e esquecimento...
Mas não é só a elite e comunidade académica que se debruça sobre Jane Austen. O último TLS (nº 5964) dedica-lhe cerca de 1/3 das páginas, com abordagens novas e originais à sua figura e obra. Até o director do jornal inglês (Stig Abell) não se priva, no editorial, de publicar a lista, por ordem de preferência, dos romances de Jane Austen de que mais gosta. O seu favorito é: Pride and Prejudice. Seguem-se:

Persuasion
Sense and Sensibility
Emma
Mansfield Park
Northanger Abbey.

E confessa que foi um trabalho difícil e penoso estabelecer a preferência, porque gosta de toda a obra da romancista...

Desabafo (28)


A ditadura dos números, que continuam a dominar, tiranicamente, e a incendiar e ensandecer os pobres de espírito e as mentes mais frágeis.
Sobrepõem-se até aos sentimentos e ao luto de Pedrógão Grande - nesta silly season, parecem ser o grande e momentoso problema nacional.
Seria cómico, se não fosse trágico.
Calai-vos, gralhas!

Osmose 88


Naquele pequeno e rectangular baldio, outrabandista, habituei-me a ver, desde os anos 90, alguns reformados (?) a jogar, durante a semana e de tarde, prolongadas partidas da malha, ou de chinquilho - numa sua variante, como se diz no Norte. Aos fins-de-semana, sobretudo no Estio, juntava-se-lhes um pequeno grupo de jovens, que alegravam estes jogos populares e tradicionais, com o seu entusiasmo adolescente.
Por discreta mas firme vontade, que porventura a cor política autárquica ajudou, veio a construir-se, pouco a pouco e já no século XXI, um modesto mas bonito e moderno, até pela sua claridade arquitectónica, Centro Recreativo e Cultural, neste bairro da margem Sul. Confronta, a Leste, com vivendas de quintais cheios de rosas, buganvílias, aloendros e árvores de citrinos; a Norte, com uma pequena arriba e um verde pinhal.
A esplanada, ampla, é protegida por uma pala aerodinâmica inspirada nas de Siza Vieira, mas não tão ousada. E, com atenta sensibilidade aos moradores do bairro, conservaram, do baldio, um espaço suficiente para que a malha ou chinquilho continuassem a poder ser praticados. O local permanece agradável, tranquilo e acolhedor pelo seu equilíbrio (quase diria, encantador) natural.
Ultimamente, temos ido lá almoçar algumas vezes. Para lá do Café-restaurante, de preços módicos e cozinha bem confeccionada, o Centro Recreativo e Cultural tem também uma pequena biblioteca que eu, por simpatia e estima, tenho ajudado a aumentar, solidariamente. Até hoje, totalizam 9 os livros que lá entreguei. Policiais, ficção, ensaio ligeiro, divulgação histórica. E assim me vou sentindo parte dele...

Ginette Neveu (1919-1949)

Morrem cedo os que os deuses amam, teria escrito o grego Menandro. Verso que viria a ser glosado por Pessoa e Sena, mais tarde, mas que se poderia aplicar à grande violinista francesa Ginette Neveu, desaparecida com apenas 30 anos, num acidente de aviação ocorrido nos Açores, com um aparelho da Air France, quando muito havia ainda a esperar dela. Citei-a recentemente (22/7/2017) aqui no Blogue, na Pequena história (47). Nesse desastre, faleceu também o seu irmão Jean-Paul Neveu, músico de profissão igualmente,  e o campeão de Boxe Marcel Cerdan (1916-1949), francês, que foi a grande paixão de Edith Piaf.
Aqui deixo um pequeno excerto de uma obra de Richard Strauss (1864-1949), interpretado, superiormente, por Ginette Neveu, acompanhada ao piano por Gustaf Beck.

terça-feira, 25 de julho de 2017

Há gente que nunca mais aprende...


A notícia já é de ontem, mas justifica algumas pequenas reflexões.
É máxima corrente dizer-se que uma ordem só deve ser dada desde que se tenha a garantia mínima que pode e vai ser cumprida, por quem deve fazê-lo. Manda a prudência que se evite dar essa ordem se não houver esses pressupostos que garantam a sua execução, sob o risco de se perder autoridade e a face. Esta senhora procuradora-geral é pessoa benevolentíssima e que se caracteriza por, caridosamente, prorrogar prazos aos seus indolentes e preguiçosos subordinados. Ainda há pouco tempo o fez. O primeiro anúncio de adiamento ainda é feito com pompa e circunstância mas, depois, já nem anuncia o prolongamento para o prazo seguinte. Avançam as boas almas que o prazo é apenas indicativo. Assim vai a Justiça em Portugal.
E os agentes do Ministério Público, bem refastelados e madraços, devem rir-se a bandeiras despregadas ao ouvir a pobre senhora procuradora, com aquele ar compungido e cabelo ligeiramente ralo e despenteado, a explicar, à comunicação social, a demora das cartas rogatórias, a especial complexidade do processo, o mero lado indicativo da data para finalizar o processo... Tudo, no fundo, desculpas esfarrapadas.
Mas como cereja em cima deste bolo requentado, que se vai repetindo, ciclicamente, é o jornal Público destacar, com grandes elogios e reverência (ideológica?), a "pressão" e o "prestar contas" que esta pobre senhora imprimiu à sua instituição. Como diria Fernando Assis Pacheco: " Não posso/ com tanta ironia."

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Em torno de uma fotografia


Por que se calam os poetas?
Eu diria que por várias razões, como dizia Camus, a propósito do suicídio, que ele apontava ter, normalmente, mais do que um motivo. Mas voltando à questão inicial, creio que os poetas emudecem por já ser ralo e intermitente o fiozinho de água que lhes resta (como disse, poeticamente, Vergílio Ferreira, por outras palavras), por amor ao silêncio (referido por Eugénio de Andrade, num arroubo confessional, em entrevista), mas por desencanto, também. E tão só pela simples desaparição física - método mais frequente e natural.
Pensei, hoje, em Antonio Gamoneda, em Echevarría, em Manoel de Barros, como poetas que me apetecia reler. Como poderia ter pensado em Sá de Miranda ou Ruy Belo. Porque me vão sempre dizendo coisas novas, apesar de os já ter lido muitas vezes. E também me lembrei de um Amigo.
A fotografia serviu apenas para fechar o círculo virtuoso.

para A. de A. M..

Divagações 123



Li, há dias, em Le Monde, numa crónica (Terre brûlée) de Éric Chevillard, que, desde que o homem apareceu na Terra, não houve mais do que três dias seguidos de paz, no planeta. Fiquei surpreendido.
Se se consultar na internet, ou em qualquer livro dedicado ao tema, os desenvolvimentos de um batalha célebre (Trafalgar ou Borodino, por exemplo), na sua forma esquemática, ficar-se-á com uma ideia arrumada e geométrica da posição e progressão das armadas ou exércitos, gradual e ordenada nas movimentações - mas errada ou, pelo menos, não totalmente rigorosa.
Os posicionamentos e avanços (lentos, ao que parece) das tropas de Ney, em Waterloo (1815), ou a demora na ordem de ataque, retardada por D. Sebastião, em Alcácer Quibir (1578), a que se atribui uma das causas do desastre, não terão sido, por si só, razões fatais. Debaixo de fogo, as reacções humanas são, com frequência, desordenadas, irregulares e caóticas, mesmo que superiormente comandadas.




Stendhal é um bom exemplo, com A Cartuxa de Parma, da forma parcelar e dispersa dos acontecimentos da batalha de Waterloo. Como Tolstoi, em Guerra e Paz, na descrição das guerras napoleónicas, em solo russo. Um conflito bélico é feito, na sua realidade objectiva, de muitas sensações e reacções mistas: instinto de sobrevivência, coragem, mas também cobardia, numa desordem de sentimentos vários.
Por isso, a guerra é um erro em que todos perdem, embora alguns pareçam ganhar. Como a vida, aliás. Que Shakespeare definiu, magistralmente, no seu Macbeth, deste modo metafórico: It is tale/ told by an idiot, full of sound and fury,/ and signifying nothing.

Citações CCCXX


A Internet é uma organização de elite; a maior parte da população mundial nunca fez um chamada telefónica.

Noam Chomsky (1928), in Observer (18/2/1996).

sábado, 22 de julho de 2017

Da Janela do Aposento 65: Desengano de "alma ledo e cego"




Aos que, ainda embrenhados no universo da vida activa, imaginam a aposentação como a porta de entrada para um mundo maravilhoso, declaro que poderão estar enganados e sofrer uma imensa desilusão.

Designadamente se voltarem a enfrentar, como foi o caso recente de uns arautos “pafuncianos”, uma campanha perversa – persistente e prolongada – de “abate aos velhinhos” em defesa de uma pretensa saúde pública de despesa.

Com efeito, o pessimismo existencial, próprio da ordem matricial do envelhecimento, dispensaria, de todo, os potenciais agravos supra mencionados.

Embora considerando os efeitos perversos das circunstâncias acima mencionadas, julgamos que a actividade mental e intelectual das pessoas colocadas no aposento não se deve orientar pelo mesmo fechamento redutor e carente de princípios.

Assim sendo, e aproveitando um acumular de informação ao longo de uma vida, parece que a investigação e sua transformação em saber – útil e consistente – se devia orientar por preceitos metodológicos essenciais, a saber:

1 – actualização das fontes, em qualquer área do saber, indispensável para justificar novas contribuições ou publicações;

2 – humildade, sentido crítico e, sobretudo, independência e respeito face a investigações actualizadas ou controversas.

Só assim, a História do Livro, ou qualquer outra área do saber, poderá ganhar com o acumular do “saber de experiência feito”.

 Post de HMJ

Pequena história (47)

A relação de alguns músicos com o instrumento musical que praticam é, muitas vezes, quase doentia. Jacqueline du Pré (1945-1987) tratava o seu violoncelo por Ele, como se de um ser humano se tratasse; Ginette Neveu (1919-1949) foi encontrada, morta, abraçada ao seu violino, depois do acidente de aviação (Ilha de S. Miguel, nos Açores) que a vitimou.
No que diz respeito a violinos, o grande sonho dos seus executantes é tocar e vir a possuir um Stradivarius, marca homónima do grande e célebre fabricante desses instrumentos musicais, no século XVII. Esses violinos são, no entanto, muitos raros e caros. Jascha Heifetz (1901-1987) e Yehudi Menuhin (1919-1999), cada um, teve o seu, que muito estimavam.
A violinista sul-coreana Min-Jin Kym (1978), menina prodígio galardoada com o Prémio Heifetz, comprou, em 2000, um Stradivarius, por 1.200.000 libras inglesas. Infelizmente, em 2010, quando se encontrava a almoçar com o seu namorado, num restaurante de fast food, perto da estação de Euston (Londres), o estojo com o violino foi-lhe roubado. Seguiu-se para a Violinista um período de depressão e bulimia, que ela veio a contar em Gone, livro que publicou recentemente. Entretanto, com o prémio do seguro, Min-Jin comprou um Amati, também de um fabricante reputado, mas que nunca substituiu verdadeiramente, para ela, o seu amado Stradivarius.
Em 2013, contra todas as expectativas, esse violino roubado foi recuperado pela polícia. Gasto o prémio do seguro, desafortunadamente, Min-Jin Kyn já não o pode recuperar, no leilão em que o Stradivarius veio a ser posto em praça...

Despedida


A primeira vez que folheei, de empréstimo, Le Nouvel Observateur, terá sido em finais de 1968 ou 1969, num estabelecimento militar, ali para os lados de Sta. Apolónia. O exemplar da revista era do Martins, jovem louro de formação marxista, e que, com o Neves, o Roseta, o Medeiros (de Valpaços, também louro, mas muito de direita, politicamente) e o Trindade, alferes milicianos, além de mim, completávamos a equipa de serviço. Estávamos a cerca de cinco anos do fim do Império...
Na altura, Jean Daniel (1920), pied-noir esclarecido e que fora grande amigo de Albert Camus, pontificava na conceituada revista francesa, que eu comecei a comprar, semanalmente, a partir de 1971. De alguma forma, o magazine contribuiu para fortalecer a minha formação ideológica e política, que se iniciara em Coimbra, em 1963, com as movimentações académicas. E foi com algum orgulho patriótico que vi Portugal, nos anos de 74 e 75, fazer algumas capas de Le Nouvel Observateur.
Com alguns hiatos e, recentemente, de forma mais esporádica (folheava-o previamente, para ver se me interessava), fui-o adquirindo às Quintas ou Sextas-feiras. Mas fui-me também apercebendo, com mágoa, da diminuição gradual de qualidade da revista francesa, das cedências ao lado róseo das coisas, do aumento de imagens nas páginas, da trivialidade de muitos temas abordados, do abaixamento profissional de uma boa parte dos jornalistas e colaboradores.
No local onde o compro, dos 6 exemplares que recebiam, há 4 ou 5 anos, passaram apenas a 2, que, muitas vezes, nem se esgotavam, apesar de menos. Ou seja, nem as cedências à banalidade de parte dos assuntos tratados fizeram com que a revista se vendesse mais - o crime nem sempre compensa, felizmente... E, às vezes, eu pensava que o velho Le Nouvel Observateur se tinha transformado, para além do nome (que agora se chama L'Obs.), numa espécie de Hola de luxo, com temas políticos.
Mas hoje, ao comprá-lo, no quiosque lisboeta habitual, tive mais uma desagradável surpresa. Dos 3,90 euros, que custava, passou a custar 4,70 euros: mais de 20% de aumento, numa publicação que, sendo de prestígio antigo, só tem vindo a piorar de qualidade, nos tempos mais recentes.
Para mim, chega!...

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Pinacoteca Pessoal 126


Nascido em Cambridge, Norman Wilkinson (1878-1971) é, provavelmente, mais conhecido pelos seus posters e minuciosas ilustrações que, no início de carreira, foi fazendo para o Illustrated London News e também para o Illustrated Mail. Tendo servido na Marinha Inglesa, no decurso da I Grande Guerra, são notáveis as suas aguarelas e imagens cobrindo o conflito. Com destaque especial para a Batalha de Dardanelos, ou Campanha de Gallipoli, em que a Marinha Inglesa foi destroçada pela Armada Turca. Tendo Churchill sido apontado, erradamente aliás, como responsável pelo desastre.


Mas já antes, os trabalhos de Norman Wilkinson eram apreciados. Foi-lhe encomendado, por exemplo, um quadro (Plymouth Harbour) para decorar a sala de fumo do transatlântico Titanic. Apaixonado pelo mar, muitas das suas telas são marinhas, de grande qualidade estética. Não sendo, propriamente um revolucionário inovador, vale a pena conhecer a obra deste pintor inglês, cuja obra é vasta, como longa foi a sua vida.



quarta-feira, 19 de julho de 2017

Agradecimento a um Visitante anónimo


Habituei-me com o tempo a visitantes fortuitos e efémeros que, às vezes, até são voluntaristas em comentários e interacção. E, depois, um dia desaparecem para sempre. Sem mais voltarem. Sou agora mais parco e mais comedido, ao saudar um primeiro comentário de visitante novo e desconhecido. Até porque, nós portugueses, somos quase sempre muito efusivos, à partida, mas rapidamente perdemos o gás... Pouco dados à persistência, à fidelidade em sentido amplo, à acção continuada, sem queixume, ao amor calado, ao trabalho continuado por uma ideia ou por um objectivo. Talvez por latinos, o sangue nos ferva, excessivamente, nas veias, e nos obrigue a correr por outras paixões, abandonando, sem remorso, as antigas.
Tenho acompanhado, calado mas curioso, um visitante do Arpose que, desde há vários dias, pertinazmente, tem vindo a descobrir e consultar o nosso Blogue, de forma integral e determinada, desde o seu início (2009). O sinal donde provém indica Vila Praia de Âncora, sendo cliente da PT, pelos dados a que consigo aceder.
Quero, aqui, agradecer-lhe, muito sinceramente, as horas que tem passado connosco - obrigado!

As palavras do dia (29)


Do editorial de Stig Abell, no último TLS (nº 5963), a propósito de algumas vicissitudes que têm ensombrado a Inglaterra, destaco, em tradução despreocupada, o seu início, em que é feita uma crítica ao desempenho dos mídia. Assim:

Há um calculismo cruel inerente ao jornalismo: quanto pior é o acontecimento, melhor a história se torna. Boas notícias não são notícia. ...

Ao ler isto, relembrei-me da decepção estampada no rosto de uma jornalista da Sic-Notícias, aquando do incêndio em Pedrógão Grande, quando lhe afirmaram que não tinha caído nenhum avião Canadair, em Ouzenda. E ela insistia, qual menina mimada, caprichosa, teimosamente. Pobrezita!...

terça-feira, 18 de julho de 2017

Do que fui lendo por aí... (10)


É uma longa enumeração. Como o próprio título (sugestivo e tentador) indica, de Livrarias. Que vão da Shakespeare and Company (Paris) à Bertrand (Lisboa), considerada a mais antiga do mundo, em exercício. De particular incidência nas sul-americanas. Com pequenas histórias entremeadas, e alguma erudição.
Este livro de Jorge Carrión (Tarragona, 1976), Livrarias, editado pela Quetzal, em Maio de 2017, lê-se... mas não o recomendo, de modo nenhum.

Canção tradicional cigana - Ederlezi

Ederlezi tem inúmeras versões (no Youtube, há várias dezenas delas, cantadas por vários artistas), grande parte mais bonitinhas, mais suaves, outras ainda, ultra-sofisticadas... Preferi esta versão, talvez mais rude, num vídeo porventura artesanal e muito tremido, com som sofrível, por me parecer mais castiça. Mais autêntica e natural. Acho-a muito bonita.
A canção celebrava a entrada da Primavera. Os sérvios juntaram-lhe a celebração cristã de S. Jorge, sendo que esta comemoração mista, pagã e cristã, ocorre nos primeiros dias de Maio, cada ano.

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Uma fotografia, de vez em quando... (89)


A Taschen reeditou recentemente um antigo, raro e esgotado ensaio de James Baldwin (The fire next time), acompanhado por cerca de 270 fotografias, 100 das quais a preto e branco, de muito boa qualidade, retratando o escritor afro-americano. Os instantâneos foram captados pelo fotógrafo nova-iorquino Steve Schapiro (1934).


Fotojornalista freelancer, o norte-americano tem obra extensa, que recua até 1961. Acompanhou a Marcha para Washington, dos Direitos Humanos, tendo fixado bons retratos de Martin Luther King e dos manifestantes. Trabalhou também para a Vogue e para a Life. E acompanhou as filmagens de The Godfather e Taxi Driver, de que ficaram expressivos retratos de Marlon Brando e Robert de Niro. Grande parte das celebridades cinematográficas da segunda metade do século XX não escaparam à sua objectiva.



Não será, certamente, um dos fotógrafos maiores do séc. XX (e quem sou eu, ignorante, para o afirmar?... ). Mas, mais do que o enquadramento feliz e a originalidade estética dos seus retratos, o sucesso da sua obra - parece-me - fica a dever-se, também, à capacidade histriónica (Buster Keaton e Woody Allen) ou à fotogenia (Paul Newman) de grande parte dos seus modelos.


Citações CCCXIX


A vingança é um assunto privado. A justiça, um acto político.

Miguel Bonasso ( Buenos Aires, 1940).

À espera de Godot...


... com perfume parisiense e leitura britânica, em Lisboa remanchada (para citar O'Neill).


para ms, em retorno e ritornello, afectuoso.

Adagiário CCLXV



Não há almofada mais macia do que uma consciência tranquila.

Provérbio francês.

domingo, 16 de julho de 2017

Politicamente correcta


Aparecida, nos E. U. A., e fabricada nos anos de 1935 a 1940, esta Topsy-Turvy foi uma boneca muito popular, e prontamente imitada por outras empresas de brinquedos. Anunciava uma futura época do politicamente correcto. Hoje, e se fosse produzida pela Benetton, a conhecida marca acrescentar-lhe-ia, talvez, mais dois segmentos: uma criancinha oriental, do lado direito, e um pele-vermelha, do lado esquerdo, em jeito de gémeos duplos siameses. E seria preciso ter em conta, também, os géneros, não fosse o diabo tecê-las...

Turismos


Desta vez foi L'Obs, a descobrir Tavira. Só falta, lá pela estranja, algum jornal bisonho descobrir A-da-Gorda e Costas do Cão, para nem aí termos tranquilidade. Quando é que acabará este turismo de pacotilha, massificado e de moda, direccionado todo para Portugal?

sábado, 15 de julho de 2017

A região saloia


Não sou muito viajado. Fiquei-me pela Europa ocidental e já nem tenho vontade de conhecer a Hungria, sonho que acalentei dos meus 20 anos, até há pouco. Mas fico, estupormente, admirado desses fascínios cegos, desses "onde gostaria de estar", dessas paixões enormes por outros países, que alguns têm.
Confesso as minhas fraquezas: Inglaterra, Alemanha e Bélgica. E, antes de morrer, gostaria de ir a Pinhel. Que não conheço.

Piazzolla (1921-1992)



Nota: descontem-se os 20 segundos finais, para os aplausos...

Descartáveis (2)


Esta, que encima o poste, é a vera imagem do ursinho de peluche, que foi tema do primeiro Descartáveis, aqui no Arpose, ontem. Não é boneco de luxo, bastaria que não tivesse olhos de vidro (como tinha o meu antigo Tinzinho dos pés rombos) para não lhe conceder lustrosa genealogia e pedigree. Mas a história conta-se breve, e já.
Cerca de 8 horas depois de eu o ter descoberto junto de um contentor de lixo, HMJ teve que sair à rua. E o bichinho continuava lá, abandonado. Pelos vistos, as crianças, aqui das redondezas, têm os quartos cheios de brinquedos. Quando regressou, quase 2 horas depois, o ursinho permanecia no local e, então, HMJ trouxe-o para nossa casa.
Embora cansado, o animalzinho estava em razoáveis condições: apenas um braço apresentava ferimentos ligeiros e a cabeça estava incompletamente cerzida ao tórax. Foi-lhe dado banho, secou ao Sol e, agora, apresenta-se refeito das agruras e salvo da ignomínia e abandono por que passou. Até já tem uma pré-dona, próxima e futura...

Quanto à ex-professora passada, aposentada e desgrenhada (de que também falei no Descartáveis 1), hoje não a vi na esplanada do Café. É que, ao sábado, não há aulas na Escola e ela não teria colegas jovens, e no activo, para aconselhar, de forma tribunícia e doutoral...

sexta-feira, 14 de julho de 2017

Descartáveis


Pela manhã - e ainda por pouco, fresca -, imprevistamente, junto aos contentores de lixo devassados pelo casal dos sem-abrigo, que cedo os costumam triar, estava um pequeno ursinho vermelho, de peluche (não, não é o da imagem, mas era semelhante), desamparado, ao abandono. E porque me lembrou o meu Tinzinho dos pés rombos, acastanhado, tive ainda a tentação de lhe pegar e levantar do chão, para o colocar em posição mais digna, mas desisti da ideia e lá segui  o meu caminho, para ir comprar o jornal.
Na esplanada do café, na mesa do canto, lá estava a ex-professora de cabelo crespo, desgrenhada, que, como sempre perorava para outras duas, mais jovens e no activo, que tomavam o seu café matinal antes de pegarem ao serviço, na Escola próxima. A veterana e aposentada professora sempre me pareceu passada... E, ao contactar as mais novas, julgo que procura a ilusão de dar conselhos, de forma atabalhoada, para se sentir ainda activa e útil. Penso que os anos, que passou em Timor, lhe fizeram mal e foram fatais...
Serão duas formas de solidão matinal. O ursinho imprestável, orfão e descartado pela criança que cresceu de forma ingrata; e a professora que procura integrar um diálogo profissional desajustado, com as mais novas, que quase sempre sorriem para ela, de forma compassiva.
Quando regressei a casa, o ursinho vermelho de peluche ainda lá estava, abandonado. E quase tive pena dele, no seu desemprego de afectos... 

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Recomendado : sessenta e nove


Vem tarde esta recomendação, porque diz respeito a L'Obs da semana passado, e hoje sai o novo.Mas valerá a pena referir que a temática deste penúltimo (nº 2748) é dedicada a Simone Veil (1927-2017), com depoimentos de Jean Daniel, Agnés Varda, Françoise Arnoul, entre outros. E este mesmo L'Obs preenche 3 páginas sobre a exposição, no Centre Pompidou, de David Hockney. En passant, há também artigos sobre Martin Schulz, político, e Nicolas Cage, actor. Eis algumas boas razões para ler este número da revista francesa, que saíu a semana passada.

Faits-divers


Noite sem sobressaltos e em que quase nada aconteceu. O Blogue quase ia adormecendo de tédio, não fora a visita de três cibernautas: dois do Brasil (Canoas e Ribeirão Preto) e outro de Portugal (Lisboa).
Tirando os sugadores de imagens e os melómanos (Hovhaness e Heinrich Schütz), o Arpose não foi chamado à colação nem ao quadro. Ficou assim "posto em sossego" e tranquilo, cochilando entre as esparsas visitas nocturnas.
Bem o merecia!

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Produtos Nacionais 21


Falemos de Broa. De milho.
Que era, aqui há uns 60 anos e no Minho, o contrapeso, nas padarias, para o acerto de trocos em tostões do montante pago pelos bijous e bicas. E, muitas vezes, única refeição de pobres, com magro concurso e conduto de uma sardinha, ou singela malga de caldo. Eram broas enormes essas de antanho, esbranquiçadas de miolo, gretadas na crosta pelo calor do fogo de fornos rústicos e artesanais. A côdea era rija, quase tinha que se rilhar. Outras vezes, esfarelava-se na sopa, para melhor a amolecer. Era, porém, imprescindível para acompanhar o Caldo Verde, com a sua tora e a rodela de chouriço, mais o fiozinho de azeite canónico.
Ainda a vi cozer em casa do meu Tio, no forno ao fundo do quintal, na antiga rua dos Palheiros vimaranenses (hoje, renomeada e militarizada para Humberto Delgado), e em Urgezes, já fora de portas, pela dona Irene, que era a especialista da família Coelho. E lhe punha folhas de vide, por baixo, para que não crestasse muito no lar.
Ainda hoje considero a broa como o acompanhante ideal para um cozido de bacalhau, com todos, ou para umas sardinhas assadas, rechinantes, a pingar. Só que, a Sul, broa de milho minhota, não há. Encontra-se a de Avintes, mais pesada e doce, a Beirã, mais seca e menos saborosa. Por isso, terei de levar uma da Lourinhã, que é parecida com a minhota, mas mais maneirinha e amarelada de miolo, para uma sardinhada com amigos, que vai haver a meio da semana, ali para os lados do Areeiro.
E que nos venha a fazer proveito e sirva para matar saudades!...

terça-feira, 11 de julho de 2017

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Ressonâncias


A princípio foram os campos de Soria (Machado? Lorca? Jiménez?), pouco depois, o deste sabor de fruta inexistente, que se me perfilou, ostensivo, na corrente do pensamento.
Às vezes, subitamente, e sem que nada o pressentisse ou motivasse, somos suscitados por um verso, ou por uma cantilena. Melhor dizendo, convocados, porque é de voz que se trata.
Talvez por que a similitude do momento ou de uma situação se identifica com outra do passado. E o ritmo do coração é o mesmo, na sua batida sensível e humana.
Mas as palavras exactas muitas vezes se nos escapam e não ocorrem. Mesmo que tenham sido nossas. Temos, então, que ir à estante procurá-las. E recordar a sua perfeita exactidão original.

domingo, 9 de julho de 2017

Em louvor da Velhice (criativa e irreverente) : David Hockney


Tenho, para mim, que a velhice é, normalmente, mais do mesmo, passado. Ou como dizia o outro: é chegar ao fim do dia, e ver que nada aconteceu. Mas há curiosas excepções, mais raras ainda com artistas ou criadores. Estou a lembrar-me, por exemplo, de Herberto Helder que inflectiu, de forma poderosa, a sua poesia, nos últimos anos de vida. Menos, talvez Picasso, mas, com certeza, Matisse. Sá de Miranda é outro bom exemplo. Porque, na maioria dos casos, o que sobra é uma penumbra habituada, uma sombra pálida do que se fez, já sem o fulgor e pujança madura dos melhores anos. Como que uma desistência direccionada ao apagamento. Júlio Pomar disse, numa relativamente recente entrevista, que já andava cansado...


David Hockney (1937), que hoje faz 80 anos, é também um bom exemplo dessa vitalidade criativa que se renova, teimosamente, apesar da idade. Em 2012, em Colónia (Alemanha), tive a felicidade de ver uma exposição das suas últimas obras, que me surpreendeu pela frescura e qualidade estética, até mesmo, pela inflexão profunda do itinerário que tinha seguido até ali. É certo que ele tinha voltado à infância, voltara às paisagens juvenis da Inglaterra (East Yorkshire), onde tinha decorrido a sua adolescência, para pintar de novo. Alguns dos vídeos-instalações eram surpreendentes. E deixaram-me fascinado. Não os esquecerei tão cedo, como soberbas realizações de velhice ou maturidade tardia. E de apuramento estético, naquilo de que um criador é capaz.


É canónica e foi consensual a teoria de Leon Battista Alberti (1404-1472), durante muito tempo, para que o centro de um quadro organizasse os motivos de tal forma que obrigasse ou fizesse convergir o olhar do espectador para o tema central da obra. Muito poucos pintores, e ainda assim muito raramente, desafiaram esta teoria sobre a perspectiva, ou "desmanchar(am) a regra" - como disse, em verso e muito bem, o meu amigo António.
David Hockney tem, presentemente, no Centre Pompidou, uma exposição das suas obras, patente ao público até 23 de Outubro de 2017. A propósito da mostra, concedeu a Le Monde (22/6/2017) uma interessante entrevista em que explica a sua glosa (Annonciation 2) sobre o quadro de Fra Angelico (1395-1455), "A Anunciação a Maria", pintado em 1437. Recriando o interesse do presumível espectador pelo lado esquerdo, onde acrescentou uma paliçada diferente, e pelo lado direito, com o negro da noite. Por outro lado, modificou a posição da paliçada, de modo a alargar o campo de visão do observador. Levando-o para outros caminhos. A geometria do quadro de David Hockney é também totalmente diferente da de Fra Angelico, et pour cause...


Hockney refere também na entrevista que o que vinha pintando, natural e inconscientemente, numa tendência de inversão das perspectivas, se lhe esclareceu com a leitura da obra de Pavel Florenski (1882-1937), "A Perspectiva Inversa", em que o teórico russo advogava uma concepção da pintura totalmente contrária às ideias renascentistas do italiano Leon Battista Alberti. Daí os seus vídeos- instalações dos últimos anos, que, pelo seu movimento contínuo, obrigavam à participação acompanhada do olhar do observador.


Terminemos com uma nota mais ligeira, e de humor, de David Hockney que, quase no final da entrevista a Philippe Dagen, em Le Monde, afirma:
"Sim, eu sou um pintor feliz, e continuo a fumar. Na minha idade, não faria muito sentido parar: já não arrisco grande coisa. Sabe o que dizem na Califórnia? Que a opção, em breve, será entre fumar e a imortalidade. A imortalidade..."

Para MR, que não sabia o que eram "beijinhos"...


Lá para o meio de Agosto, e antecipamente, se marcava uma expedição à praia das Caxinas, depois do almoço, para arranjar conchas pequenas, bonitas e exóticas. E íamos para essa praia de Pescadores, já perto de Vila do Conde, porque os areais da Póvoa estavam muito devassados pelos infantis pesquisadores de conchinhas, que todos os dias as procuravam, pela Praia dos Banhos.
O trunfo maior e mais precioso, eram os "beijinhos", pequenos e ovalados, normalmente, ornamentados com 3 (?) pintas castanhas ou pretas, no dorso. Três ou quatro "beijinhos", encontrados numa dessas expedições à beira-mar, eram um autêntico tesouro, que traziamos de lá...

A paz connosco...


Ainda Somerset Maugham, do seu Exame de Consciência (pg. 55): 

"À primeira vista, é curioso que as nossas próprias infracções nos pareçam muito menos odiosas que as dos outros. Suponho que a razão é a de conhecermos todas as circunstâncias que as ocasionaram, de modo que podemos desculpar em nós mesmos o que não podemos desculpar nos outros. Desviamos a atenção dos nossos defeitos e quando, por desagradáveis circunstâncias, somos forçados a considerá-los, achamos fácil dar-lhes absolvição. Quer-me parecer que temos razão em proceder dessa maneira; eles fazem parte de nós, e devemos aceitar igualmente o que de bom e mau em nós existe."

sábado, 8 de julho de 2017

O seu a seu dono


Eu bem sei que os actuais directores de jornais são muito diferentes dos antigos. Que tinham, normalmente, uma cultura sólida, escreviam bem e eram competentes. Hoje, estes sujeitos são muito mais ligeiros, muito voluntaristas e simpáticos, pouco lidos e, decerto, confiantes na estupidez e ignorância dos leitores. No Público, e depois de Vicente Jorge Silva, digno representante da classe de jornalistas, tem sido sempre a descer, impiedosamente...
Atribuir a Lobo Antunes, por título de crónica ou editorial (viva o luxo!), um verso de Sá de Miranda, é um dislate. Literário, mas dislate. Mesmo que seja para alardear cultura, alarvemente, e a propósito de incêndios. Até já Gastão Cruz  tinha epigrafado o verso, em itálico, num soneto, em livro de 1969 (As Aves), referindo o Autor. Porque o romance de A. Lobo Antunes, com esse título, plagiado, saíu apenas em 2001. Mas estes directores de jornais são uns neófitos ainda imberbes, quanto a literatura pátria. Lembram-se de ontem, mal e de outiva, unicamente. Resultado dos programas escolares dos últimos anos? Não sei.
Porque ainda há poucos dias, também, um provecto e reformado amador de letras pátrias proclamava, pomposamente, Adolescente (1942) como sendo o primeiro livro de Eugénio de Andrade. Não é, é Narciso (1940) que, tal como a sua terceira obra (Pureza, 1945), o Poeta viria a renegar, anos mais tarde. Por isso, quanto a jornalistas, sejam eles directores ou aposentados críticos literários, hoje, estamos conversados. E o problema é que estas asneiras deixam rasto e fazem carreira. E vão sendo repetidas pelos ignorantes e distraidos, numa ladainha servil e acarneirada. Deus nos valha!...

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Verão


Estes meses de Verão são propícios a despedidas fictícias, ou temporárias. A votos de" boas férias!", nas separações ocasionais e breves. Teremos de recuar muito para encontrar as definitivas, dos afectos estivais de praia, dos estrangeiros que passaram por nós, em países a que nunca mais voltámos. E que nunca mais vimos, nem veremos. A casas que foram nossas, pelo breve espaço de as habitarmos, como, aliás, serão todas ao longo das nossas vidas. Efémeras que serão um dia, também.
Por isso, esta irónica imagem antinómica de duas pequenas lapas, que HMJ encontrou na praia da Areia Branca, e que trouxemos, cuidadosamente, para esta nossa casa, temporária.