sexta-feira, 31 de julho de 2015

Para a história de "O almoço do trolha", de Júlio Pomar


É sabido que o emblemático "Almoço do trolha", de Júlio Pomar (1926), foi vendido, num recente leilão do Palácio do Correio Velho, em Maio passado, pelo considerável montante de 350.000 euros, um recorde em pintura portuguesa. O que nem toda a gente saberá é que, na exposição inicial (SNBA) desta conhecida obra de recorte neo-realista, em Outubro de 1950, o seu preço de catálogo, conforme se poderá ver na imagem, era de Esc. 7.500$00.
De início, e após o leilão de Maio de 2015, não ficou a saber-se quem o teria adquirido, embora transpirasse que o licitador vencido teria sido uma estranha parceria entre a Secretaria de Estado da Cultura e a Fundação Gulbenkian.
Tive, hoje, a grata alegria de saber que o famoso quadro fora adquirido pela Fundação Manuel de Brito, e que a obra integrará, futuramente, uma exposição retrospectiva da obra de Júlio Pomar. São boas notícias, sobretudo por saber-se que esta conhecida e importante pintura do século XX português, se encontra em mãos e território nacionais.

Citações CCXLVIII


Eu tenho sempre uma citação apropriada para qualquer situação - e isso permite-me poupar nos pensamentos originais.

Dorothy L. Sayers (1893-1957), in Have his carcase (1932).

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Pinacoteca Pessoal 99


Eu, que nem aprecio por aí além, em Pintura, as naturezas mortas, fui agradavelmente surpreendido por algumas obras do holandês Adriaen Coorte (1665?-1707). Devia ser um preciosista minucioso, este pintor nascido em Middelburg, muito pouco conhecido, enquanto vivo, para lá da sua região e que, ainda hoje, é pouco referido, embora esteja representado no Rijksmuseum.
Os seus motivos emblemáticos são, obsessivamente, os frutos, os vegetais, as conchas marinhas e pouco mais. Anos e anos, foi um pintor esquecido e confinado à região onde viveu, até que, nos anos 50 do século passado, o historiador de Arte Laurens J. Bol deu por ele e, entusiasmado, o deu a conhecer ao mundo e o fez ressuscitar do limbo estético onde estava esquecido...

Recuperado de um moleskine (14)


Havemos de procurar a música concordante para que o dia se acabe em harmonia. Mesmo que isso, fazendo sentido, seja o mais difícil. Não basta o desejo e a vontade.
Porque, às vezes, nem sabemos bem o acorde exacto. E nem sempre a dissonância, que parece convir, se possa explicar, de forma muito nítida. Até mesmo para nós, intimamente.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Um poema de L. S. Senghor (1906-2001)


Tua carta minha carta

Tua carta minha carta, e se fosse impossível
Se Hitler se Mussolini, se a Rodésia a África do Sul, o parente português
Se se e mais se, mas nós temos o telefone branco
Não, o vermelho. Satélites rodando em torno da Terra-Mãe.
Se é que rodam mas que importa? Através dos negros espaços estrelados
Através do muros as cadeias de sangue, através da máscara e da morte
Temos o telefone da aorta: o nosso código é indecifrável.


(Tradução de Luíza Neto Jorge)

António Nobre caracteriza Lisboa, numa carta de 1894


"... Tu não imaginas quanto Lisboa me entedia e tambem me entristece. É bem uma cidade em funeraes. Por toda a parte cautelleiros, capilé, empregados publicos, e carros do Jacinto... E depois que cheiro a secretaria, que nem a maresia do Tejo consegue disfarçar. ..."

A. Nobre (1867-1900), em carta a Vasco da Rocha e Castro (Revista de Portugal, Outubro de 1938)

De José de Guimarães (1939), para a Vista Alegre


Sempre que passo na loja da Vista Alegre, ao Chiado, não resisto a colher um ou outro encarte das novas colecções, que a prestigiada marca vai produzindo.
Hoje, calhou a vez de uma peça de porcelana de José de Guimarães (1939), intitulada Oceanos, sugerindo uma onda dos mares descobertos e atravessados pelos portugueses.

Retro (76)


Um pouco facinorosos, de aspecto, estes bebedores de água termal, no balcão...

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Regionalismos transmontanos 88 (finais)


1. Zirra-zirra - troça de mondadeiras a qualquer rapaz que passe perto.
2. Zoipeira - mulher gorda, desajeitada.
3. Zopeiro - brutamontes.
4. Zorrão - homem indolente, pouco hábil.
5. Zortar - sair. Ir-se embora, desaparecer, desertar.
6. Zurca - bebedeira.

Nota: por aqui nos ficamos, acabada que está a leitura partilhada (seleccionadamente) do "Dicionário de Transmontanismos" (2005), de Adamir Dias e Manuela Tender.

O quintal-bonsai


Conheci alguém que se sentava, ao fim da tarde, num banco de madeira, a contemplar, com delícia provável, o progresso da Natureza e o resultado do seu trabalho, na pequena horta familiar. E, vê-lo assim em contemplação silenciosa e feliz, fazia-me recordar a velha fotografia emblemática de Alexandre Herculano, em Vale de Lobos, derreado aparentemente, e sentado num cesto vindimeiro, em abandono relaxante, depois do trabalho agrícola. Convém lembrar que o nosso grande historiador produzia, na sua quinta, o melhor azeite português, na altura.
A Norte, no minifúndio secular, o meu quintal de infância era minúsculo: couves tronchas, alguns tomates, ameixas vermelhas deliciosas que, quando a árvore secou, foram substituidas por limões (...fruto de inverno/ por onde passa/ o verão.), escassas alfaces tenras, porque o terreno era muito limitado, embora fosse tratado com zelo exemplar por minha Mãe e pela sacrificada Maria.
Agora, ainda é menor o espaço, mas as emoções não se alteraram muito. Ao ver estes poucos e pequenos, lindos tomates, as pequenas azeitonas a crescer, os três limões rugosos, na varanda a leste, posso afirmar, sem vergonha nenhuma, que me sinto feliz.

domingo, 26 de julho de 2015

Citações CCXLVII


Uma das coisas boas de envelhecer é o facto de se ganhar a autoconfiança para dizermos a nós mesmos que estamos em desacordo com toda a gente à volta.

Francis Fukuyama (1952), em entrevista ao jornal Expresso (18/7/15).

Para o António, no seu aniversário


Difícil é apresentarmo-nos, circunspectos e felizes, que as manchas na pele não correspondem, talvez por miopia ou cegueira, à claridade que sentimos, nem as rugas, ainda que poucas, representem as fracturas e abismos que conseguimos ultrapassar. A Primavera ainda vibra no sangue quando chegam as andorinhas, nos seus voos nervosos; como o Verão se cola a aventuras que já não pode haver. Esperam de nós a sabedoria da idade e a ponderação tranquila dos anos, que, por vezes, conseguimos. Apesar desse buliçoso diabinho, na alma, que nos tenta, a "desmanchar a regra", a fazer travessuras (tantas vezes!) como quando trepávamos às árvores, desmanchávamos um brinquedo, ou "tropeçávamos de ternura" e lágrimas, por um amor infeliz.

Ainda a fotografia, a propósito de uma comemoração


Vejo, pelos blogues amigos, que hoje se celebra o Dia dos Avós. Não frequentei nenhum dos quatro, porque, quando nasci, creio que já todos tinham falecido. Mas, curiosamente, ainda conheci a minha bisavó materna, já muito idosa. E que era uma figura silenciosa, no outro lado da cabeceira da mesa, na sala de jantar dos meus Tios, quando eu lá ia comer.

Uma fotografia, de vez em quando (65)


Nascido no Luxemburgo, Edward Steichen (1879-1973) cedo foi levado pelos pais, que emigraram, para os E. U. A., tendo adquirido a cidadania americana, em 1900. Notável retratista de celebridades (Matisse, Churchill, Greta Garbo...), colaborou intensamente na Vogue e na Vanity Fair. Foi também pintor e galerista, tendo dirigido o departamento de Fotografia do MOMA, de 1944 a 1962.
O magnífico retrato do poeta Carl Sandburg e mulher, Lilian, já aqui apareceu (6/1/2011) no Blogue. A outra fotografia, em imagem, intitulada "Homem desconhecido com charuto", é de 1915.

sábado, 25 de julho de 2015

Cafés em equação


Vou-me habituando, sofrivelmente, ao sabor acre da torra à espanhola, dos cafés Delta. Dizia-me o Fernando Costa, da Nicola, que o sr. Nabeiro mandava fazer assim para conquistar o mercado da Andaluzia. E parece que o conseguiu...
Na esplanada outrabandista, cheira a erva cortada e aos sabores da manhã. Defronte, tenho a pequena rampa verde humedecida, do lado direito, ouço, amortecidos, os ruidos do Mercado que se vai enchendo de fregueses, pouco a pouco.
A princípio, foi o Sical, que se comprava lá para casa, e que ainda hoje frequento e gosto. Mas a minha mais longa fidelidade terá sido com o Nicola (metade Arábica, metade Robusta), com aquele aroma inconfundível de torra portuguesa equilibrada. Anos e anos foi o nosso preferido, até que, por razões objectivas e de proximidade, optei pelo Lote Presidente, da Carioca. Que tem as mesmas percentagens do Nicola, embora de torra mais acentuada.
Na esplanada, apago o cigarro e regresso. Ainda agora, na boca, o travo amargo do Delta...

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Filatelia CV


É altamente discutível, hoje em dia, a política comercial filatélica de muitos países europeus, no tocante às emissões de selos. Quer pela quantidade abusiva, quer também pela discricionalidade dos motivos. Os Correios portugueses, recentemente, chegaram à arbitrariedade de permitir que um qualquer cidadão, apresentando uma fotografia sua e efectuando um determinado pagamento, pudesse mandar emitir selos com a sua imagem!... É o que se chama ver curto. Deste modo, a colecção de selos de Portugal, teoricamente, pode ser infinita. E isto desencoraja qualquer coleccionador responsável. Os CTT poderão ganhar muito hoje, mas irão registar muito menos, no futuro.
É oportuno lembrar a inteligente estratégia de alguns pequenos Estados europeus: Mónaco, S. Marino, Liechtenstein, Andorra... Que, pela sua pequena população, faziam tiragens reduzidas e de cuidadoso grafismo, muito apetecidas e compradas pelos coleccionadores, arrecadando assim, os Correios, boas receitas e divisas. O Vaticano é outro bom exemplo de uma avisada política filatélica, nas emissões. Daí, reproduzirmos, em imagem, 6 selos das emissões iniciais (1867-1868) dos Estados da Igreja e um segundo conjunto já do Vaticano. Um reparo para os últimos 3 selos que têm como motivo pinturas de Sandro Botticelli.

Mulheres e Filosofia


O primeiro artigo do último TLS (nº 5859) aborda, a propósito da recensão de um livro (Women in Philosophy, de Katrina Hutchison e Fiona Jenkins), o facto singular de haver tão poucas mulheres filósofas. Cumulativamente, as mulheres a ensinar filosofia são também poucas na Europa. Entre 20 a 25%, em média. 
Ocorreu-me uma das razões, pouco fundamentada é certo, para este fenómeno: ser a Mulher pouco dada a especulações, e ser mais pragmática do que a maioria dos homens. Mas não estou seguro de ser a razão maior.
De alguma forma, o artigo de David Papineau vai nesse sentido. E estabelece, ironicamente, o paralelo com o facto de tão poucas mulheres se dedicarem a jogar bilhar. Citando, em abono desse facto, Steve Davis que não negava a habilidade das mulheres para jogos, mas que considerava que elas deviam achar que jogar bilhar era uma pura perda de tempo, sem qualquer utilidade...

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Na revista do jornal Expresso, a 11 de Julho de 2015


Deve haver muito poucas portuguesas (e portugueses) que justifiquem um epitáfio tão bonito como este, embora ditado, de forma desarmada, pelo coração. Mas amplamente merecido.

Citações CCXLVI


Na realidade, trabalha-se com poucas cores. O que dá a ilusão da sua variedade é saber colocá-las no seu lugar justo e certo.

Pablo Picasso (1881-1973), apud Paul Eluard, in Lumière et Morale.

Impromptu (17)


Lorca gostava de Gongora, em prejuízo de Quevedo. Pensando bem, talvez se justifique esse afecto literário, porque o poeta Federico não deixa de ser um barroco cultista que escrevia curto, em resumo lírico - mas que, às vezes, chegava ao derrame...
Todas as memórias físicas ou mentais guardam, umas e outras, preciosos documentos, valiosos para os seus detentores e para outros alguns, por sua temática própria, e porque são antigos na idade. Valem o que valem, consoante quem os vê.
Assim, pode ser que uma velha padaria desactivada, próxima do Palácio de Queluz, conserve ainda, no lambril interior da loja, velhos, azuis e bonitos azulejos oitocentistas. Poucos saberão, no entanto, que o alvará original está em nome de um francês, que foi o seu primeiro proprietário e artífice.
Ou que uma antiga e modesta estalagem, na margem do Ave, que abre sazonalmente, ostente, com galhardia, na sala de jantar e como ex-libris da casa, uma antológica garrafeira pequena, mas notabilíssima.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Das leituras e séries policiais


O Verão convida à leveza nas leituras. Imagine-se que, ontem, até comecei a ler um policial de Leslie Charteris ("O Santo recebe um SOS", nº 204 da Vampiro), que é um dos autores que menos admiro, no género. Dos meus Top5, Agatha Christie (1890-1976) não consta, mas ainda leio os seus livros com agrado. Sejam eles com a investigadora Miss Marple, com Tommy e Tuppence (Beresford) ou Poirot, que é o meu preferido. Há dias, porém, apanhei um filme, na televisão, baseado numa obra da escritora britânica, mas não o consegui ver até ao fim. Tinha um erro crasso de casting: quem fazia de Poirot era o canastrão do David Suchet que, além de ser mau actor, adopta um tom amaneirado, excessivo, de falar que eu não consigo suportar muito tempo. Para quem viu Hércules Poirot ser desempenhado por Peter Ustinov e Albert Finney, no mínimo o Suchet é uma pobre caricatura infeliz...

terça-feira, 21 de julho de 2015

Norman Janes


Não tenho muito a dizer sobre o inglês Norman Janes (1892-1980), pintor, gravador e ilustrador de livros, tal como a sua mulher, Barbara Greg, até porque mal lhe conheço a biografia. A sua aprendizagem artística foi entrecortada pela guerra. Sei que gostava da beira-mar, que é um tema recorrente em toda a sua obra. E que eu aprecio, particularmente.

A par e passo 142


Porque a Literatura não é, na verdade, senão uma especulação sobre certas propriedades da linguagem; daquelas propriedades que se encontram mais vivas e actuantes nos povos primitivos. Quanto mais a forma for bela, mais ela repercute as origens da consciência e da expressão; mais ela é sábia e mais ela se esforça por reencontrar por uma espécie de síntese, a plenitude, a indivisão da palavra ainda nova e no seu estado de criação. O ritmo, as diversas sonoridades bem coordenadas dos timbres e dos acentos, a abundância das imagens, a energia e a eficácia dos traços, das voltas e das figuras, - eis as características que não se encontram nem se podem procurar em mais lado nenhum, senão na poesia.

Paul Valéry, in Variété IV (pgs. 150/1).

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Comic Relief (111)


A princípio, fazer uma tese deve ser divertido. Depois, escrever uma tese é como cozinhar um porco: nada vai para desperdícios.

Umberto Eco (1932), in Come si fa una tesi di laurea (1977).

Curiosidades 46 : os cavalos na América


É dado adquirido, mas incorrecto, que os primeiros cavalos teriam surgido na América, com Cristovão Colombo, nos anos finais do século XV. Ora, pelo contrário, a raça equina teria tido origem, precisamente, na América, há 35 ou 36 milhões de anos atrás. Depois, pouco a pouco, e através do Estreito de Bering, chegaram à Ásia e, posteriormente, atingiram a Europa. Entretanto, há 7.600 anos, as mudanças climáticas, na América, com acentuado arrefecimento de temperaturas, transformaram o tipo de vegetação e contribuiram para a extinção dos cavalos no solo americano.Irão regressar, no entanto, em finais do século XV e inícios do XVI, através das expedições de Colombo, Cortez e dos portugueses, sobretudo, no Brasil.
A sua proliferação é intensa, rápida e progressiva. A utilização dos cavalos nos trabalhos agrícolas, como meio de transporte e até nas batalhas, passa a ser constante. A sua posse era um sinal de riqueza e uma mais valia para os seus donos. Mas também os nativos (Índios) os cobiçavam e adquiriam, retomando as competências no seu uso, que os seus antepassados possuíam, naturalmente. A habilidade e destreza dos nativos americanos é amplamente visível na imagem produzida pelo pintor francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), que encima este poste. O artista passou 15 anos no Brasil, e veio a publicar (1834-1839), em França, uma obra, amplamente ilustrada, que intitulou "Viagem Pitoresca ao Brasil".
A pintura é referida como "A carga de cavalaria dos Guaicuru", e a batalha representada terá ocorrido na primeira metade do século XVII, entre portugueses e nativos brasileiros dessa etnia.

domingo, 19 de julho de 2015

Manhã de domingo, com Maigret


A duas ou três páginas do fim da leitura do livro de Simenon, na varanda a leste, uma das minhas três rolas, vizinhas e outrabandistas, descreve um voo elegante, helicoidal, até pousar na antena de televisão mais alta das redondezas. Lá terá ficado uns bons cinco minutos. O calor, entretanto, ia subindo na manhã.
É um medo misterioso, o do título do romance de Simenon, que Maigret confessa, por mais de uma vez, mas que nunca chega a adjectivar. Não é físico, mais parece abstracto. Vago. Mas chega para pairar sobre essa manhã, passada na província, depois do acordar tranquilo, quase onírico, de Maigret:

"Ao tomar consciência de que era domingo, pôs-se a preguiçar. Já antes jogara a uma brincadeira secreta de infância. Ainda lhe acontecia jogá-la, deitado ao lado da mulher, tomando cuidado para nada deixar transparecer. E ela deixava-se enganar e perguntava, ao trazer-lhe o café:
- Com que é que sonhavas?
- Porquê?
- Sorrias como um anjo.
Nessa manhã, em Fontenay, antes de abrir os olhos, sentiu um raio de sol que lhe atravessava as pálpebras.
Entregou-se à sensação. Tinha a impressão de o ver através da fina pele que o picava e, indubitavelmente por causa do sangue que nele circulava, era um sol mais vermelho que o do céu, glorioso, como o que paira sobre as imagens.
Podia criar um mundo inteiro com este sol, milhares de faíscas, vulcões, cascatas de ouro fundido. Bastava-lhe mexer levemente as pálpebras como num caleidoscópio, sevindo-se das pestanas como grade.
Ouviu os pombos que arrulhavam num beiral por cima da sua janela, em seguida dois sinos soaram em dois lugares ao mesmo tempo e imaginou os campanários erguidos na direcção do céu azul. ..."

Mercearias Finas 103


É um vinho tinto perigoso, na sua blandícia e sedução. Veludo mavioso, perfume singular mas discreto, sabor que aplaca qualquer cólera interior ou discordância. Femininino pela sua natureza sem arestas, apesar dos 15º...
Venho falando do Madrugada, colheita seleccionada de 2009, cujas cepas (Aragonês maioritária, Syrah, Alicante Bouschet e Cabernet Sauvignon), ainda novas, frutificam ali para as bandas de Arraiolos, na Quinta do Carvalho.
O tinto foi sacrificado a uma Favada, bem guarnecida, repescada do congelador, acertadamente, neste dia de temperaturas amenas, por entre a canícula de Junho e a que se há-de seguir. Era a altura certa e propícia ao prato rijo e invernoso.
O final do Madrugada banhou ainda uns restos de Emental e Fratel, à sobremesa, na sóbria companhia de umas água-e-sal, que dão pelo nome de "Marinheiras" (recomendo!), produzidas em Samora Correia. Grandinhas e estaladiças.

Desabafo (4), ou os ódios de estimação


O André Rieu (1949), visto de trás, parece a Maria Antonieta (1755-1793), rainha de França.
Pena que não lhe cortem a cabeça, também. Ou, pelo menos, o cabelo.

Quintilha de um longo poema de James Clive (1939), em versão portuguesa


O jardim da minha filha tem um lago de peixes dourados
cada um como se fora um dedo pequeno, assim, o mínimo,
e eu paro e fico a vê-los seguindo a sua regra justa
de nunca se tocarem por engano, nunca errando:
suas trajectórias tão perfeitas, como deve ser uma canção.


Clive James, in Sentenced to Life (TLS, 2/5/2014).

Ditados, Pesca e sardinha


Terá tido pouca expressão pública de desagravo, tirando os sindicatos dos sectores de pesca e conserveiro, a notícia-ordem de Bruxelas que atribui, para 2016, uma quota de pesca máxima de 1.587 toneladas de sardinha, para Portugal. No corrente ano de 2015, lembremos, o permitido é 15.000 toneladas. Recordemos também que a indústria conserveira (embora muito menor do que há 30 ou 40 anos) recorre, maioritariamente nos nossos dias, a importações de sardinha de Marrocos e de França, para poder laborar, de forma satisfatória. Importa também lembrar que a entrada na CEE obrigou Portugal a uma redução de 1/3 na sua frota pesqueira. A partida para a Terra Nova, dos bacalhoeiros, depois da bênção cardinalícia, é uma imagem delida no tempo. Só talvez os mais velhos se lembrem ainda disso... Fazia nessa altura algum sentido, no dizer do povo, o ditado:
Em Portugal entra a fome nadando.
Hoje, seria mais acertado e actualizado dizer-se: Por Bruxelas entra a fome em Portugal.
E andam os nossos governantes a encher a boca de mar, apontando-o como destino e oportunidade! São uns cómicos, esses rapazes...

Regionalismos transmontanos 87


1. Zanzino - o mesmo que moscardo.
2. Zarba - mata de arbustos, sebe.
3. Zavaneira - boa dona de casa, muito diligente.
4. Zavar - morder raivosamente.
5. Zichar - sair à pressão (líquidos), sair em borbotões (a água), esguichar.
6. Zíngaro - cogumelo.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Apontamento 73: "Uma crítica da linguagem"



Falando, como sempre, com conhecimento de causa e propriedade intelectual, cultural e, sobretudo, linguística e literária, António Guerreiro debruça-se, na sua última intervenção cívica, sobre o jornalismo.

O seu texto coincidiu com alguns excertos de – bom e mau – jornalismo que andei a coleccionar ao longo do dia. De forma tranquila, li e guardei, para memória futura, uma parte de um texto de Viriato Soromenho Marques, no DN de hoje, autor que, como sempre, se destaca pela capacidade de se centrar na essência e numa propriedade linguística já fora do comum:

1 – “Mas, rompendo o véu obscuro da novilíngua do Eurogrupo, se a "confiança" (leia-se, submissão) não for demonstrada, o "acordo" (leia-se: ultimato) falhará. Nessa altura, talvez a Grécia seja arrastada para fora da zona euro numa explosão de desordem e violência social. Com isso, a zona euro entrará na lista infame dos crimes contra a humanidade.”

Viriato Soromenho Marques, DN, 17.7.2015

O mau jornalismo, ou seja, aquele em que “a crítica da linguagem” se encontra perfeitamente ausente, revelando uma transmissão “acrítica” de aberrações constitucionais, sociais e pragmáticas:

2 - «As Finanças reforçam que “o novo regime de deduções baseia-se no sistema e-fatura e nas novas tecnologias, o que garante um regime simples e sem burocracia ou papéis, em que as despesas reais de cada família são registadas de forma automática e eletrónica no Portal das Finanças. O regime permite também, pela primeira vez, que os contribuintes consultem as despesas que realizam ao longo do ano e acompanhem em tempo real a evolução da respetiva dedução no IRS, e permite ainda que a administração fiscal possa pré-preencher totalmente a declaração de IRS e, dessa forma, simplificar e facilitar a vida a milhões de famílias portuguesas”».

Ana Sofia Santos, Expresso, 17.7.2015

Ora, para a jornalista do Expresso, à semelhança do Senhor Provedor de Justiça, não existe nenhuma “falha de ordem Constitucional relativamente  a conceitos de igualdade de direitos dos cidadãos”, quando se institui, como obrigatório, um regime de deduções no IRS baseada numa plataforma electrónica.

A excelência de um “regime simples e sem burocracia ou papéis” não será para os “info-excluídos” – voluntários ou obrigatórios – sem nenhuma hipótese alternativa. Aliás, a senhora jornalista nem sequer chega a avaliar questões de essência.

Na sua promoção dos “superiores serviços da AT” nem sequer consegue explicar a “retroactividade de despesas de saúde” que, passados 6 meses, obrigam a juntar uma receita médica para uma compra simples de um BEN-U-RON.

Resta acrescentar, como proposta para o Senhor PM apresentar na próxima reunião de líderes, voltando a brilhar com as suas prestações de excelência, que a Alemanha siga o exemplo português. Sucede que as farmácias na Alemanha nem recibo passam ou entregam !

Post de HMJ

Citações CCXLV


... Por fim, para desenvolver o nosso potencial filosófico, é preciso aprender a duvidar das nossas convicções. Por entre as ideias que nos são mais afeiçoadas, é interessante tentar compreender como é que elas se desenvolveram no nosso espírito. Este exercício é tipicamente socrático e parece-me de grande utilidade. Se a ideia não foi registada de um modo passivo, é importante reconstruir a sua história... Quem vos falou nisso? Onde é que a ouvimos? Onde é que a lemos? Reconstituir o caminho de uma ideia, é ter consciência de que a maior parte delas (ideias) têm percursos caóticos que importa solidificar. E é, ao mesmo tempo, um convite para não nos alistarmos de maneira excessivamente rápida na defesa de uma convicção contra outra convicção.

Alain Badiou (1937), em entrevista a L'Obs. (nº 2645).

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Ideia(s) fixa(s) 2


É minha convicção profunda que uma parte dos agentes de Justiça, portugueses, estão apostados numa vertiginosa escalada justicialista, estrategicamente baseada mais no aparato mediático do que em resultados concretos, úteis e objectivos da sua actividade. De há uns anos a esta parte, sobretudo.
No sentido de reabilitar a sua imagem muito degradada, aos olhos da opinião pública mais atenta e consciente, mas também num esforço estratégico e corporativo de garantir os seus privilégios e manter a sua imunidade perante os outros poderes da República. 

Retro (75)


Sem mãos... e sem pés.

Dos jornais


Caridade, ou uma nova sucursal do Banco Alimentar contra a Fome?

Quadra popular (ingénua) açoreana


Que as baleias não são peixe,
como as abróteas, taínhas,
pergunta aos sábios porquê?
Porque todas têm maminhas.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Asseio e manutenção


Quer em Frankfurt, quer em Washington, há gente asseada. Simultaneamente, neste mês de Julho, os responsáveis do BCE decidiram desmontar as estrelas douradas da UE ( não confundir com o Estrela Dourada, grego) para lhes dar lustro, e os norte-americanos resolveram lavar a cara ao Abraham, no seu Lincoln Memorial, em Washington. Como dizia, alguém que eu conheci, já falecido, para rematar qualquer conversa sobre higiene, que exclamava: "A limpeza, sempre Deus a amou!"
Se é certo que, após muitas leituras que fiz da Bíblia, nunca encontrei esta frase, também é certo que nunca mais a esqueci...