sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Mercearias Finas 91


Trinco a primeira broa castelar deste ano e vêm-me à memória as latas de cinco quilos com massa de batata doce que, modernamente, são usadas na sua manufactura industrial. O sabor da erva-doce, fundamental, tal como nas castanhas cozidas, surge também, feminino e tenro. As associações chegam, ainda que palidamente, até ao anis, de que me despedi, em definitivo, há muitos anos atrás, uma noite de Verão, em Santiago de Compostela. Os 50% do arábica e outro tanto de robusta, do café, combinam-se na boca com a macieza tenra das broas castelar.
Já me cheira a Natal...

Um poema de Drummond, pelo seu aniversário


Higiene Corporal

Junto à latrina, o caixote
de panos de limpar cu
de menino.
Sá Maria é quem limpa o cu
e lava o pano.

Cresce o menino.
Assume a responsabilidade
de limpar seu próprio cu
com pedaços de jornal.
Sá Maria é chamada a outros deveres.


Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), in Boitempo (1968).

Em prol do ar livre e do bom tempo - Rão Kyao


quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Brasiliana


Nascido, ao que parece, no Uruguai, o brasileiro Apparício Fernando Bunkerhoff Torelly (1895-1971), não sendo de sangue azul, adoptou o nome de guerra de Barão do Itararé, por ornamento e alcunha.
Com grande sentido de humor, na sua profissão principal de jornalista, era também um grande repentista. São dele, entre muitas outras, as tiradas que se seguem:

- A criança diz o que faz, o velho diz o que fez e o idiota o que vai fazer.
- O fígado faz muito mal à bebida.
- O tambor faz muito barulho, mas é vazio por dentro.
- O trabalho nobilita o homem, mas depois que o homem se torna nobre, não quer mais trabalhar.
- Em todas as famílias há sempre um imbecil. É horrível, portanto, a situação do filho único.
- Devo tanto que se eu chamar alguém de "meu bem", o banco toma.


Apontamento 57: Barroso ?



Com esta interrogação se apresenta, na estação de televisão alemã ARD, o balanço sobre os 10 anos do "Zé Manel" em Bruxelas. A notícia sublinha, ainda, que o presidente cessante pouco terá para apresentar no final de dois mandatos, uma vez que não é considerado o "homem do leme" que a Europa precisava em tempos de mudança. Quanto aos cidadãos europeus, fora os portugueses, poucos sabem quem ele é.

Fica este apontamento antes que comecem, por cá e por alguns falhos de memória, as loas carregadas de branqueamentos, pessoais e políticos.

A este propósito recomendo uma máxima do meu dentista: "Olhe, os branqueadores devem ser usados com parcimónia!"

Post de HMJ


Marcadores 24


O marcador de livros e o postal alusivo destinam-se a publicitar a Feira do Livro Antigo, que decorrerá em Madrid, de 27 a 30 de Novembro de 2014.

Amor com amor se paga...

Com os melhores agradecimentos a AVP.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Os apontamentos de Conan Doyle


No ano anterior à publicação de "A Study in Scarlet" (1887) e antes de iniciar a escrita do romance policial que viria a dar origem à saga das aventuras de Sherlock Holmes, Arthur Conan Doyle (1859-1930) anotou alguns elementos para a caracterização do famoso detective.
O nome inicial do investigador britânico era Sherrinford Holmes, que coleccionava violinos raros... São estes apontamentos manuscritos, de Conan Doyle, que se podem ver na exposição do Museum of London, até Abril de 2015, segundo informação do TLS.


Edward Elgar : "Nimrod"

Ainda Fellini


É sempre necessário um pretexto para partir em viagem. Da mesma forma que é preciso um pretexto para começar um filme. Um criador precisa sempre de pretextos. Devia ser obrigatório, para os criadores, criarem. Era excelente existir um organismo do Estado que obrigasse os artistas a trabalharem de manhã à noite, sem parar.

Federico Fellini (1920-1993).

Adagiário CXCII


Dinheiro da onzena, com seu dono come à mesa.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Para passar o tempo


À falta de melhor, às 22h00, sintonizarei a Sic-Notícias, para ouvir algumas das nossas habituais sumidades discretearem sobre as virtudes e defeitos do Orçamento de Estado para 2015. Lá estarão, para o debate, João Salgueiro, Octávio Teixeira e outros. Só não percebi porque não convidaram também a alquebrada e sage economista Teodora Cardoso. Mistérios...
Suprema ironia: a troca de ideias terá lugar nas instalações da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, à rua da Escola Politécnica. Terá sido num assomo de Humanidades (não esquecer Sampaio: "há mais vida, para além do défice"), ou foi para ter o Diário da República mais à mão? Mais um mistério. Se calhar  foi o novel comissário europeu Tostões que sugeriu o local...

Do Titanic Song Book : "Smoky Mokes"


A par e passo 112


O espírito aborrece os agrupamentos; ele não gosta dos partidos; sente-se diminuído pela concordância dos espíritos: parece-lhe, pelo contrário, que ganha qualquer coisa no seu desacordo com eles. Um homem que tem necessidade de pensar como os seus semelhantes tem talvez menos espírito do que aquele a quem repugna a conformidade.Além disso, sabe-se que todo o acordo é instável. Sabe-se que a divisão atinge todos os grupos: o cisma, a objecção, a distinção, são para o espírito um sintoma de vitalidade que nunca tarda a produzir-se após um acordo alcançado. O espírito retoma assim a sua primitiva liberdade; ele levanta-se contra todos os factos, contra a evidência; ele é por excelência o rebelde, mesmo quando ordena. E isto porque concebe, primeiramente, que aquilo que é como uma desordem que é preciso que acabe. Mas, no mundo actual, não é necessário empregar grandes esforços para encontrar onde usar o seu instinto construtivo. O teatro político fornece-lhe temas infinitos.

Paul Valéry, in Variété III (pg. 214).

Citações CCIII


Nesta arte (Cinema), não amadurecemos, mas apodrecemos directamente.

Isabelle Adjani (1955).

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Tempo


É talvez um dos conceitos filosóficos mais difíceis de definir, nas suas múltiplas vertentes, o tempo.
Pensar que ocupei, na minha vida, 25.721 dias, 3.674 semanas, 845 meses e um dia, parece-me quase ficção-científica e é absolutamente impossível de resumir. Os números acabam por triunfar no abstracto. E a soma concreta parece uma ninharia. No que se aprendeu. No que se leva.

Um portuense que dá sempre gosto ouvir...


Curiosidades 32


Não sei se a Universidade de Trás-os-Montes, vocacionada para o efeito, também se dedica a estas experiências. Mas com o desinvestimento na Investigação, destes últimos anos, é bem provável que não. Mas apraz-me registar a criação de 6 novas castas de uvas, levada a efeito pela Universidade de Friburgo (Alemanha). Com base nas tradicionais e conhecidas Merlot, Cabernet, Riesling e Sauvignon, estas novas castas de uvas são mais resistentes. Aqui se referem os seus nomes: Souvignier gris, Bronner, Cabernet Carbon, Merzling, Cabernet Cantor e Helios.

Escrever - alguns conceitos (maioritariamente, gauleses)


- É necessário escrever o mais possível como se fala, e não falar demasiado como se escreve.
Saint Beuve (1804-1869).

- Escrever, é uma forma de falar sem ser interrompido.
Jules Renard (1864-1910).

- Os optimistas escrevem mal.
Paul Valéry (1871-1945).

- É preciso escrever para si próprio, porque é assim que chegamos até aos outros.
Eugène Ionesco (1909-1994).

- O apetite de escrever traz em si uma recusa de viver.
Jean-Paul Sartre (1905-1980).

Cioran, a propósito da I G. G.


29 de Dezembro (1969)  Ouvida esta manhã uma discussão entre velhos generais e alguns historiadores não menos velhos, sobre a guerra de 14, - que nela punham uma paixão tão acalorada como se a guerra tivesse acabado há pouco.

A vida é o porvir; tudo o que regressa do passado parece arbitrário (?), estúpido, e totalmente vão. Lembrarmo-nos em plena angústia daquilo que receamos não terá a mesma realidade nem nenhum sentido, um dia, porque o passado está sempre à espreita por trás daquilo que acontece, e é por isso que o passado acaba por ser pior do que a morte.

E. M. Cioran, in Cahiers - 1957/1972 (pgs,778/9).

domingo, 26 de outubro de 2014

Ter mais olhos que barriga...


Alguém, português e guloso, mas com certeza excessivamente frenético, pediu, ganancioso ao Google, há cerca de meia hora, os 50 últimos postes do Arpose. E, depois, gastou uns enormes 42 segundos a vê-los.
Melhor do que isto só o simpático Speedy Gonzales, ou alguns coelhos, no acto de procriação...

Michael Praetorius (1571-1621)


Regionalismos transmontanos (59)


1. Pachancas - molengão, vagaroso.
2. Pachouchice - o m. q. pachochada, tolice, disparate, parvoíce.
3. Palonzano - pateta, bronco, bruto, lapuz.
4. Pandorrilha - pessoa mentirosa e presumida. Pessoa de pouco préstimo.
5. Pangaio - chico esperto, malandro. Peralta.
6. Pantomineiro - intrujão, embusteiro. Galhofeiro, divertido.

sábado, 25 de outubro de 2014

Lembrete 23


Esta madrugada!

Divagações 75


O romancista norte-americano Stephen Crane (1871-1900) que, no fervor da criação literária costumava embrulhar a cabeça com uma toalha húmida, justificava-se dizendo que era "para arrefecer a maquinaria". O autor de The red badge of courage (1895) preocupava-se, e muito, com a qualidade da sua obra. E exercia, sobre ela, uma permanente auto-crítica.
Com alguma frequência, temos a tentação de atribuirmos à nossa própria vida tons de fantástico e extraordinário, como se de uma saga se tratasse; quando não lhe atribuímos, empolgados, qualidades de uma epopeia, por pequenos factos acontecidos, no fundo, bem comezinhos...
Quando usamos o plural, e ainda que não demos conta, estamos, muitas vezes, a generalizar excessivamente. Obrigando os outros, pela força narrativa e egocêntrica, a acompanhar-nos, sem lhes darmos o direito natural de qualquer outra opção, ou de poderem desertar e sair desse passado ou dessa história, que é, fundalmente, nossa. A menos que esse plural seja o majestático e, aí, devemos ser ainda mais cautamente parcimoniosos, no seu uso, por modéstia, dimensão e realismo objectivo e prático.
(Repare-se na utilização do plural, primeira pessoa, no segundo e terceiro parágrafos...)

Eugénio por Eugénio : "Os trabalhos da mão"


Revivalismo Ligeiro C


Para MR, cujos "Os Meus Franceses", de Julien Clerc (nº 53, 172, 237), creio não conterem ainda a canção "Ce n'est rien", de 1971. E em compensação e desafronta de Fellini...

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Novo grafismo, diminutivo antigo


Saúde-se a ligeira mudança, que não me parece que altere, substancialmente, o que tem sido o conteúdo, nos dois ou três últimos anos, e a marca mais visível de Le Nouvel Observateur. A grande entrevista e foto de capa até fazem esquecer o editorial de boas intenções do veterano Jean Daniel...

Comic Relief (97) : enológico


Legendas, em tradução muito despreocupada e livre:
 1. Diz-se que beber leite nos fortalece./ Beba 5 copos de leite e tente fazer mover uma parede. /Não pode?/ Agora, beba 5 copos de vinho./ A parede move-se por si!
2. O álcool não é solução, apenas faz esquecer a questão.

com agradecimentos cordiais a C. S..

Perplexidades menores


Que me fará iniciar, hoje, o terceiro poste sobre Patrick Modiano (1945), Nobel de Literatura 2014, francês, mas de que nunca li nenhum livro, até agora?
A sua prestação em vídeo-entrevistas (Youtube) é canhestra, titubeia interminavelmente nas respostas, parece ter um pensamento errático e desarrumado, faz grandes gestos desacompanhados, abusa frequentemente de jargões: evidemment, é um deles...
E o mais estranho é que, nem os dois últimos Le Monde des Livres, nem os 2 mais recentes "Obs." disseram o que quer que fosse sobre ele, ou sobre a sua obra. Terá Modiano má imprensa? É bem possível...
Mas estas misteriosas omissões insólitas e curiosas seriam comparáveis, por exemplo, a que, aquando da atribuição do Nobel a José Saramago, nem o JL, nem a revista Ler, nem o Atual (Expresso), nem sequer a ípsilon (do jornal Público) falassem dele.
Talvez Modiano seja apenas aquilo que os franceses disseram de Hollande: "É um homem normal." No caso concreto: é um escritor normal (banal?). Ou terão vergonha de falar sobre ele?

Federico Fellini / Nino Rota

Fellini sobre Paris


Paris tem, sobre mim, o efeito de um cenário de teatro. Tudo já foi cantado, enquadrado, seleccionado, apresentado.
Acho que certos monumentos de Paris têm um carácter bastante fúnebre. Para o meu filme Os Palhaços (que descreve a morte dos palhaços) eu tinha necessidade de um ambiente funéreo. Pensei que a Gare d'Orsay, o gradeamento da entrada do Parque Monceau, a Ponte Alexandre III, uma esquina da rua Turbigo se adaptavam bem ao meu propósito. Eu imagino esses lugares desertos ou simplesmente povoados por alguns porteiros rabugentos.
Eu não poderia habitar nem o Quartier Latin nem o Marais, demasiado pitorescos. Se fosse obrigado a viver em Paris, gostaria de ter uma casa sobre Pond-Point dos Campos Elíseos: lá, pelo menos, estaria ao abrigo do folclore.

Federico Fellini (1920-1993).

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Suprema hipocrisia


A notícia vem no Süddeutsche Zeitung. A empresa norte-americana Reynold, fabricante da bem conhecida marca de cigarros Camel, proibe os seus funcionários de fumar, nas suas pausas de trabalho. O sempre contraditório moralismo americano...

Pomar - Exposição


Na Galeria do Millenium-BCP, à rua do Ouro (Lx.), está patente, até 6/1/2015, uma exposição de várias pinturas e desenhos de Júlio Pomar (1926). Cerca de 25 anos da obra do Pintor estão representados, através duma escolha criteriosa de entre a colecção do Banco. De Le Bain Turc (d'aprés Ingres), de 1968, até Santo António a pregar aos peixes, de 1984-85, passando por Tigre (1980), esta mostra bem merece uma visita.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Citações CCII


O inconsciente está estruturado como uma linguagem.

Jacques Lacan (1901-1981).

Osmose (50)


"Quando aqui chego", disse-me ele, "azul em frente, verde e azul à esquerda, sinto-me em férias, à beira-mar. Retouço, adorno, relaxo, hibernante como um camaleão, na mata de Monte Gordo. Quase feliz, na suprema glória da sonolência animal..."
(Em abono da verdade, este meu amigo, pelo lado materno, descende de um poeta algarvio, que teve algum nome, na sua época. Sonetava, prolixo, mas hoje quase ninguém o conhece.)
Depois, perguntou-me, num sorriso benevolente e superior:
"Sabes o que é um rascasso?"
Eu não sabia, mas a caldeirada estava excelente, e muito bem apaladada.


terça-feira, 21 de outubro de 2014

Música e Poesia LIX : Serrat


Memória (95)


Se não for por mais, o fotógrafo suiço René Burri (1933-2014) será lembrado por um dos mais icónicos retratos de Che Guevara. Mas também pelas excelentes fotografias, que retratam o post-guerra alemão, e que serão objecto de uma exposição em Hamburgo, a inaugurar ainda esta semana.
Foi aqui lembrado, a 11/7/14, na rubrica própria. Faleceu ontem, com 81 anos.

Formulários, ou vade-mécum para comentários


Houve um tempo em que os CTT forneciam uma espécie de formulários (não sei se, hoje, ainda existem) de frases feitas, para telegramas. Destinado a pessoas menos inspiradas ou que tinham dificuldade na síntese de mensagens a enviar. Até porque uma boa parte dos telegramas se resumia a situações estereotipadas: enviar parabéns, mandar pêsames, desejar felicidades, anunciar partidas ou chegadas, remeter Boas-Festas...
Se repararmos, hoje, grande parte dos comentários, nos blogues por esse mundo fora, obedecem, também, a frases feitas, normalmente, pouco originais e, quase sempre, repetitivas. Não estou com isto a dizer que me exclua, eu próprio, deste pecado. Aqui vai, por isso, um vade-mécum colhido em alguns blogues, e por ordem alfabética, dos comentários mais habituais:
- Adorei!
- A fotografia é linda.
- Belíssima pintura.
- Fantástico!
- Gostei imenso.
- Grato pela partilha.
- Magnífica postagem!
- Muito bom, gostei.
- Muito bonito.
- Muito giros.
- Uma maravilha!
- Yes...yes..:-)).

P. S.: o beijinho (ou: beijinhos) entre senhoras, no fim do comentário, é fundamental.

A par e passo 111


Já repararam alguma vez que todas as nossas invenções se orientam seja no sentido da poupança das nossas forças, seja para a poupança das repetições (como já tive ocasião de referir); seja ainda no sentido de conduzir o nosso corpo para longe dos seus estados naturais, por exemplo, tentando imprimir-lhe velocidades cuja ordem de grandeza se tenta aproximar sempre mais da velocidade da percepção e da concepção do espírito?
Dizia-se muitas vezes, outrora: "Tão rápido como o pensamento." (...) O pensamento parece pois obstinar-se em encontrar um meio de mover as coisas tão depressa quanto ele mesmo. Aí está bem evidenciada uma influência das propriedades ou dos caracteres funcionais do espírito sobre a orientação das invenções.

Paul Valéry, in Variété III (pg. 213).

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Turner final



Até 25 de Janeiro, do próximo ano, estará patente na Tate uma exposição intitulada Late Turner, composta por cerca de 200 obras da última fase do grande pintor inglês. Nestes quadros, é notória a premonição do impressionismo que, décadas mais tarde, faria a sua aparição em França.
Os densos tons escuros, bem como as vaporosas manhãs luminosas não excluem, porém, pequenos sinais e minúsculos detalhes realistas que só uma atenção concentrada permite vislumbrar. Como, por exemplo, a pequena lebre ou coelho bravo do famoso quadro "Rain, Steam and Speed - The Great Western Railway", de 1844, ou o ínfimo molusco (lapa?) que aparece próximo da figura de Napoleão, na tela "War - The Exile and the rock limpet", de 1842.
As fantasmáticas atmosferas da pintura de William Turner (1775-1851) ancoram-se ou resultam, quase sempre e no entanto, de uma grande preocupação pelo real e pelo seu tempo. O primeiro dos quadros referidos acima, provavelmente, terá sido provocado pelas impressões retidas, pelo Pintor, sobre o comboio e o grave acidente ferroviário, ocorrido 3 anos antes (1841), na véspera do Natal, próximo da ponte de Maidenhead, em que as carruagens abertas descarrilaram, provocando 9 mortos e 16 passageiros irremediavelmente desfigurados.
Sinal evidente da revolução industrial inglesa, esta tela ("Rain, Steam and Speed...") será das primeiras, na pintura europeia, a retratar o recente transporte ferroviário.

P. S.: aconselho vivamente a audição e visão, no Youtube, do vídeo "Turner, Rain, Steam and Speed - The Great Western Railway, 1844", com diálogo esclarecedor, pormenorizado (4m. e 26s.), sobre esta obra de William Turner.

domingo, 19 de outubro de 2014

Notas de Leitura VIII: "Un été avec Montaigne" - Antoine Compagnon




“As pessoas estariam estendidas na praia ou então saboreando um aperitivo, preparando-se para almoçar e ouviriam falar de Montaigne [1533-1592] na rádio”. Esta a proposta de Phillipe Val que Antoine Compagnon aceitou: quarenta palestras radiofónicas, transmitidas semanalmente na estação France Inter, no Verão de 2012, que estão na origem de Un été avec Montaigne, um livro de 170 páginas, com um grafismo de capa provocatoriamente estival e que, segundo refere o Nouvel Observateur, em Abril de 2014, já vendera 150 000 exemplares.

Questionado sobre o êxito, porventura, inesperado do livro, Antoine Compagnon sublinhou, nestes termos, a hipótese de uma afinidade entre a sensibilidade histórica contemporânea e a da segunda metade do século XVI: “Tal como nós Montaigne está preso a uma contradição, ele já não acredita na infalibilidade das tradições, mas duvida da possibilidade de melhorar a condição humana. Se a modernidade se define pela crença no progresso, Montaigne o pré-moderno e nós os pós-modernos temos em comum o facto de não partilharmos dessa crença”.

A resposta de Compagnon traduz, afinal, o conhecimento de quem tendo dialogado com o pensamento de Montaigne nele reconhece essoutra dimensão do ócio, o momento em que Michel Eyquem se apropriou da sua liberdade e nos tornou testemunhas disso, o momento em que ao “recitar” o seu próprio retrato nos dá a ver os contornos da condição humana, promovendo a remédio para a angústia e para a preguiça a tarefa de conhecer-se.

Grosso de corpo, embora fino de espírito, indolente mas ávido de acção e de liberdade, arguto, embora um tanto permeável à sedução do inverosímil. Todavia, no todo, um carácter bem temperado do sentido da medida e do sol da amizade: um homem que sofreu estoicamente as dores dos seus cálculos renais, que desprezava a mentira e os tiranos, que não suportava a ideia da tortura, mas que soube integrar, com notável talento retórico, a inevitabilidade da morte nas disposições imprescritíveis da natureza.


Este o perfil do Senhor de Montaigne, filósofo acidental, que o livro de Antoine Compagnon vai deduzindo da leitura dos Essais e, sobretudo, resgatando ao oceano das interpretações eruditas que lhe foram descarnando o pensamento: “Uma imagem diz da sua relação com o mundo: a da equitação, do cavalo sobre o qual o cavaleiro mantém o seu equilíbrio, o seu assento precário. Assento esta a palavra dita. O mundo move-se, eu movo-me: sou eu que tenho de encontrar o meu assento no mundo”.

Dir-se-ia, então, que o pensamento de Montaigne se estrutura não em torno da ideia do que somos mas em torno de ideia do que vamos sendo no assento precário da vida, uma espécie de sublime aditamento àquilo em que nos vamos tornando, já que a nossa visão do mundo se vai alterando, se vai aditando, em função do tempo, do lugar e da acuidade do olhar, que é simultaneamente subtileza e detalhe, largura e perspectiva, pois a imagem do homem, a imagem do ser, enquanto “ponto-fixo” é apenas um arquétipo de que sucessivas e esforçadas investidas se aproximam mas não alcançam.


Por isso, os Essais de Montaigne fundamentam um outro olhar sobre a realidade ou, se quisermos, sobre a dependência do homem de carne e osso da sua própria circunstância, que se traduz ora pelo absurdo, ora pelo derrisório, ora pela enorme fragilidade das suas tranquilas e inquestionadas certezas.

Das três respostas que os índios do Brasil, apresentados em Rouen, em 1562, à curiosidade do rei Carlos IX, então com doze anos de idade, deram, perante a Corte, quando questionados sobre o que de mais admirável teriam visto no Velho Mundo do século XVI, diz-nos Montaigne ter retido apenas duas, lamentando ter-se esquecido da terceira.

A primeira das respostas daqueles ilustres “selvagens” sublinhava a estranheza de tantos grandes homens, barbados e armados, que rodeavam o rei menino, se sujeitarem a obedecer a uma criança em vez de escolherem, de entre eles, um para os comandar.

A segunda das observações relatadas por Montaigne relacionava-se com o facto, para eles escandaloso, de uns homens viverem cheios de fartura e rodeados de conforto, enquanto outros, seus semelhantes, mendigarem à sua porta cheios de fome e de pobreza e de, apesar disso, esses injustiçados, não lhes apertarem o pescoço nem lhes incendiarem as casas.

Quanto à terceira das respostas daquelas perspicazes criaturas, a tal que Montaigne lamenta ter esquecido, Antoine Compagnon que, por assim dizer, também ensaia na margem dos Essais, coloca a hipótese dessa suposta resposta se relacionar com um aspecto sobre o qual Montaigne nunca arriscou pronunciar-se: a transubstanciação, ou seja, sobre a mudança da substância do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo, no momento da consagração e a sua presença real na eucaristia; diferendo maior entre católicos e protestantes, pretexto e motivo das guerras de religião, no meio das quais o tempo e a circunstância o fizeram viver.

Deste modo, através de uma estratégia que as Lettres Persanes, de Montesquieu, tornarão familiar, mais de um século depois, Michel de Montaigne sublinha o valor da liberdade, perante o absurdo da servidão voluntária, ancorada na irracionalidade do direito divino, o escândalo da pobreza e da desigualdade entre os homens e, considerando a hipótese de Antoine Compagnon sobre a resposta que Montaigne diz ter esquecido – embora subtil e perspicazmente tenha considerado que “somos cristãos do mesmo modo que somos do Périgord ou alemães” e que “apenas a fé incendeia vivamente as certezas dos grandes mistérios da nossa religião” – a crítica ao carácter fratricida dos fundamentalismos da fé.

Eis-nos, portanto, perante as linhas-mestras do pensamento de Montaigne, perante as raízes do seu cepticismo, que a razão acrescenta e o talento desdobra em múltiplas perspectivas, pois o pensamento de Michel Eyquem não aspira a constituir-se como uma visão unitária do mundo e dos homens mas, pelo contrário, a sublinhar na diversidade dos detalhes o seu carácter indeterminável, contraditório e fragmentário, que só através da viagem e do olhar (desde o assento instável da sua sela, num exercício continuado do prazer de cavalgar), da leitura e da meditação, se compreendem e de facto se humanizam.


Avulta, pois, neste retrato renovado e, porventura, renovador de Montaigne, que Antoine Compagnon nos oferece, a sua admirável fábrica de pensar, o seu processo sui generis que, partindo da glosa crítica do pensamento alheio o incorpora, se robustece no detalhe e vai construindo, como quem viaja, em torno de si, de dentro para fora, uma análise metódica mas assistemática da sua própria natureza; um pensamento quase nómada que se toma a si próprio como matriz e como roteiro daquilo que de indeciso e de contraditório existe na natureza humana. Um pensamento livre, um rasgo de serenidade, como se, despido o aparato da teologia, a verdade sorrisse e alcançasse a simplicidade de um saber profundo: “É uma absoluta perfeição, e como que divina, o saber fruir lealmente do seu ser […]. As mais belas vidas são em meu entender, aquelas que se conformam com ordem ao modelo comum e humano; mas sem milagre, mas sem extravagância”.

 Assim, o fio de cepticismo que atravessa os Essais é, na perspectiva de Antoine Compagnon, a chave que faz de Michel Eyquem um quase contemporâneo: tal como nós também Montaigne viveu um tempo de interregno das certezas e de remissão da verdade e a sua lição estará, porventura, no modo como soube transformar em argumento o ornamento da dúvida, como soube trocar as voltas ao domicílio da angústia e reencontrar os limites do humano, arredando o talvez grande medo da morte com uma singular afirmação dos fundamentos da vida: “Quero […] que a morte me encontre a plantar as minhas couves”. Um epicurista quase tranquilo – diríamos – que pedagogicamente nos mostra como o ócio de bem fruir a dádiva da vida se pode transformar no verdadeiro negócio de viver.               

Post de HN.

 O Arpose congratula-se e acolhe, com cordial júbilo, mais uma reflexão de leitura de H.N. Que muito agradece.

Regionalismos transmontanos (58)


1. Obrejado - friorento.
2. Olhapim - larápio, ladrão. Indivíduo curioso. Fantasma, lobisomem.
3. Orreta - atalho através dos campos. Vale profundo com pouco espaço para cultura.
4. Osmar - calcular, medir. Conjecturar, reflectir.
5. Ougaço - grande apetite, desejo forte.
6. Outono - primeira camada de erva que um lameiro dá depois da sega.

J. S. Bach / Jacques Loussier Trio


De Marianne Moore


Para uma serpente

Se "compressão é a primeira graça do estilo,"
tu tens esse dom. Contracção é uma virtude
como a modéstia, também.
Não é a aquisição de qualquer coisa
para mero adorno,
ou uma qualidade acidental que, porventura, ocorra
tal como um dito apropriado,
que nós valorizamos no estilo,
mas o princípio que se esconde:
na falta dos pés, "um método conclusivo,"
"um conhecimento dos princípios,"
nesse curioso fenómeno do teu corno occipital.

Marianne Moore (1887-1972).


sábado, 18 de outubro de 2014

Natureza viva, ou desmontando a instalação


Uma fotografia vale um poste? A minha resposta é não, mas há quem assim os faça. Penso, ao contrário, que há que juntar-lhe palavras. Em tempos de retraimento e recolhimento outoniços, porém, elas não surgem com facilidade. Ensaiemos as diversas opções de "legenda":
1. Eu podia falar do Outono.
2. Podia referir e nomear os frutos.
3. Talvez pudesse juntar à foto, uma catadupa de naturezas mortas (Cézanne, Matisse...) para deslumbrar os visitantes desconhecidos, que ficam quase sempre pasmados com a quantidade das imagens e com a pretensa erudição cultural.
4. Não dizendo nada, eu podia falar, até, de outras coisas...
5. Mas, mais concretamente, posso referir os dados acontecidos, com fidelidade real: a fruteira continha 2 maçãs "riscadinhas" e a bela romã, acabada de comprar, na Ribeira, pela HMJ. Lembrei-me que, numa outra fruteira, havia ainda uma laranja junto de três limões. Juntei a laranja para completar o quarteto, como se um verso final para acabar uma quadra. Depois, pedi a HMJ que tirasse uma fotografia, o que ela fez. Em prol da verdade, teria de dizer que, no frigorífico, ainda ficaram 3 diospiros, bem maduros, que não constaram da fotografia.

Será que terei dito, realmente, alguma coisa? De substancial - quero eu dizer...

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Números sucintos


Terceiro escritor de língua francesa mais lido no mundo, logo a seguir a Júlio Verne e Alexandre Dumas.
Obra composta por 193 romances e 158 novelas, fora os contos de pequena extensão.

Citações CCI


Uma má consciência pode tornar a vida interessante.

Sören Kierkegaard (1813-1855).

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Para acabar a noite, um medley dos Chieftains

Os olhos mais luminosos do cinema francês

O cinema há-de ter, sempre, a nossa idade. Quer queiramos, ou não. Tiremos-lhe os primeiros anos e os nossos últimos...
Marie Dubois (1937-2014) faleceu ontem.

Fiquei a pensar...


Passo a traduzir, sem qualquer comentário pessoal, do último TLS (nº 5819):
"Em meados do século XVIII, com uma população aproximada de 125.000 habitantes, Dublin era a nona maior cidade da Europa: maior do que Madrid ou Berlim, um pouco mais pequena do que Lisboa. Mas das dez maiores cidades europeias, Dublin era a única que não era capital de um estado soberano. ..."  

Recomendado : cinquenta e dois - Simenon


Organizado por Pierre Assouline, com textos e iconografia muito variada, este Hors-Série Le Monde, saído há poucos dias, é um must, para quem goste da obra de Georges Simenon (1903-1989).

Pinacoteca Pessoal 86


Há amores assim, irresistíveis e à primeira vista. Olhamos, ficamos conquistados e não há explicação, nem capacidade de resistência ao fascínio.
O meu Amigo, quando chegou a nossa casa, abriu o "saco" - como faz habitualmente - e mostrou os livros que comprara, havia pouco tempo, no alfarrabista da nossa preferência. Comecei a folheá-los. Um dos livros, com iconografia belíssima, reproduzia quadros sobre cafés europeus, e fora editado em França. Por lá andava, também, Pessoa, Pomar e Lisboa, mas eu fiquei seduzido, de imediato, por esta tela (85 por 91 cm.) de Félix Valloton (1865-1925), pintada em 1909. Tem por título Au Café (Le provincial) e pertence a uma colecção particular.

Exposição


No próximo sábado, 18/10/2014, pelas 18h30, na Casa da Cerca - Centro de Arte Contemporânea (Almada) inaugura uma exposição de desenhos, com trabalhos de Rafael Bordalo Pinheiro, Henrique Cayatte, Sofia Areal, entre vários outros artistas. A mostra estará patente até 25/1/2015.

Impromptu (9)

...ou o regresso da dona Mariana, ao Arpose. Ou, ainda: as cerejas poupadas...

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Apontamento 56: Brincadeiras



Noutro dia entrei numa frutaria/charcutaria/garrafeira, outrabandista, e, para além de comprar o que era preciso, lá encontrei, como de costume, outras coisas apetecíveis. Eram umas castanhas, brilhantes e grandes, a convidar o cliente a abastecer-se.

Foi o que aconteceu. Em casa, lá fiz os cortes e resolvi assar as castanhas para o jantar. No entanto, guardei uma, muito bonita, porque me lembrei das minhas brincadeiras infantis, na época das castanhas – não comestíveis – que se apanhavam para fazer bonecos na escola. Tomando como inspiração a imagem acima, apanhávamos as castanhas, levávamos fósforos e a partir daí fazíamos os bonecos. Ora, no fim-de-semana passado não resisti à tentação! A castanha sobrante ficou em pé, apoiada em três fósforos. Pareceu um pouco pobre, coitado !

Só quando se tirou a cápsula da garrafa do vinho para o jantar, surgiu a inspiração final. Tirada a cápsula a preceito, com vários golpes de faca, pareceu-me um sombreiro que, de imediato, achei que ficaria bem ao meu “homem da castanha”, por enquanto “sem qualidades”. Depois de fixar o chapéu com a ponta de um palito, surgiu um pernalta à beira-mar. Claro está, para a imaginação infantil que, graças a Deus, alguns adultos ainda conservam.

As recordações das brincadeiras infantis ainda tiveram outro desenvolvimento. Celebrou-se, ontem, o 60º aniversário da instauração do “subsídio para crianças” na Alemanha. Para além de sentir uma satisfação enorme relativamente a uma época em que o desenvolvimento de políticas de apoio social era considerado como uma conquista da Humanidade – em contraciclo com o panorama actual – fixei o olhar na imagem seguinte que acompanhou a notícia.


Ora, reconheci perfeitamente os carrinhos de bebés. Lembrei-me daquele que andou lá por casa depois de ter servido para três criaturas. Já estava sem “sombreira”, mas servia para as nossas brincadeiras. Às tantas, e como as bonecas eram poucas para meter lá dentro, passei a servir, como graça, às minhas irmãs para me passearem pela aldeia. Metiam-me lá dentro, com as pernas de fora perto de casa, a fazer de conta que eram “mães extremosas” a passear a criatura.
Por vezes, o afastamento da casa paterna proporcionava umas arrelias pouco cómodas. Às tantas, as minhas irmãs tentavam pôr as minhas pernas dentro do carrinho, com alguma dificuldade pelo tamanho da “boneca viva”.


Foi, assim, que fiquei com a recordação, até hoje, dos velhos carrinhos de bebés, de madeira e com molas, que davam para embalar até criaturas mais crescidas.

Post de HMJ